quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Parte 8 – O racismo por trás de argumentos que pretendem ser anti-racistas


Parte 8 – O racismo por trás de argumentos que pretendem ser anti-racistas

#158 - Por que o racismo e o especismo são igualmente moralmente injustificáveis: o que é relevante para ser moralmente considerado

De acordo com Nigro, o especismo é moralmente defensável, enquanto que o racismo não é. Como analisamos em detalhes nas sessões anteriores (#3 até #28), Nigro está errado ao pensar assim porque ambos os preconceitos são igualmente moralmente indefensáveis. A razão para isso é que ambos os preconceitos traçam linhas de divisões de grupos, com relação a quem deve ou não deve ser considerado moralmente, baseadas em critérios moralmente irrelevantes. A raça de alguém, assim como a espécie de alguém, como já vimos, são critérios moralmente irrelevantes para saber quem deve e quem não deve ser considerado moralmente porque são características que não influenciam na principal razão que faz com que alguém precise de consideração: a possibilidade desse alguém sofrer um dano. Vimos também que as duas formas básicas de alguém ser danado são por inflição de sensação ruim ou por privação do desfrute de sensações boas. Para alguém ser prejudicado, então, é necessário que esse alguém seja senciente (capaz de sensações). A senciência é, assim, o critério moralmente relevante principal para se estabelecer quem precisa e quem não precisa de consideração moral.

#159 - Por que é importante saber as razões que tornam esses preconceitos moralmente injustificáveis

O racismo já é amplamente aceito como moralmente injustificável. O mesmo não se pode dizer do especismo. Um dos motivos para explicar essa presente situação se está no fato de que a maioria das pessoas que reconhece que o racismo é errado tira essa conclusão pelas razões erradas. Sim, como vimos (#3 até #28, #93, #94, #105, #108, #140 até #142, #146), o racismo é moralmente errado, mas não devido aos motivos que a maioria das pessoas pensa. Antes de analisarmos esses motivos, é importante lembrar que o motivo real que torna o racismo errado também torna o especismo errado: uma linha divisória é traçada com base em características moralmente irrelevantes. São irrelevantes por serem arbitrárias e nada terem a ver com o que faz surgir o problema ético em questão. O problema é que a maioria das pessoas pensa que o racismo é errado por outros motivos. Isso é um problema porque, quando analisamos os motivos endereçados por essas pessoas para explicar o que há de errado com o racismo (incluindo os motivos oferecidos por Carlos Nigro), vemos que eles partem do mesmo princípio moral (que está errado) do qual parte o racista. A discordância entre o racista e o anti-racista baseado em maus motivos é apenas em relação aos fatos, não quanto ao princípio moral do qual partem. Essa situação será melhor explicada a seguir.

#160 – Razões erradas para explicar o que há de errado com o racismo

Vejamos os motivos pelos quais Carlos Nigro acha que o racismo é moralmente injustificável:

“Quanto ao racismo na espécie humana não passa de uma discussão de ignorantes porque não existe, geneticamente, raças humanas e discriminar o outro pela cor da pele ou pela cor dos olhos é coisa de imbecis”.

#161 – Por que certas conclusões contra preconceitos no fundo, concordam com esses preconceitos e discordam apenas da questão factual

De acordo com Nigro (e, infelizmente, de acordo com muita gente), o motivo pelo qual não se deve, por exemplo, assassinar e torturar as pessoas com base em sua raça é porque “não existem geneticamente, raças humanas”. Ou seja, se ficar provado cientificamente que existem, sim, “geneticamente, raças humanas”, então Nigro e pessoas que pensam da mesma maneira teriam de pensar que o racismo está justificado. Isso é cometer uma confusão gigante com relação ao entendimento do que são os princípios éticos, sobretudo o princípio da igualdade. Essa confusão com relação à ética explica muitas atitudes por parte dos movimentos sociais. Os pretensos anti-racistas negam que existam raças humanas, pois acreditam que, se existirem esses limites biológicos bem definidos, então que o racismo está justificado. Muitos ativistas defensores dos portadores de determinadas doenças físicas ou mentais negam que tais pessoas sofram de alguma doença, pois acreditam que, se ficar provado que tais pessoas estão mesmo doentes, então que tratá-las como inferiores está justificado. Os defensores dos animais não humanos tentam provar, a todo custo, que estes também são capazes de razão; pois acreditam que, se ficar provado que os animais são irracionais, então que está justificado considerá-los como inferiores e tratá-los com menor consideração. Todas essas visões vêm de erros grosseiros sobre o que é a ética (ou seja, sobre o que justifica ou não uma decisão). Todas essas visões partem das mesmas considerações moralmente irrelevantes (que é o grau de inteligência ou a raça, por exemplo, que deveria determinar o grau de respeito que alguém precisa).

#162 – Comparação entre os argumentos racistas e dos anti-racistas que no fundo são racistas

É importante definir quais as premissas do argumento de Nigro e quais as do argumento dos racistas, para que fique bem claro que ambos partem da mesma visão moral errada; sua única discordância é quanto aos fatos, e não quanto aos valores.

Olhemos mais de perto o argumento de Nigro:

(1) O que é relevante para saber se alguém merece mais ou menos consideração é a raça de alguém;
(2) Entre humanos, não existem raças;
(3) Logo, todos os humanos merecem igual consideração.

Olhemos mais de perto o argumento do racista:

(1) O que é relevante para saber se alguém merece mais ou menos consideração é a raça de alguém;
(2) Entre humanos, existem raças;
(3)Logo, de acordo com a raça, os humanos merecem consideração diferente.

#163 – Por que as questões factuais são irrelevantes nos argumentos anteriores (porque a premissa maior da qual partem está errada)

Note que os dois argumentos partem da premissa errada quanto à moralidade, a saber, de que os limites genéticos (no caso, a raça) são relevantes para saber se alguém merece ou não igual consideração. Não é de se admirar que, devido a essa confusão moral ser tão difundida, alguns ativistas defensores dos animais pensem que, para rejeitar o especismo como injustificável, seja preciso negar que existam espécies, biologicamente falando. Vamos supor, para efeito de argumentação, que amanhã toda a comunidade científica entre em consenso de que existem raças humanas bem definidas (e que fique também provado, por exemplo, que os da raça A possuem maior capacidade racional do que os da B). Será que isso gera uma razão para, então, justificar que os indivíduos da raça A mereçam consideração, enquanto que os da B não, ou que os da A mereçam maior consideração dos que os da B? Se alguém pensa que sim, é porque não entende a idéia básica envolvida no princípio da igualdade, que é um princípio ético.

#164 – Um defensor da igualdade baseado no argumento de que “não há raças” não teria como objetar a outras formas de discriminação arbitrária onde houvessem limites factuais bem definidos

O próprio Nigro percebeu essa implicação do seu próprio raciocínio. Percebeu que, embora não seja possível colocar uma linha clara delimitadora das raças humanas, é possível colocar uma linha clara e delimitadora pela cor da pele ou cor dos olhos (e muitos outros limites biológicos claros, como o gênero, a quantidade de braços, o nível de inteligência de cada indivíduo, a altura, o peso, etc.). Nesses casos, o raciocínio de Nigro teria de admitir que, então, a discriminação estaria correta (porque o limite biológico que ele subentende ser relevante e afirma não existir com relação à raça existe, por exemplo, com relação à cor dos olhos). Só que, como Nigro mesmo admite, discriminar os outros pela cor da pele ou dos olhos é coisa de imbecis. Quanto a isso, estou plenamente de acordo. O problema é que, por Nigro não saber o que torna essa atitude imbecil, faz com que ele se baseie moralmente em outro critério igualmente imbecil (embora a intenção dele possa ser uma boa intenção): a espécie biológica da vítima. O que Nigro parece não ter entendido é que o que os filósofos denunciadores do especismo estão a criticar é exatamente isso: que a espécie biológica da vítima é um limite tão arbitrário e moralmente irrelevante quanto a raça, gênero, cor dos olhos, altura, peso, etc.

#165 – O que realmente é o princípio da igualdade (igual consideração)

A primeira coisa que deve ser aprendida sobre ética é que, em ética, não queremos descobrir como as coisas são; queremos descobrir como as coisas devem ser. Então, a primeira coisa que deve ser aprendida sobre o princípio da igualdade é que não queremos descobrir se há alguma característica factual que seja igual para todos os indivíduos; queremos descobrir como devemos tratar os indivíduos. O princípio ético da igualdade é um ideal de igual consideração, e não de descrições sobre como os indivíduos possuem capacidades iguais, formatos de corpo iguais ou qualquer outro fato que os torne parecidos. Quando se fala que “todos os humanos são iguais”, o que se quer dizer não é que todos os humanos possuem formato de corpo iguais (porque isso é falso), e nem mesmo que possuem capacidades intelectuais iguais (porque isso também é falso), e nem que pertencem todos à mesma espécie biológica (o que é verdadeiro factualmente, porém irrelevante moralmente): o que se quer dizer é que todos devem receber igual consideração, independentemente dessas outras características.

#166 - Características do princípio da igualdade e seus vários sentidos (igual status moral, igual consideração e igualitarismo)

Algumas características principais estão envolvidas no princípio ético da igualdade: (1) Ele não descreve como as coisas são; é, ao invés, um princípio normativo; diz como deve-se tratar os indivíduos; (2) Respeitando a exigência de imparcialidade, como vimos anteriormente (#113, #114, #119), cada indivíduo possui o mesmo status moral. Ou seja, um indivíduo não vale mais do que o outro. Esse é o primeiro sentido envolvido na idéia de igualdade moral: cada indivíduo vale o mesmo que o outro. (3) O objetivo, em termos de conseqüências, é que cada um dos indivíduos fique com níveis de bem-estar iguais (ou, o mais próximo possível). Esse é o segundo sentido envolvido na idéia de igualdade moral: o objetivo é igualar os níveis de bem-estar de todos os indivíduos. Uma questão que deixo em aberto (pois não interfere no nosso argumento), com relação a esse segundo sentido, é se a igualdade entre os níveis de bem-estar é algo intrinsecamente bom (bom em si mesmo) ou se é instrumentalmente bom (se é bom porque melhora a situação de quem está pior). (4) A distribuição daquilo que for um bem deve ser feita de maneira eqüitativa: ou seja, deve-se dar mais a quem tem menos, e menos a quem tem mais (isso segue diretamente da visão de que nenhum indivíduo possui status moral superior a outros). Essa característica responde à outra confusão bem freqüente: a de se pensar que o princípio da igualdade exige tratamento igual, e não, igual consideração (a igual consideração muitas vezes requererá tratamento diferente). O objetivo do princípio igualitarista, ao invés, é que cada um possa desfrutar o máximo possível de bem-estar, mas que cheguemos a níveis de bem-estar próximos para cada indivíduo (sendo que o objetivo é maximizar o bem-estar, mas não de maneira impessoal; ou seja, o objetivo é distribuir com eqüidade esse bem-estar). Isso porque, mesmo que a igualdade de bem-estar possua valor em si, ela não é o único valor (isso porque a satisfação possui valor positivo e o sofrimento valor negativo): se fosse, teríamos que considerar boa uma situação onde todos estão igualmente muito mal. (5) Da premissa de que deve-se dar mais a quem tem menos segue daí que aqueles que estão na pior situação devem receber prioridade (princípio prioritarista); (6) Respeitando a exigência de que casos relevantemente similares sejam tratados de maneira similar, se um interesse x receber a importância y quando aparecer no indivíduo A, deve receber o mesmo peso quando aparecer em qualquer outro indivíduo. O que importa é a qualidade do interesse, não seu portador. Interesses vitais (como não ser assassinado e não sofrer, por exemplo) devem ter prioridade sobre interesses fúteis (comer uma comida específica, por exemplo). Por esse motivo é que muitas vezes o princípio da igualdade é traduzido como princípio da igual consideração de interesses semelhantes. Note que esse já é um terceiro sentido da idéia de igualdade envolvida no princípio: a igual consideração de interesses que são semelhantes. Temos, assim, três sentidos da idéia de igualdade: igual consideração dos indivíduos; igualação dos níveis de bem-estar entre indivíduos; igual consideração de interesses semelhantes.

#167 – Quando o princípio moral do qual se parte é ruim, não deve-se perder tempo investigar se as situações apresentam as características que esses princípios ruins dizem que são moralmente relevantes (análise factual-moral)

Repare que no princípio ético da igualdade não há nenhuma referência a divisões biológicas dos indivíduos. Isso porque as divisões biológicas tradicionalmente empregues para responder à pergunta “que critério utilizaremos para saber quem merece igual consideração” foram traçadas com base em critérios moralmente irrelevantes. Como já vimos anteriormente, raça e espécie são critérios moralmente irrelevantes porque não influenciam na possibilidade de alguém ser prejudicado. É a possibilidade de alguém ser prejudicado que faz com que necessite ser respeitado. Então, é errado utilizar a raça (e a espécie) como critério de consideração moral não porque “biologicamente falando, não existem raças”, mas sim, porque, se existem raças ou não, isso é irrelevante para saber se alguém precisa de respeito. É por esse motivo que aqueles que não fazem a menor idéia do que é o princípio ético da igualdade acham que o especismo se justifica: “biologicamente falando, existem espécies, enquanto que raças não existem”. Como vimos, não faz sentido perdermos tempo perguntando, quando queremos saber como devemos tratar os indivíduos, se existem raças ou espécies, porque ambos os critérios são moralmente irrelevantes.

#168 - Por que a senciência é um critério relevante para se estabelecer quem são os indivíduos a quem devemos igual consideração/ por que os princípios éticos precisam de critérios que fazem referências a fatos/ que tipos de fatos são relevantes

Daí não se segue que categorizar indivíduos de acordo com alguma característica física seja sempre moralmente irrelevante. Se queremos saber quem precisará de cadeiras de rodas temos de dividir em grupos baseados numa característica biológica: os que conseguem andar e os que não conseguem. O que distingue a divisão com base em critérios factuais justificável da injustificável é se o critério escolhido é relevante ou não para a resposta da questão moral. Nesse ponto, é importante não fazer outra confusão freqüente. Não se deve pensar que, por que os princípios éticos são princípios normativos (eles não descrevem fatos, eles avaliam), então que seja errado fazer qualquer referência a considerações sobre fatos. Por exemplo, tendo entendido que o princípio da igualdade é um princípio normativo, alguém precisará responder à outra pergunta: “que critério devemos utilizar para saber quem merece consideração moral?”. Para responder â essa pergunta, como já respondemos antes, temos de perguntar o que torna necessária a consideração moral. E a resposta é que os indivíduos podem sofrer danos, de uma ou de outra forma. Se os indivíduos fossem totalmente invulneráveis, incapazes de sofrer qualquer tipo de mal (dano por inflição de sensação ruim, física ou psicológica, privação de prazer, privação da verdade, trair confiança, etc.), então não haveria sentido algum de se falar em consideração moral, porque ela não seria necessária. Para um indivíduo ser danado por inflição de sensação ruim ou privação do desfrute da felicidade (as duas formas básicas e mais importantes de dano), o indivíduo precisa ser senciente. É por esse motivo que a senciência, apesar de ser um critério baseado em características biológicas, ao contrário dos outros mencionados (raça, espécie, cor da pele e cor dos olhos) não é arbitrário, pois baseia-se numa característica moralmente relevante. O que nos torna iguais é que somos todos vulneráveis ao dano por inflição de sensação ruim ou por privação do desfrute. E, o “nós” refere-se  a todos os seres sencientes. A diferença toda, é que a senciência, apesar de fazer referência a fatos, faz referência a fatos que possuem sempre conteúdo normativo moralmente relevante: desfrute tem sempre valor positivo e danos valor negativo (então, faz sentido investigar factualmente quem é capaz de desfrutar ou ser danado).

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