quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Parte 4 – A idéia de que animais não possuem valores e a defesa do bem-estarismo


Parte 4 – A idéia de que animais não possuem valores e a defesa do bem-estarismo

#41 – O argumento de que não é errado matar animais não humanos porque eles “não possuem valores”

O Dr. Carlos Nigro parece extrair a conclusão de que é correto matar animais não humanos (para comer sua carne ou matá-los e torturá-los na produção de leite e ovos, por exemplo) do seguinte argumento:

“Não maltratar animais e matar animais da forma mais indolor possível é um dever moral. Fazer sofrer ou assassinar, por motivos fúteis, é fazer o mal. Mas a própria ideia de que isso seja maldade é fruto apenas da razão humana, os animais não raciocinam e não tem valores”.

A conclusão de Nigro é a postura conhecida como “bem-estarista” (que chamarei de reformista): temos o dever moral de não causar sofrimento ou assassinar animais não humanos, mas apenas quando os motivos dos agentes humanos forem fúteis. Quando os motivos forem importantes, tanto o causar sofrimento quanto assassinar estariam, no entender dessa visão, justificados moralmente. Essa justificativa, como sugere o argumento de Nigro, é extraída da premissa de que os animais não possuem valores, e que não possuem valores porque não racioninam.

#42 – A conclusão de que não se deve assassinar por motivos fúteis não segue logicamente da premissa de que a morte não é um dano

O primeiro erro com o argumento de Nigro é que parece não ser consistente com o restante das coisas que ele alega sobre animais não humanos. Como vimos anteriomente (em #19), Nigro afirmou que “...os animais não tem um projeto de vida, por isso a morte não lhes tira nada”. Se fosse verdade que a morte não representa um dano para os animais não humanos (e, como vimos em #19, isso é falso porque é confundir sofrer uma perda com ter consciência da perda), então a conclusão que se seguiria desse raciocínio é que não é errado matá-los, seja lá se o motivo for fútil ou não. Consistente com essa premissa, a posição reformista tradicional é exatamente assim: diz que temos dever de não causar sofrimento por motivos fúteis, mas nenhum dever com relação a não matar (seja lá por motivos fúteis ou importantes). Assim, diferentemente do raciocínio de Nigro, a posição reformista tradicional é coerente (não quer dizer que esteja correta, como veremos a seguir). A contradição na posição de Nigro é que não é possível reconhecer que é errado matar por motivos fúteis sem ao mesmo tempo reconhecer que a morte mesma representa algum tipo de dano. Se morte para os animais não humanos não representasse prejuízo algum, então não seria errado matá-los, mesmo por motivos fúteis (já que nada de mal lhes aconteceria). Contudo, se o autor reconhece que é errado matá-los por motivos fúteis, então reconhece que a morte representa dano para eles, o que contraria sua tese de que a morte, por si só, não é um mal para quem não possui um “projeto de vida”.

#43 – Por que o argumento bem-estarista de que o único dever é não causar sofrimento não é sólido: não reconhece o dano na forma da privação do desfrute/ discutindo a visão epicurista da morte

Obviamente, a posição reformista só faria sentido se a morte mesma, independentemente de existir sofrimento durante a hora da morte, não fosse uma perda para os animais não humanos. Como vimos na sessão 2, isso só seria verdadeiro se a única forma de prejuízo possível fossem inflições de sensações ruins. Pelas razões apresentadas no mesmo item, isso é falso: existe uma forma muito comum de prejuízo, a saber, o dano por privação de desfrute, que é a forma mais clara de explicar onde está o principal mal de morrer. E, muito importante: para padecer desse mal não é necessário ter uma compreensão do que é a morte. A idéia epicurista de que o único mal da morte residiria no medo de morrer (e o erro em matar seria somente devido a inflição da sensação ruim do medo de morrer) envolve o erro de se esquecer da possibilidade de dano pela privação de algo bom. O argumento epicurista central diz o seguinte: não se deve temer a morte, porque, quando existe o vivo, a morte não tem lugar; quando há a morte, o vivo não existe mais. Um epicurista perguntaria: “mas, onde está o mal da morte, se o indivíduo não existe mais?”. Novamente, a confusão presente no argumento epicurista é pensar que a única forma de perda, prejuízo se dá por inflição de sensação ruim, e não por impossibilidade de se desfrutar satisfação. Se a morte não fosse um dano por privação de desfrute, tentar escapar da morte seria irracional, e ninguém deveria se sentir culpado em infligir sofrimento causando medo de morrer (com ameaças de assassinato, por exemplo), já que tal medo seria desprovido de sentido.

#44 – Entendendo melhor o dano por privação do desfrute

Para entender melhor a idéia de perda por privação, imagine o mesmo indivíduo A, e as possibilidades disponíveis para ele: (1) Ou vive mais 40 anos, com uma qualidade de vida boa; (2) Ou morre agora, de maneira instantânea e sem dor. Se enxergarmos as possibilidades do quadro geral de qual a melhor situação, certamente percebemos que a situação 1 é melhor, e que o indivíduo A  é prejudicado se lhe acontece a situação 2 (a saber, perde de desfrutar a possibilidade 1), mesmo que não tenha consciência do que perdeu (mesmo que não tenha consciência alguma, já que estará morto). Para entender o dano por privação, então, é necessário “sair do momento presente”, e sai da percepção individual, e analisar “de cima” o quadro geral de possibilidades. Em teoria, muitas vezes para ganhar o debate, alguns negam essa forma de dano. Na prática, contudo, ninguém quer tomar um “drink letal”, mesmo sabendo que não haverá dor ao morrer.

#45 – Ambigüidade com o uso do termo “valor”: valor moral ou valores em geral?

Outro problema com o argumento envolve várias confusões e ambigüidade com o conceito de valor (fica vago se o autor se refere a valor moral ou valor em geral). Um quarto problema, derivado deste, consiste em que, seja lá qual for a maneira que interpretemos o que o autor quer exprimir pela palavra “valor”, a conclusão que se segue logicamente deveria ser a oposta à que o autor chega. Analisemos esses dois problemas conjuntamente:

#46 – O argumento de que, para se possuir valores, é necessário que se seja racional

Nigro nega que os animais não humanos possuam valores. Dando sustentação a essa tese, está a premissa de que, para alguém valorizar algo, esse alguém precisa ser racional. A conclusão a qual Nigro chega, partindo dessas premissas é a de que é errado fazer sofrer ou matar animais não humanos apenas quando os motivos dos humanos são fúteis. Em resumo, Nigro apresenta dois argumentos, um derivado do outro:

(1) Para alguém possuir valores, é necessário que o indivíduo em questão seja racional;
(2) Os animais não humanos não são racionais;
(3) Logo, os animais não humanos não possuem valores.

#47 – O argumento de que não precisamos respeitar os animais não humanos porque eles ‘não possuem valores’

O segundo argumento é esse:

(1) Só quem possui valores deve ser objeto de respeito;
(2) Os animais não humanos não possuem valores;
(3) Logo, devemos respeitar os animais não humanos apenas quando o motivo para desrespeitá-los for fútil.

#48 - Interpretando “valor”, nos argumentos acima, como qualquer tipo de valor: é falso que para se ter valores precisa-se ser racional

Comecemos por analisar o primeiro argumento. A primeira premissa será verdadeira ou não dependendo do que o autor se refira por valor. Se o autor se refere a valorizar em geral (preferir umas coisas em relação a outras), então a premissa é falsa (como detalharei a seguir) e, mesmo que o argumento tenha forma válida (se a premissa fosse verdadeira, seria impossível a conclusão ser falsa), a conclusão é falsa porque a primeira premissa é falsa. A primeira premissa, se refere-se à valorizar em geral, é falsa porque conduz a conclusões absurdas, como ter que dizer que é indiferente para o animal não humano (ou qualquer humano incapaz de razão) ele ser queimado vivo, ter uma perna arrancada, morrer de inanição, etc. Obviamente, os animais não querem sofrer e querem sentir prazer. Isso mostra que eles têm valores. Se eles não valorizassem o prazer e não desvalorizassem o sofrimento, passariam o tempo todo indiferentes a aquilo que lhes dá prazer ou sofrimento. Mas, não é isso que acontece. E isso não acontece porque para alguém possuir valores, nesse sentido geral de valor, depende apenas desse alguém ser ou não senciente (ser capaz de sofrimento e satisfação), e não, de ser racional (ser capaz de fazer inferências). Todo ser senciente, em termos gerais, busca o prazer e foge do sofrimento. Isso só é possível porque eles valorizam. Mais uma vez, isso não depende da capacidade para a razão, apenas da capacidade de sentir. Assim, a existência de valores, em geral, depende unicamente de se o ser é senciente ou não.

#49 – Se “valor” refere-se a valores em geral, é falso que animais não humanos não possuem valores

Assim, se “valor” é interpretado nesse sentido, a conclusão do primeiro argumento é falsa porque a primeira premissa é falsa. O argumento não é sólido mesmo que admitamos, para efeito de argumentação, que a segunda premissa (a de que animais não humanos não são racionais) é verdadeira; o que também é discutível. Mantendo então essa interpretação do que o autor quis dizer com “valor”, analisemos o segundo argumento. O segundo argumento tem a primeira premissa verdadeira. Realmente, se um indivíduo não valoriza nada (ou seja, se não prefere alguns estados de coisas em relação a outros), então não há nada que possa lhe prejudicar: qualquer coisa que lhe fizermos ou deixarmos de lhe fazer será indiferente para ele. Então, num caso assim, não haveria necessidade de respeitá-lo. Tijolos, sapatos e canetas (e bolas de sinuca também!) são o melhor exemplo de coisas desse tipo. O problema com o segundo argumento não é, então, na primeira premissa. É na segunda. Como vimos no parágrafo anterior, os animais sencientes possuem valores, nesse sentido geral (de preferirem um estados em relação a outros). O que caracteriza um ser senciente é a aversão pelo sofrimento e a busca pelo prazer. Então, é falso que animais não humanos não possuem valores.

#50 – Se um objeto não possui preferências (não valoriza algumas coisas e desvaloriza outras), então nada há que considerar, independentemente dos motivos do agente serem fúteis ou não

A parte mais estranha do argumento, contudo, é sua conclusão. Ela não segue das premissas. As premissas não apoiariam a conclusão nem se a segunda premissa fosse verdadeira. Se a segunda premissa fosse verdadeira (se os animais não valorizassem nada), então a conclusão que se seguiria disso é que jamais precisamos respeitá-los, e não apenas quando os motivos dos humanos são fúteis. Não faria sentido afirmar, por exemplo, que, já que o tijolo não valoriza nada, então você não deve chutá-lo quando o seu motivo para isso for fútil. A menos que exista alguém interessado em ver o tijolo intacto, não há motivos para pensar assim (chutar um tijolo, seja lá qual for o motivo que leve alguém a chutá-lo, nunca faz mal algum para o tijolo). Pelo menos, nenhum motivo que gere deveres diretos para com o tijolo (já que nenhum mal é feito ao tijolo, pois o tijolo não prefere uns estados e coisas em relação a outros). Os únicos motivos plausíveis para não se chutar um tijolo seriam de deveres indiretos para com alguém que tivesse interesse (portanto, um ser senciente) em ver o tijolo intacto.

#51 – A noção de que não devemos causar danos aos animais por motivos fúteis reconhece que eles valorizam 

Assim, a conclusão de Nigro é misteriosa. O que dá a entender é que ele mesmo reconhece que os animais valorizam. De que outra forma ele poderia concluir que é moralmente errado causar-lhes sofrimento ou assassinar por motivos fúteis? Se o sofrimento não fosse algo ruim (o que implica valoração) para os animais, de onde viria esse dever? Nigro reconhece que os animais sofrem. Deve provavelmente reconhecer que sofrer é algo muito ruim (já deve ter sofrido antes, para saber isso). Então, como pode concluir que os animais não valorizam nada e, ao mesmo tempo, dizer que temos um dever moral de não causar sofrimento desnecessário para os animais? A menos que Nigro enxergue esse dever de não causar sofrimento aos animais por motivos fúteis como um dever indireto a humanos que tenham interesse em tais animais. Mas, penso que não é esse o caso. Penso que Nigro reconhece que o sofrimento é algo ruim para os animais (assim como é intrinsecamente ruim para qualquer um que o sinta), e que é isso que dá origem ao dever de não causar sofrimento “por motivos fúteis”. O problema para o argumento de Nigro, é que isso implica em reconhecer que os animais possuem valores.

#52 - Interpretando “valor”, nos argumentos acima, como valor moral: o primeiro argumento se torna sólido às custas de sacrificar a solidez do segundo argumento

Uma possível saída para Nigro, com vistas a evitar reconhecer que os animais possuem valores, é definir “valor” como sinônimo de valor moral. Ou seja, como sinônimo de reconhecer que determinadas coisas são justificáveis, outras injustificáveis, ter um senso de dever, saber distingüir o moralmente opcional do moralmente obrigatório, ter senso de justiça, etc. Vejamos como o argumento seria reformulado para adequar o termo “valor” a essa nova definição:

Primeiro argumento reformulado:

(1) Para alguém possuir valores morais, é necessário que o indivíduo em questão seja racional;
(2) Os animais não humanos não são racionais;
(3) Logo, os animais não humanos não possuem valores morais.

O segundo argumento ficaria assim:

(1) Só quem possui valores morais deve ser objeto de respeito;
(2) Os animais não humanos não possuem valores morais;
(3) Logo, devemos respeitar os animais não humanos apenas quando o motivo para desrespeitá-los for fútil.

#53 – O primeiro argumento, reformulado dessa maneira, fica sólido: para alguém possuir valores morais, é necessário ser capaz de razão

Se reformulado dessa maneira, assumirei, para efeito de argumentação, que todo o primeiro argumento está correto – embora a segunda premissa não seja isenta de sérias dúvidas. A primeira premissa está correta. É difícil imaginar como alguém conseguiria entender as idéias de dever, certo, errado, justo, injusto, se não conseguisse raciocinar de forma alguma. Diferentemente de outros valores (como aversão ao sofrimento e atração pelo prazer), valores morais dependem da capacidade de fazer inferências (dependem, por exemplo, de se compreender que você é apenas mais um entre os demais, e que não possui maior valor por ser você mesmo – o que desembocará no princípio da imparcialidade; depende de reconhecer que casos relevantemente similares devem ser tratados de maneira similar; que deveres morais são o tipo de coisas que devemos fazer independentemente de desejarmos fazê-lo ou não, etc.). Quanto à segunda premissa, existem dúvidas sobre se não existe nenhum animal não humano que compreenda essas noções. De acordo com o primatólogo Frans de Waal[2] , muitos primatas possuem, intuitivamente, o equivalente aos conceitos de justiça, bem, mal, certo, errado, etc. Contudo, não me deterei a discutir essa premissa porque ela não é relevante para o restante do argumento. Assumirei que a maioria dos animais não humanos não possuem valores morais. Sendo assim, a conclusão segue-se logicamente das premissas, e o primeiro argumento, além de logicamente válido, é também sólido por ter premissas verdadeiras.

#54 – Primeira premissa do segundo argumento é falsa: não é necessário que alguém seja um agente moral para haver um dever respeitá-lo

O erro todo está no segundo argumento. Para começar, é formalmente inválido: se as suas premissas fossem verdadeiras, ainda assim, aquela conclusão não se seguiria das premissas. Como já vimos, se fosse verdade que só temos dever de respeitar alguém que possui valores morais, então poderíamos fazer o que bem entendêssemos com quem não possui valores morais, independentemente do motivo que nos levasse a isso, e não somente quando o motivo não fosse fútil. Em segundo lugar, apesar de sua segunda premissa ser verdadeira (ela é a conclusão do primeiro argumento: animais não humanos não possuem valores morais), a sua primeira premissa é falsa (é falso que só quem possui valores morais deve ser objeto de respeito). Como vimos na primeira sessão, a primeira premissa envolve confundir o que seriam os critérios relevantes para alguém ser um agente moral (ou seja, saber quais seres devemos responsabilizar pelas suas escolhas) com os critérios relevantes para alguém ser um paciente moral (ou seja, saber quais seres devemos respeitar). O que é relevante para saber se alguém deve ou não ser respeitado depende do que influencia na possibilidade desse alguém ser prejudicado. Para alguém ser prejudicado, precisa valorizar alguma coisa e desvalorizar outras (que é o primeiro sentido do termo “valor”, analisado anteriormente). Assim, alguém poderia ser prejudicado pela presença daquilo que desvaloriza ou pela falta daquilo que valoriza. Nesse sentido do termo “valor”, que é relevante para saber quem devemos respeitar (porque é possível de os prejudicarmos), os animais não humanos têm valores (valorizam a satisfação e desvalorizam o sofrimento). Então, seja lá de que forma que interpretemos o termo “valor”, o argumento de Nigro para excluir os animais não humanos da igual consideração não é bom.

#55 – A maior posse de racionalidade não indica que tal ser tem maior valor, em termos de prioridade: quanto maior a capacidade racional, maiores seus deveres; quanto maior a vulnerabilidade, maior sua prioridade: 

Nigro está certo ao apontar que o reconhecimento de algo ser uma maldade depende da capacidade de razão (não exatamente da razão humana, como ele diz, mas da razão, ponto). Não é a razão humana que “cria” a maldade; a maldade já está lá, e através da razão é que podemos ter acesso, julgar quando um estado de coisas é moralmente um mal (injustificável) e quando não é.  Mesmo concordando com Nigro que, para reconhecer que algo é moralmente um mal é necessário a capacidade de razão, como já foi mencionado anteriormente (#21), quanto maior o entendimento racional de alguém, maiores são os seus deveres morais (faz mais sentido cobrar responsabilidade de uma pessoa com grande entendimento), e não, maiores os seus privilégios morais (porque geralmente, quanto mais racional alguém é, menor sua vulnerabilidade, então não faz sentido afirmar que deveriam ter mais proteção). Com relação à necessidade de cuidado e proteção, quanto menor a capacidade racional de alguém, maiores deveriam ser seus privilégios morais, pois, quase sempre, maior sua vulnerabilidade. Da mesma maneira que reconhecer que um adulto tem maior capacidade racional não indica que sua vida vale mais do que o de uma criança, reconhecer o mesmo com relação às maiores capacidades racionais dos humanos perante aos animais não humanos não serve como sustentação para a tese de que a vida dos humanos vale mais.

#56 – O fato de alguém ser mais racional não lhe dá direito de assassinar outros indivíduos; e nem serve como sustentação para a tese de que a vida humana possui maior valor

Já que tal constatação não serve para sustentar que a vida dos seres racionais vale mais, em termos de receber prioridade de socorro, serve muito menos para sustentar que é correto assassinar os menos racionais (seja lá se o motivo do assassino é fútil ou não). E, apenas para lembrar, bebês e crianças muito pequenas, e muitos adultos portadores de certas doenças mentais têm uma capacidade racional muitíssimo menor do que muitos animais não humanos. Se o argumento de Nigro estivesse correto, ele teria que sustentar que é correto matar esses seres humanos para beneficiar os animais não humanos mais racionais (quando o motivo não fosse fútil, pelo menos).  Se fica claro que o argumento não se sustenta quando os humanos são as vítimas, então  o mesmo argumento não faz sentido quando os animais não humanos são as vítimas – já que ambos os tipos de vítima possuem uma característica moralmente relevante que os coloca sob um mesmo grupo: são capazes de sofrer dano por inflição de sofrimento ou por privação de desfrute (além de sua vulnerabilidade similar, em boa parte dos casos).

#57 – A denúncia da confusão entre o critério relevante para alguém ser responsabilizado e o critério relevante para alguém ter seus interesses considerados

Nigro padece da mesma confusão feita ao longo da história da filosofia, de trocar os critérios moralmente relevantes para se saber quem deve ser responsabilizado pelas suas escolhas (aqueles capazes de refletir sobre o que é justificável e o que não é, o que depende da capacidade racional) com os critérios relevantes para se saber quem deve ser respeitado (aqueles capazes de serem prejudicados, o que depende da capacidade de senciência). Tal confusão foi denunciada pela primeira vez em 1776, pelo filósofo Humphry Primatt (The Duty of Mercy), seguido depois por Jeremy Bentham, em 1789 (The Principles of Morals and Legislation). A denúncia de tal confusão foi amplamente difundida na filosofia a partir da publicação de Libertação Animal, de Peter Singer, em 1975. De lá para cá, centenas de livros e artigos têm sido publicados discutindo a questão, tendo como foco central essa confusão feita tradicionalmente na filosofia. Assim, alguém poderia ser desculpado por fazer essa confusão em um artigo publicado antes de 1776. Contudo, Nigro faz a mesma confusão hoje, em 2012 (já se passaram mais de duzentos anos); confusão que poderia ter sido evitada se ele tivesse lido com atenção qualquer livro introdutório ou artigo sobre ética animal (incluindo aquelas centenas de páginas que ele afirma ter lido, referindo-se aos artigos que já publiquei, em conjunto). Fazer essa confusão hoje em dia (e, ainda mais, apresentá-la como se fosse um argumento nocauteante contra a consideração pelos animais, como se não tivesse sido refutado centenas de vezes) não é tão perdoável para quem escreve sobre o tema, porque é sinal de não ter lido com atenção sobre o tema que escreve.

#58 – O argumento de que é errado causar dano (por inflição ou privação) por motivos fúteis dá um argumento a favor do veganismo, não contra

O próximo problema com o argumento de Nigro é que, sem o autor perceber, ele fornece um argumento a favor do veganismo, e não, contra, como quer o autor. Isso porque, se concordarmos com a conclusão de Nigro, de que “fazer sofrer ou assassinar, por motivos fúteis, é fazer o mal”, então temos boas razões para praticar o veganismo, haja vista que comer comida de origem animal é um capricho fútil e banal. Isso porque nosso corpo não necessita de comida de origem animal. É possível ter uma vida perfeitamente saudável com uma dieta vegana. É verdade, comer algum tipo de comida é uma necessidade. Agora, comer este tipo de comida específico (comida de origem animal), que causa tantas mortes e tamanho sofrimento, mesmo havendo outro tipo de comida que cause um dano muito menor, só pode ter como motivação o gosto pelo sabor de tais alimentos – portanto, não é uma necessidade, e sim, uma futilidade. Se tal futilidade fosse inofensiva, a questão da escolha de praticá-la ou não seria moralmente opcional. O problema é que é o tipo de interesse fútil que causa trilhões de mortes e imensa quantidade de sofrimento por indivíduo, então, só pode ser considerado, como concorda Nigro, um mal (e, eu acrescentaria, um grande mal), portanto, moralmente obrigatório abolir. Assim, se Nigro realmente levar a sério o princípio de não causar mal por motivos fúteis, então se tornará vegano. Se não o fizer, é sinal de que aceita apenas na teoria, e não na prática do dia-a-dia, o princípio de que é moralmente errado causar mal por motivos fúteis. O mesmo se pode dizer do vegetariano que postou um comentário no blog de Nigro, que assina apenas como Régis, elogiando suas colocações contra o veganismo. Tal pessoa possui uma dificuldade em compreender que, se o erro moral em comer carne está que causa danos graves (e, pior ainda, por motivos fúteis), as mesmas razões se aplicam à questão sobre o consumo de ovos, leite ou qualquer outro produto de origem animal. O consumo de leite ou ovos é até pior, pois provavelmente causa mais mortes e um número maior de sofrimento por indivíduo, do que com o consumo de carne (quem conhece as granjas industriais sabe do que estou falando[3]). Isso não quer dizer que o consumo de carne é justificável, devido a ser menos pior do que o consumo de leite e ovos. Pelo contrário:  todas essas práticas são moralmente hediondas, mas umas são mais hediondas do que as outras, em termos de conseqüências danosas para as vítimas. Contudo, são todas injustificáveis, devido às razões que venho expondo do início do texto até agora.

#59 – O erro em assassinar não depende dos benefícios para quem assassina

A próxima coisa que temos de nos perguntar é o tamanho desse mal e a importância moral que devemos dar a ele, em termos de prioridade em aboli-lo. Comecemos por notar que o argumento de Nigro não mostra que é correto matar ou fazer sofrer quando o motivo não é fútil. Ele apenas postula que é errado causar dano por motivos fúteis, mas não oferece uma razão para explicar por que seria justificável causar dano sempre que o motivo não é fútil. Concordo que existam exceções à regra contra não matar (casos que comentarei em outra sessão, sobre a questão da eutanásia), contudo, nenhuma dessas exceções depende do que Nigro pensa que depende (a importância do benefício para de quem assassina). Se o erro em matar ou fazer sofrer depende crucialmente do que acontece com a vítima dessa morte ou sofrimento (depende disso ser algo ruim para ela, e do quão ruim isso é), e não do tamanho do benefício resultante para o agente ao matar ou fazer sofrer, então, que diferença faz, para a vítima, se foi morta por um motivo fútil ou por um motivo "importante" para o agente? Uma experiência ajuda a clarear o pensamento: é errado eu assassinar outro ser humano apenas se eu quiser me divertir com um maçarico ou para eu comer a carne dele (motivos fúteis) ou também é errado se eu quiser fazer uma pesquisa científica com ela para curar o câncer de outras pessoas (motivo importante)? Parece que é errado em qualquer caso, independentemente do motivo.

#60 – Diferença entre valor do indivíduo e qualidade da vida do indivíduo

Para entender melhor o erro envolvido no raciocínio, temos de observar uma diferença importante, que normalmente é perdida de vista nos debates sobre igualdade: a diferença entre o valor do indivíduo, e a qualidade da vida desse indivíduo. Atentar para essa diferença será muito importante para nossa discussão seguinte, que diz respeito ao entendimento do princípio da igualdade, enquanto princípio ético. Muitas vezes, é comum que se tome considerações sobre a qualidade de vida um indivíduo como fornecendo base para considerações sobre o maior ou menor valor do indivíduo que vive tal vida. Por exemplo, comumente se aponta que alguns indivíduos são dignos de maior consideração moral por serem capazes de experiências mais valorosas (por exemplo, serem capazes de fazer matemática avançada ou compor música). O erro envolvido aqui é saltar da constatação de que esses indivíduos provavelmente são capazes de terem vidas mais significativas do que indivíduos que não possuem tais capacidades; para a conclusão de que, então, os indivíduos portadores de tais qualidades valem mais, enquanto indivíduos (e que então é correto utilizar de outros indivíduos como se fossem recursos para esses, desde que o interesse envolvido seja importante).

#61 – Existem situações onde a desigualdade de bem-estar se justifica?

Por que a premissa que envolve constatar que determinados indivíduos tem maiores chances de ter uma vida mais significativa não apóia a conclusão de que tais indivíduos, não apenas tem vidas melhores, mas também são mais valiosos? Para entender por que, é necessário fazer duas perguntas: (1) “Alguns indivíduos estão em melhor situação que outros, mas, eles deveriam estar?”. (2) “Alguns indivíduos estão em pior situação do que outros, mas, eles deveriam estar?”. Para encontrar a resposta correta, temos de perguntar se há justificativa, e do que características moralmente relevantes elas dependem, para alguém estar melhor ou pior, comparativamente a outros. Caso houverem tais justificativas, temos de perguntar se o caso em questão que estamos a analisar (alguém ter uma vida valiosa em maior ou menor grau, de acordo com o que sua constituição biológica permite) apresenta alguma das características relevantes para justificar a desigualdade de bem-estar. Minha conclusão será a de que, embora existam situações onde seja justificável alguém estar melhor do que outro indivíduo, o caso em questão não é um deles. Então, a conclusão prática é que temos de neutralizar, através da ação moral, essas desigualdades devido à biologia, como será explicado nos parágrafos a seguir.

#62 – Falácia naturalista

Comecemos por perguntar o que não justifica a desigualdade de bem-estar. A partir da constatação de que alguns estão melhor e outros estão pior, muitas pessoas deduzem que, então, é assim mesmo que deveriam estar. Exemplos de frases comuns que exprimem essa crença são “temos que aceitar; é assim que a vida é” ou “a desigualdade se justifica porque na natureza é assim que é mesmo”. Essa constatação não sustenta a conclusão. Ela é um exemplo da famosa falácia naturalista (deduzir do fato de que algo é, então que, por isso mesmo, deveria ser). Tal inferência é uma falácia porque, obviamente, o fato de que algo acontece não nos diz nada sobre se é certo, justo, injusto, etc. Se fosse assim (se tudo o que acontecesse fosse exatamente aquilo que deveria acontecer, que fosse justo, correto que acontecesse), jamais faria sentido dizer que aconteceu uma injustiça, ou de que algo que existe é um mal. Mas, obviamente, faz sentido dizer que algumas coisas são um mal, injustas, etc.

#63 – Existem situações onde se justifica alguém estar numa condição melhor do que outros?

Comecemos por perguntar: “o que poderia justificar alguém estar melhor do que outro?”. A única idéia plausível que me vêm à mente refere-se ao mérito. Supondo duas pessoas que possuem exatamente as mesmas oportunidades para conseguir um determinado nível de bem-estar. Supondo que uma das pessoas se esforça para conseguir o nível de bem-estar (digamos que ambos sejam funcionários da mesma empresa), enquanto que a outra não se esforça nem um pouco. Se o resultado disso for que a primeira consegue um bem-estar maior do que o da Segunda (digamos que uma consegue um aumento e a outra não), parece um resultado justo, haja vista que depende unicamente do mérito. Contudo, existem duas observações importantes: (1) Não se pode deduzir do fato de que alguém está numa situação melhor, então que merece (chegou até ali por mérito) estar. Isso porque pode acontecer (e, geralmente acontece) exatamente o contrário: alguém se esforçar mais (e, portanto, merecer mais) e, no final das contas, ficar numa situação pior do que a que não se esforçou. Então, não podemos deduzir, do fato de que alguém possui uma qualidade de vida melhor, que “fez por merecer” essa qualidade. (2) Observe que a justificativa para o bem-estar desigual baseada no mérito depende crucialmente de que todos tenham tido exatamente oportunidades iguais para atingir determinado nível de bem-estar. O que acontece é que na vida real raríssimamente é assim. Geralmente quem têm uma qualidade de vida melhor contou (geralmente numa porcentagem altíssima) com a sorte. Isso acontece, por exemplo, com alguém ter nascido numa família mais rica ou numa mais pobre. Para alguém que nasce numa família mais pobre, é mais difícil conseguir chegar a um determinado nível de bem-estar, pois as oportunidades que teve não foram tantas quanto às que teve quem já nasceu  numa família mais rica (ou, menos pobre, já que esse raciocínio é sempre comparativo entre dois níveis de oportunidades resultantes da sorte). Então, não se pode deduzir, do fato de que alguém está numa situação melhor, que chegou em tal situação porque se esforçou mais do que os que estão numa situação pior. No mundo em que vivemos, a desigualdade dos pontos de partida é tão grande, que normalmente quem está na pior situação se esforça (em termos de trabalho) para melhorar sua situação inúmeras vezes mais do que quem está numa situação melhor. Esse é um dos motivos pelo qual geralmente é uma injustiça que alguém esteja numa situação melhor do que outro: mesmo que alguém tenha se esforçado para conseguir tal situação boa (mesmo que tenha algum mérito): os indivíduos não partiram do mesmo ponto de bem-estar (uns começaram mais acima, às vezes bem mais acima, e outros abaixo, às vezes bem mais abaixo – isso tudo devido à sorte ou azar), e também não tiveram oportunidades iguais de atingir determinado nível de bem-estar.

64 – Existem situações onde se justifica que alguém esteja numa condição pior do que outros?

Quando fazemos a segunda pergunta “o que poderia justificar alguém estar pior do que outro?”, acredito que, pelo menos dois critérios sugiram alguma consideração relevante. O primeiro deles diz respeito também a merecimento (mérito), na verdade, demérito. Ou seja, é a idéia de que alguém merece estar numa situação pior, comparativamente a outros, devido a alguma escolha deliberada que fez anteriormente. Novamente, supondo que haja duas pessoas com oportunidades iguais para uma determinada coisa (digamos, um certificado de doutor em alguma área), e acontece que a primeira pessoa se dedica, enquanto que a segunda não. É justo dizer que a segunda não merece o título, enquanto que a primeira merece. Essa mesma idéia de merecimento forneceria base não apenas para dizer que alguém não merece um determinado aumento de bem-estar, mas que merece uma diminuição do seu bem-estar, como punição pelo que fez de injusto anteriormente. Supondo, por exemplo, que um determinado político tenha conseguido um nível de bem-estar alto devido a roubar dinheiro público. É justo que ele tenha sua qualidade de bem-estar diminuída devido a ter que devolver o dinheiro. Seria ridículo que ele alegasse, por exemplo “não retirem o dinheiro de mim, vocês estão me prejudicando!”. Já o segundo critério que sugere uma consideração relevante para justificar que alguém esteja numa situação pior diz respeito à proteção de outros inocentes, em não serem danados com o seu movimento. Por exemplo, uma das razões principais para se prender um psicopata é a proteção para as vítimas. Essa consideração não deve ser confundida com a consideração sobre a punição. Na idéia de punição, o ponto de partida central é que alguém merece estar numa situação pior devido a algo de ruim que fez deliberadamente antes. As características moralmente relevantes na idéia de punição dizem respeito ao passado: alguém é punido pelo que fez. A preocupação não é prevenir novos danos no futuro. Já nesse segundo critério, se dá o inverso: a preocupação é prevenir novos danos no futuro, e não, punir o atacante devido a este merecer. Obviamente, o atacante será “punido”, no sentido de perder sua liberdade, por exemplo, mas isso se dá não porque ele merece (como veremos a seguir, talvez ele não mereça), e sim, para impedir novos danos causados por ele mesmo. Essas duas considerações podem estar presentes ou não em conjunto, ou separadamente. Considere os três exemplos a seguir. (1) A justificação para prender alguém que enlouqueceu e coloca em risco a vida de outros se dá exclusivamente a partir do critério “prevenir novos danos devido ao movimento do indivíduo que terá sua liberdade retirada”. Faz sentido dizer que é justificável causar um dano a esse indivíduo, apesar de ele não “merecer”. . Ele não “merece” o dano porque não fez nada deliberadamente para danar os outros, já que estava louco, portanto, não tem como ser responsabilizado pelo que escolhe. Ou seja, ele não está sendo punido por algo que fez anteriormente; está sendo impedido de causar danos futuros com o seu movimento. (2) Considere outro caso, onde a justificativa para diminuir o bem-estar de alguém se dá exclusivamente a partir da idéia de punição por se desmerecer a situação boa. Suponha que alguém mate outra pessoa para ficar com o seu dinheiro. Se alguém assim for preso, apesar de aparentemente um dos motivos ser o de prevenir novos danos que esse alguém possa causar, a razão principal é que ele não merece estar com o dinheiro que roubou. A vítima já está morta, portanto, a razão para prendê-lo não pode ser a de devolver o dinheiro para a vítima. Note que mesmo que ficasse provado que tal indivíduo jamais faria algo de ruim novamente, ainda assim seria injusto que ele ficasse com o dinheiro. Portanto, nesse caso, a justificativa para lhe causar um dano (retirar-lhe o dinheiro, obrigar-lhe a fazer algo de bom para compensar o que fez de ruim, e outros tipos de punição) seria extraída unicamente a partir de considerações sobre o desmerecimento do bem em questão. (3) Na maioria dos casos onde se justifica que alguém fique numa situação pior estão presentes tanto a preocupação em evitar que o indivíduo em questão cause novos danos e também o desmerecimento da situação boa ou merecimento da situação ruim, devido ao que fez de injusto no passado. Por exemplo, pode-se justificar prender um político corrupto para que ele não cometa novos danos no futuro, e também pode-se justificar retirar-lhe alguns bens por punição pelo que fez anteriormente.

#65 Aquilo que poderia tornar justificável uma situação desigual não sustenta a conclusão de que seres mais racionais possuem maior valor

Como conclusão do raciocínio anterior, vimos então que: (1) Só seria talvez justificável alguém estar numa situação melhor do que a de outros se essa situação fosse resultado de mérito, sendo que todos os outros tiveram oportunidades iguais de chegar no mesmo lugar (ou seja, que não partiram de níveis diferentes de bem-estar e de habilidades diferentes para busca do bem-estar); (2) As duas maneiras de justificar que alguém esteja numa situação pior do que a dos outros depende, ou (2.1) da situação ruim ser resultado de uma prevenção contra esse indivíduo causar dano a outros inocentes; (2.2) ou da situação ruim ser resultado de uma justa punição para compensar algo de injusto praticado anteriormente pelo próprio indivíduo. A consideração 2.1 se aplica igualmente a indivíduos capazes e incapazes de agência moral (ter consciência da justificação ou não de suas decisões), já que, para se causar um dano não justificado a outro indivíduo, não é necessário que o atacante seja um agente moral (que tenha compreensão do mal que faz). Já a consideração 2.2 só faz sentido para agentes morais (já que não faz sentido punir alguém por fazer algo que não tinha como saber que era algo errado. O ponto que é importante retermos, dessa análise é que, mesmo se ela estiver correta, e essas considerações justificarem mesmo uma situação desigual de distribuição de bem-estar, isso não se aplica ao caso em questão colocado por Nigro, a saber, de que os seres mais racionais, além de terem vidas mais significativas, são seres com maior valor. Veremos por que a seguir:

#66 – O fato de os animais não humanos estarem numa situação ruim não é justa/ alguém não possui maior valor por ser racional

O principal erro consiste em não incorporar uma percepção sobre nós mesmos fundamental para tornar possível qualquer raciocínio em ética: perceber que eu sou (ou, que cada um é) apenas mais um dentre tantos outros indivíduos com necessidades, e que, por isso, de um ponto de vista objetivo, ninguém possui valor maior. Esse ponto será melhor exemplificado em outra sessão, quando discutiremos o egoísmo (#147 até #157). Outra percepção fundamental que é perdida de vista, é que a qualidade de vida atual de cada indivíduo depende, em alto grau, da sorte. Isso porque, para alguém ser um indivíduo com alta capacidade racional, do tipo defendido por Nigro como indicando que seus portadores possuem maior valor, ele precisa ser membro da espécie Homo sapiens, e ter chegado até à idade adulta sem sofrer doença, acidente ou qualquer outro evento que o impedisse de adquirir tal capacidade racional. Todas essas condições dependem da sorte do agente, não do seu mérito. E, dependem em alto grau da sorte, porque a probabilidade de alguém que nasceu com uma qualidade de vida razoável ter nascido com uma muito pior é altíssima. Isso é devido à imensa quantidade de indivíduos sencientes existentes no mundo com uma qualidade de vida muito abaixo de qualquer coisa que se possa de chamar de minimamente boa. Já podemos constatar isso mesmo entre os humanos, onde muitos morrem de fome. Mas, pense, por exemplo, nos bilhões de animais existentes nas granjas industriais, vivendo em gaiolas onde não podem se mover, sendo debicados a ferro em brasa, com doenças não tratadas, ossos quebrados, ou nos trilhões de animais morrendo de inanição, ou sendo devorados vivos por parasitas, ou sendo predados, ou que nascem com sérias deformidades por obra da “mãe” natureza. O fato de eu ou você termos nascido como pertencendo a uma parcela mínima (que quase desaparece, em termos de porcentagem, se contarmos a totalidade de indivíduos), depende de muita sorte, não de mérito algum. Supondo que fosse diferente: que minha qualidade de vida atual dependesse exclusivamente de mérito meu (que nenhuma parcela de sorte tivesse tido influência; exatamente o contrário do que acontece na vida real), mesmo assim isso não seria razão para pensar que eu possuo valor maior do que os outros indivíduos. Isso porque, como vimos, uma possível justificativa para se estar numa situação pior dependeria de mérito, mas com a condição essencial que todos partissem do mesmo nível de bem-estar e tivessem iguais oportunidades para conseguir o bem-estar que consegui. Sabemos que a vida real está perto do oposto disso (alguns nascem em situações muito boas, enquanto que a imensa maioria dos seres sencientes, em situações beirando ao inferno). Num caso assim, eu teria dever de melhor a situação de quem está numa situação pior. Como vimos, a única maneira de se dizer que os que estão na situação pior devem continuar nessa situação pior, é se a mesma situação é justa (ou seja, se existe para impedir que esses indivíduos causem mal a outros, ou se é uma punição por uma injustiça cometida no passado). Nenhuma dessas situações se aplicam à nossa desconsideração pelos seres sencientes não humanos. Para começar, os dois motivos pelos quais se explica os animais não humanos estarem numa situação péssima são o desejo dos humanos em explorá-los e a loteria natural (a maneira como acontecem os processos naturais, que favorece os genes às custas de prejudicar em alto grau os indivíduos portadores dos genes). Assim sendo, o fato de alguns indivíduos estarem numa situação melhor devido à posse da racionalidade, ou a pertencerem a determinado grupo (uma espécie, por exemplo), enquanto que outros estão numa situação terrível, não é justa. É dever moral modificá-la.

#67 – Meta de neutralizar a sorte

Todas as considerações acima em conjunto formam a base para a conclusão de que um dos objetivos principais da moralidade é neutralizar a sorte, dando uma oportunidade eqüitativa de cada indivíduo estar com a qualidade de vida melhor possível, pesando imparcialmente as qualidades de vida de cada um dos indivíduos sencientes existentes (ou seja, como tendo o mesmo valor). Essa é uma característica do princípio ético igualitarista, como veremos em outra sessão (#68, #73, #74, #113, #118 até #125, #156, #157) , e sua justificativa depende do egoísmo ser injustificável, como também veremos adiante (#147 até #157). Agora deve estar claro onde está o erro com o argumento de Nigro. O erro consiste em constatar que “esse indivíduo teve a sorte de ter uma qualidade de vida melhor do que a dos outros” (alguém ser racional, por exemplo); e, daí, saltar para a conclusão de que “então, esse indivíduo possui maior importância moral do que os outros, uma importância tão grande que torna justificável assassinar os outros para melhorar sua situação”. Esse mesmo erro, visto de outra forma, seria constatar que “esse indivíduo está numa situação ruim” e daí saltar para a conclusão de que, “então, é justo que esteja nessa situação”. Como vimos anteriormente, não há nada na constatação de que alguém teve sorte que dê suporte à conclusão de que esse alguém é mais especial, de um ponto de vista moral, do que outros. A conclusão moral que deveria se seguir disso é exatamente o contrário. Ao invés de ser correto prejudicar os outros para aumentar ou manter a qualidade de vida do indivíduo na melhor situação; é dever de tal indivíduo diminuir um pouco a sua qualidade de vida com vistas a aumentar a qualidade de vida dos indivíduos que estão na pior situação. Consegue-se, assim, no final das contas, um resultado mais igualitário entre níveis de qualidade de vida, entre os indivíduos.

#68 – Questões com relação à meta igualitarista e com relação ao argumento da importância do mérito/sorte

Nesse ponto surgiriam novas perguntas: (1) Onde traçar a linha sobre o quanto um indivíduo que está na melhor situação deve doar para melhorar a situação de quem está na pior situação? (2) A igualdade (uma noção comparativa entre a qualidade de vida dos indivíduos) é importante nela mesma, ou apenas porque melhora a situação daqueles que estão na pior da situação? Ou seja: é importante que os indivíduos estejam tão bem quanto os outros, ou é importante que os indivíduos estejam tão bem quanto seria possível estar (sem comparação com o nível dos outros)? O objetivo desse artigo não é adentrar nessas importantes questões. O objetivo de mencionar esse assunto é mostrar que não há nada no fato de alguém ter nascido como membro da espécie humana (com todas as qualidades que tornam uma vida humana boa) – um fato meramente dependente da sorte, e não do mérito - que sirva como razão para sustentar a tese de que indivíduos assim valem mais. E, outro detalhe importante: mesmo se fosse algo que resultasse de mérito, ainda assim não se deveria concluir que indivíduos assim deveriam ser intitulados a um status maior. Isso porque, é falso que todos tiveram oportunidades iguais para chegar no nível de bem-estar onde se encontram, e, mais importante, também é falso que os que estão na situação pior estão nela ou porque a merecem ou porque ela existe para impedir que estes causem danos a outros.

#69 – Os que estão na situação melhor tem dever de melhorar a qualidade de vida dos que estão na situação pior

Essa conclusão a qual se chega por meio do raciocínio acima é exatamente a conclusão oposta do raciocínio de Nigro. Ao invés de ser justificável matar um indivíduo para beneficiar outro, que supostamente teria maior valor por ter uma vida com qualidade maior, o indivíduo numa situação melhor tem o dever de ajudar a aumentar o nível de bem-estar de quem está na pior situação. Temos então um argumento que explica o erro prima facie de assassinar. O argumento parte da constatação de que matar alguém é, geralmente, lhe prejudicar (o que envolve principalmente o dano por privação do desfrute, quando não também a inflição de sofrimento), e prejudicar de maneira grave (impede totalmente qualquer desfrute futuro). Em seguida, constata-se que, de um ponto de vista racional, não existem bons motivos para supor que um indivíduo seja mais especial do que outros (como veremos mais detalhadamente na discussão sobre o egoísmo, em #147 até #157). Daí, segue-se a regra moral contra assassinar, baseada na idéia de que o prejuízo por privação causado a alguém é uma razão suficiente (mas não necessária, como veremos no parágrafo a seguir) para haver mal em matar.

#70 – Exemplos de exceções à regra contra matar: legítima defesa e eutanásia

Note que essa regra é prima facie, ou seja, existem razões para supor que nem sempre seja errado matar. Vejamos dois exemplos. Um bem conhecido é o princípio da legítima defesa. Se um indivíduo, (planejadamente ou não) coloca a vida e integridade física de outro em risco, esse outro (ou terceiros), tem justificativa para defendê-lo, e utilizar a força necessária para neutralizar o ataque. Se for necessário tirar a vida do atacante, ainda assim o causar a morte se justifica, pois o problema ético em questão surge exatamente do comportamento (intencional ou não) do atacante. Outro exemplo conhecido é o da eutanásia. Existem, infelizmente, situações onde um indivíduo está com uma qualidade de vida extremamente ruim (a única coisa que ele sente são sofrimentos extremos a cada instante, e nada de desfrute), e, sem possibilidade alguma de melhora. Mesmo nesses casos, existem raros indivíduos que possuem uma preferência por continuar vivendo. Nesses casos raros onde o indivíduo, mesmo assim deseja continuar vivendo, parece razoável enxergar o respeito pela preferência do indivíduo (ainda que não haja possibilidade de desfrute no futuro) como gerando uma razão contra matar. Contudo, a maioria dos casos onde a vida em questão está numa situação onde chega se cogitar a eutanásia (ou seja, onde não é mais a vida que representa um bem para o indivíduo que a vive – esta representa um grande mal - mas sim a morte), vêm acompanhada de uma preferência do próprio indivíduo em morrer. A questão específica da eutanásia será melhor discutida em uma sessão posterior (#70 até #72, #175 até #179).

#71 – Impossibilidade de desfrute, satisfação de preferências, e a justificação da eutanásia

O erro em matar parece se configurar, pelo menos, a partir de duas razões suficientes, mas não necessárias: o prejuízo pela privação do desfrute futuro, ou o prejuízo pela violação de uma preferência. Contudo, existem casos onde nenhuma dessas duas condições está presente: não há possibilidade de desfrute no futuro, e o próprio indivíduo expressa uma preferência por morrer. Existem casos também onde não há nenhuma possibilidade de desfrute no futuro, mas o indivíduo não é capaz de formular preferências (pense, por exemplo em um bebê que irá sobreviver por mais algumas semanas apenas, com a espinha para fora do corpo, não sentindo outra coisa a não ser um sofrimento extremo). Em casos assim, o respeito por esses indivíduos e por seu sofrimento nos indica que a coisa certa a se fazer é tirar suas vidas. Nesses casos, a morte não lhes é um prejuízo. Prejudicados eles serão (e de maneira muito grave) se continuarem vivos. Alguém teria de ter uma veia muito sádica para prolongar sofrimentos desse tipo, sabendo que não existem chances de recuperação.

#72 – Os casos onde se justifica matar não violam a exigência de imparcialidade

Assim, temos pelo menos duas situações (legítima defesa, e determinados casos de impossibilidade de algum desfrute no futuro) onde se justifica eticamente matar. Mas, perceba que, embora essas situações dependam do motivo não ser fútil, não são o que Nigro entende por “motivo importante” (danar um ou alguns indivíduos de maneira extrema para beneficiar outros, que se pensa ter valor maior por ter nascido em determinada espécie). O erro de Nigro ao acessar as motivações é violar a imparcialidade: nos casos onde ele pensa que é correto matar, extrai tal “justificação” do pensar que determinados indivíduos valem muito e outros valem quase nada. Como vimos (#3 até #28), as razões que ele endereça para sustentar essa conclusão (o pertencer a espécie humana e a posse da racionalidade) não conseguem êxito.

#73 – O quão erradas são as conseqüências do especismo? Qual a prioridade moral em aboli-las?

Se perguntarmos que indivíduos se encontram na situação pior (levando-se em conta todos os seres sencientes de que temos notícia), sem dúvida a grande maioria dos animais não humanos se encontra nessa situação. Quem sabe o que é uma granja industrial, e quem sabe como são os processos da vida na natureza   [4] sabe que não houve nenhuma outra ocorrência ao longo da história conhecida que se compare a tamanho inferno. Geralmente, quando queremos lembrar de algo horrível, mencionamos o holocausto. Mesmo concordando que o holocausto foi uma das coisas mais moralmente horríveis que já aconteceu, a questão é que, como apontou o filósofo Stuart Rachels[5] , se levarmos em conta o nível de sofrimento por indivíduo, o número de indivíduos mortos, e o nível de sofrimento agregado, se contarmos somente a carnificina produzida pelas granjas industriais nos últimos vinte anos, isso já é o equivalente a cinco mil holocaustos.

#74 – A comparação entre granjas industriais e o holocausto e a questão da prioridade

Alguém poderia objetar, nesse ponto, que a vida dos humanos vale mais, e que a comparação não vale. Como foi discutido detalhadamente até aqui, nenhum argumento oferecido até agora para sustentar essa tese teve êxito. Isso porque, no que é relevante para alguém ser considerado moralmente (a possibilidade de alguém ser prejudicado; que depende unicamente da capacidade de desfrutar e sofrer), humanos e não humanos sencientes estão em pé de igualdade. Contudo, para efeito de argumentação, vamos supor que alguém provasse que os animais não humanos possuem um valor, enquanto indivíduos, de apenas 10% do que valem os humanos. Mesmo assim, teríamos de assumir que as granjas industriais, por exemplo, são muito piores do que o holocausto (se levarmos em conta número de vítimas, quantidade de sofrimento por indivíduo, sofrimento agregado, etc.). Isso porque, mesmo concedendo, para efeito de argumentação, que os animais não humanos valem dez vezes menos, as granjas industriais, somente nos últimos vinte anos, seriam o equivalente a 500 holocaustos, em termos de sofrimento e mortes. Então, mesmo que os animais não humanos valessem apenas 10% dos humanos, o holocausto ainda assim seria algo não tão ruim quanto as granjas industriais (as granjas industriais seriam 500 vezes pior). Antes que se distorça minha conclusão, o que quero dizer não é que o holocausto não foi uma coisa moralmente hedionda, e nem diminuir a importância dessa questão; o que quero dizer é que as granjas industriais (e outras conseqüências do especismo) são muito mais moralmente hediondas do que se imagina. A conclusão a ser tirada aqui é que levar a ética a sério (e não apenas como um palavreado retórico) implica em ver a situação dos animais não humanos como prioritária. Enxergar a coisa assim, por mais estranho que pareça à primeira vista, é cumprir com a imparcialidade (como será mais detalhado em outras sessões: #113, #118 até #125, #156 e #157): a situação atual dos animais não humanos deve ser vista como prioritária não porque eles são animais não humanos; mas porque estão atualmente na pior situação. Se fossem outros indivíduos na situação pior, a prioridade deveria ser deles.

Notas:


[2]Ver, por exemplo o trabalho do primatologista Frans, de WAAL (1996). Good Natured: The Origins of Right and Wrong in Humans and Other Animals. London: Harvard University Press...Entrevista com o autor disponível em http://www.comciencia.br/comciencia/?section=8&edicao=17&tipo=entrevista. Um filósofo que defende que animais não humanos possuem capacidade para agência moral é Steve Sapontizs. Cf. SAPONTZIS, Steve F. Morals, Reason and Animals. Philadelphia: Temple University Press, 1987 pp. 30, 31.

[3]Para uma boa descrição, assista o documentário Terráqueos (Earthlings) ou leia SINGER, P., Libertação Animal, Porto Alegre/São Paulo: Lugano, 2004.

[4]Sobre como é a vida na natureza, ver DAWRST, Alan, “How Many Animals are There?”, Essays on Reducing Suffering, 2009a. http://www.utilitarian-essays.com/number-of-wild-animals.html; DAWKINS, R., River Out of Eden: A Darwinian View of Life, New York: Harper Collins Publishers, 1996; DAWRST, Alan, “The predominance of wild-animal suffering over happiness: An open problem”. Essays on Reducing Suffering, 2009b, http://www.utilitarian-essays.com/wild-animals.pdf. GOULD, Stephen. J., Hen's Teeth and Horse's Toes: Further Reflections in Natural History, New York: W. W. Norton, 1994, pp. 32-44. HORTA, Oscar, “Disvalue in Nature and Intervention”, Pensata Animal, 2010. http://www.pensataanimal.net/painel/138-devemos-intervir-na-predacao/350-oscar-horta. MILL, J. S., Nature, The Utility of Religion and Theism, Rationalist Press, 1904, pp. 07-33.

[5]Cf. Rachels, Stuart. Vegetarianism. In: Beauchamp, T. e Frey, R. The Oxford Handbook of Ethics and Animals [a ser publicado]. Disponível em http://www.jamesrachels.org/stuart/veg.pdf


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