quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Parte 6 – A crença no “senso de proporção”


Parte 6 – A crença no “senso de proporção”

#126 – O argumento do “senso de proporção”

Outra tentativa empregue por Nigro para justificar o status moral superior dos membros da espécie Homo sapiens é o seguinte:

“Somos superiores aos macacos, aos porcos, aos peixes, às formigas Issas (sic) e às laranjas. É importante ter senso de proporção e de realidade. [...]Quanto ao Reinismo, prefiro ver uma pedra ser destruída a pó a uma arvore ser derrubada. Prefiro ver um pé de alface ser arrancado da terra para dar comida a uma pessoa faminta a ver um peixe ser morto. Quanto ao especismo prefiro o abate de um porco ao seu assassinato ou de seu filho”.

 Objetivo do argumento do senso de proporção é que o leitor infira, da premissa plausível de que é melhor “ver um pé de alface ser arrancado da terra para dar comida a uma pessoa faminta a ver um peixe morto” (ou seja, a de que é pior matar um ser senciente do que algo vivo não senciente), que então é melhor o abate de um porco do que o de um humano.

#127 - O argumento do senso de proporção não serve para justificar o assassinato de animais

Esse argumento também têm inúmeros problemas. O primeiro deles (que não é o principal), é que, mesmo que fosse verdade que a vida dos humanos valesse mais, e que fosse, devido a isso, pior matar um humano do que um porco, essa premissa não serviria para sustentar a conclusão de que, então, está justificado (que é moralmente correto) assassinar animais não humanos. O motivo dessa premissa não sustentar a conclusão já é exposto mesmo pelo raciocínio de Nigro: é sempre menos pior matar algo vivo não senciente. Então, já que, como Nigro concorda, é melhor arrancar um alface do que matar um peixe, e já que é possível para nós vivermos com uma dieta exclusivamente vegetal, segue daí que, os humanos têm sempre o dever de escolher comer vegetais – devido ao dever de escolher causar o menor dano (mesmo partindo do pressuposto altamente duvidoso de que é um dano para o vegetal ser comido). O próprio argumento de Nigro incorpora, sem querer, essa máxima. Perceba novamente que essa conclusão se seguiria mesmo se fosse verdade que seres humanos tivessem um status moral superior.

#128 - Erro do argumento do senso de proporção: deixar de fora a característica moralmente relevante principal: senciência

O problema principal do argumento, contudo, é outro: ele não leva em conta uma distinção particularmente relevante que distingue os humanos das laranjas, mas não distingue os humanos dos demais animais sencientes: a capacidade de sofrer um dano, por inflição de sensação ruim ou privação de sensação boa. É espantoso como exatamente a característica relevante principal em qualquer raciocínio ético é deixada de fora nos argumentos de Nigro (e nas defesas do especismo em geral): a possibilidade da vítima ser prejudicada. Humanos diferem de laranjas porque os primeiros são sencientes; as segundas não. É devido a essa mesma característica que porcos, cães, galinhas, peixes diferem relevantemente de de laranjas – e assemelham-se a seres humanos. E, o mais importante: diferentemente de outras características que poderiam ser listadas para agrupar similaridades entre esses indivíduos, a senciência é uma característica moralmente relevante. Por exemplo, poderíamos encontrar outras características similares que nos permitiriam agrupar humanos e alguns animais não humanos no mesmo grupo, e laranjas, limões e alfaces em outros. A posse de orelhas agruparia, por exemplo, humanos, porcos e cães de um lado, e laranjas, limões, minhocas, águas-vivas e alfaces de outro. Contudo, essa característica, embora sirva para agrupar esses indivíduos, é moralmente irrelevante (apesar de ser relevante em outros contextos, como, por exemplo, se quiséssemos estudar o ouvido de cada espécie).

#129 - Como saber se uma característica é moralmente relevante: perguntar do que depende o pensamento sobre moralidade/ importância da senciência/importância da vulnerabilidade e da possibilidade de influenciar o valor moral da situação

Para entendermos por que tal característica é moralmente irrelevante, e porque a senciência é uma característica moralmente relevante, temos de nos perguntar qual a propriedade mais básica que dá sentido ao pensamento moral. Em outras palavras, temos de perguntar: “do que depende o pensamento moral, para fazer sentido?”. Embora seja difícil responder a essa pergunta elegendo uma característica apenas, nenhuma outra funcionará se essa não estiver presente (assim, essa é uma característica necessária para haver sentido pensar em moralidade): a possibilidade de indivíduos serem beneficiados ou prejudicados com decisões. Como já foi mencionado anteriormente, imagine um mundo onde não houvesse possibilidade de se prejudicar nenhum indivíduo, seja por inflição de sensação ruim, seja por privação de sensação boa, seja por trair sua confiança, seja por contar-lhe uma mentira, ou qualquer outra forma de dano. Imagine ainda que, qualquer escolha que fizéssemos teria sempre o melhor resultado para todos os indivíduos atingidos: não teríamos poder, por exemplo, para alterar a quantidade de satisfação que eles teriam para desfrutar no futuro, nem no presente. Em um mundo assim, onde os indivíduos fossem invulneráveis, não haveria necessidade de pensamento moral (nem faria sentido o mesmo), pois, qualquer escolha que fizéssemos teria exatamente os mesmos resultados. Agora, imagine que os indivíduos em questão não fossem invulneráveis (que estivessem sujeitos a doenças, sofrimento, morte, etc.), mas que não tivéssemos possibilidade de alterar, nem para melhor, nem para pior, a situação desses indivíduos. Numa situação assim (onde há impossibilidade de alteração do valor moral da situação), também não faz sentido o pensamento moral. É porque a vida real não é assim (ou seja, podemos influenciar a realidade dos indivíduos atingidos por nossas decisões, para melhor ou para pior; e para muito melhor ou muito pior), que faz sentido o pensamento moral. Num mundo onde não tivéssemos escolha, ou, num mundo onde todas as escolhas possíveis levassem a resultados com igual valor em termos de benefício e prejuízo, não faria sentido o pensamento moral. O pensamento moral depende crucialmente de duas coisas, para fazer sentido: que seja possível alterar o valor moral de uma situação (tornar uma situação melhor ou pior), e que os indivíduos atingidos pela decisão sejam vulneráveis (pois é com relação ao seu bem que depende o valor moral da situação ser positivo ou negativo).

#130 - Por que a senciência é um critério moralmente relevante

Entendendo por que o ponto central de toda a ética é a idéia de que é possível prejudicar ou beneficiar os indivíduos atingidos por nossas decisões, fica fácil entender por que a senciência é um critério moralmente relevante. A senciência é uma característica necessária, tanto para haver prejuízo ou benefício, quanto para haver um indivíduo. Quanto ao segundo ponto, é preciso lembrar que só faz sentido falar em indivíduo quando existem eventos mentais. Eventos mentais (o que inclui sensações como dor, prazer, fome, sede, ouvir, cheirar, sentir o gosto, ver, etc.) são o tipo de coisa que dependem, para existir, que o organismo em questão faça a distinção entre sujeito e objeto (daí a noção de indivíduo). Pelas melhores teorias científicas que dispomos atualmente, para um ser vivo ser capaz de tal coisa, é necessário que tenha um cérebro e um sistema nervoso central (ou, um aparato similar que desempenhe a mesma função). É por esse motivo que só seres sencientes são indivíduos. Em outras palavras, é por isso que dentro do porco, do humano e do peixe “há alguém” (e reconhecemos isso quando reconhecemos que esses seres sofrem; se há dor, é porque há alguém sentido a dor), alguém que não há dentro da laranja, nem do garfo, nem do tijolo. Quanto ao primeiro ponto, como já foi dito anteriormente, uma vez que o ser é senciente, ele se caracteriza pela aversão ao sofrimento (sensações ruins) e gosto pelo prazer (sensações boas). Assim, existem duas formas básicas de possibilidade de prejuízo: ou pela presença de sensação ruim (o que explica por que é moralmente errado estuprar, por exemplo), ou pela ausência de sensação boa (o que explica o erro moral básico em assassinar, por exemplo, já que fecha a possibilidade para o desfrute). Perceba que nenhuma coisa não senciente (seja viva, seja não viva) é capaz de ser prejudicada dessa maneira, pois são incapazes de sensações.

#131 - Por que a espécie é um critério moralmente irrelevante/ “mas, e as plantas?”

É incrível como, da percepção de que laranjas e porco têm vida (uma constatação de fatos biológicos), muitas pessoas dão o salto para uma conclusão moral totalmente errada: “então, é essa a característica que torna o caso de tais seres relevantemente similares, em termos morais, e não há nada de moralmente relevante que os distinga”. Raciocínios desse tipo estão por trás de alegações como “mas, vacas e alfaces são todos seres vivos”. O que é perdido de vista (por tolice ou por maldade) nesse tipo de raciocínio é exatamente o principal: alguns tipos de seres vivos são sencientes (é possível prejudicá-los ou beneficiá-los de uma forma que não é possível prejudicar ou beneficiar seres não sencientes) e outros não. Entender esse ponto é importante para entender por que eleger como critério para consideração moral (e, portanto, agrupar os indivíduos de acordo com esse critério) a posse de orelhas, o número de letras no nome ou o tamanho do pé é moralmente irrelevante: tais coisas não influenciam na possibilidade de alguém se prejudicado/beneficiado nem na quantidade desses possíveis prejuízos/benefícios. É fácil perceber que critérios como o tamanho do pé, número de letras no nome e data de aniversário são irrelevantes. Contudo, existem outros critérios igualmente irrelevantes (raça, gênero, e espécie biológica) que é muito difícil que as pessoas em geral percebam sua irrelevância. A espécie biológica de um indivíduo é moralmente irrelevante porque, assim como a data de aniversário, o número de letras no nome e o formato do pé, não influenciam na possibilidade desse indivíduo ser prejudicado ou beneficiado. Uma vez que um indivíduo é senciente, é possível que ele seja prejudicado/beneficiado, e a espécie biológica a qual ele pertence não influi nisso. Por outro lado, uma vez que o ser é apenas algo vivo, não senciente, sua espécie biológica também em nada muda o fato de não ser possível prejudicá-lo, nem por privação de sensação boa, nem por inflição de sensação ruim. Assim, o critério da espécie biológica é sempre moralmente irrelevante, quer estejamos falando de seres sencientes, quer estejamos falando de seres não sencientes. É por isso que o especismo é sempre errado.

#132 – Por que o critério da espécie e da posse da racionalidade são irrelevantes, mesmo enquanto critérios secundários, para o valor de um indivíduo

Nigro poderia objetar, nesse ponto, que reconhece que a senciência é uma característica de relevante similaridade entre humanos e animais não humanos. Contudo, poderia dizer que seu argumento é outro: que, apesar da senciência colocá-los todos sob o mesmo grupo, há outra característica moralmente relevante que torna os humanos superiores. O problema com essa saída é que os dois argumentos que Nigro oferece com vistas a listar essas características não obtém sucesso. Eles já foram analisados anteriormente (em #3 até #28). São o argumento de que alguém tem maior valor por ser racional, e que humanos tem maior valor por serem humanos. O primeiro argumento, como vimos, tem dois problemas: (1) Não serve para provar a superioridade humana, pois alguns animais não humanos são mais racionais do que alguns seres humanos; (2) Mesmo que fosse verdade que todos os seres humanos fossem mais racionais que todo e qualquer animal não humano, tal constatação não serviria de base para a conclusão de que os mais racionais possuem maior valor do que os menos racionais. Isso porque a posse da racionalidade, como já vimos detalhadamente anteriormente (#3 até #22), apesar de ser um critério moralmente relevante para saber quem deve ser responsabilizado pelas suas escolhas (pois influencia na capacidade de alguém em saber o que é justificável e o que não é) não é moralmente relevante para saber quem deve ser respeitado (pois não influencia na possibilidade de alguém ser prejudicado, por inflição ou privação).  O segundo argumento, como já vimos anteriormente também de maneira detalhada (#23 até #28), é fraco porque é circular (assume o que deveria provar).

#133 - Implicações do critério da posse da razão: hierarquia intelectual entre humanos

Apenas como experiência de pensamento, vamos supor que Nigro estivesse correto ao afirmar que, quanto maior a posse da razão de um ser, maior o valor da sua vida e que isso dá a ele direito de assassinar e escravizar os menos racionais que ele. Uma primeira implicação desse raciocínio é que, então, seria correto matar os humanos bebês ou idosos senis, ou portadores de doenças mentais degenerativas para beneficiar animais não humanos mais racionais do que eles. E, outra implicação curiosa é que, se fosse verdade que quanto maior a posse da razão, maior o valor do indivíduo, Nigro teria de defender uma hierarquia intelectual entre os humanos. E, se, como Nigro pensa, se a maior posse da razão intitula alguém a assassinar a escravizar os outros (e não apenas a prioridade ao ser salvo, que, também como vimos anteriormente, em #55, #112, #113, #118 até #125, seria problemático), ele teria de, não só defender que, entre alguém salvar ele mesmo ou alguém muito inteligente, deveria salvar o mais inteligente, mas também que estaria correto ele ser escravo de algum Einstein (ou, ser assassinado para o Einstein saborear sua janta). Nigro poderia objetar, dizendo que deveríamos traçar uma linha, em termos de posse da razão: qualquer um que se encontre acima não pode ser utilizado como mero recurso, qualquer um que se encontre abaixo pode. O problema é que, se a linha é abaixada em um ponto tal para incluir todos os seres humanos (incluindo aqueles com paralisia cerebral, por exemplo), então isso automaticamente terá de incluir todos os animais não humanos sencientes. Se, por outro lado, a linha é elevada a tal ponto de excluir todos os animais não humanos sencientes, terá que excluir todos os humanos bebês, crianças muito pequenas, idosos senis e portadores de determinadas doenças mentais (e também potencialmente os humanos que agora são racionais, porque um dia poderemos nos tornar idosos senis, ou perder a posse da razão por algum acidente ou doença).

#134 - Seria argumento do senso de proporção uma falácia naturalista?

Não fica claro, na exposição que Nigro faz de seu argumento, se ele faz a inferência que irei mencionar a seguir. Se tal inferência estiver implícita no argumento, então o argumento é também um exemplo de falácia naturalista (#62, #83, #84). A inferência que suponho estar implícita no argumento de Nigro parte da seguinte premissa: se levarmos em conta os objetos naturais, é possível construir uma escala, em termos de organização do organismo, dos mais simples para os mais complexos. Tal premissa, enquanto descrição factual do que acontece na natureza é, sem dúvida, verdadeira. É possível observar também que, geralmente, os organismos mais complexos sobrepujam os mais simples (embora isso nem sempre seja verdadeiro; basta lembrar como somos vulneráveis a vírus). Enquanto premissas descritivas, são premissas plausíveis. O erro consistiria em inferir desse tipo de premissa (descritiva), um juízo moral: “então, já que os organismos mais complexos subjulgam os mais simples, está certo subjulgar os mais simples”. Como já vimos anteriormente, isso é uma falácia naturalista, já que assume que o que dá suporta à conclusão que é um juízo de valor é a descrição dos fatos. Em outras palavras, a falácia naturalista é uma falácia porque envolve concluir “é assim que deve ser (valor) porque é assim que é (fato)”. É fácil entender que, só porque uma coisa é de tal maneira, não significa que seja certo ou justo que seja dessa maneira.

#135 - Quanto mais complexo o organismo, maior proteção é devida a esse organismo?

Alguém poderia objetar que o argumento do senso de proporção não é uma falácia naturalista, pois a conclusão de que devemos valorizar sempre os organismos mais desenvolvidos não surge devido a esses organismos geralmente já se saírem melhor em termos competitivos, mas, sim, porque a vida, quanto mais complexa, maior valor possui, independentemente do que acontece na prática. Se é isso que o argumento pretende, então possui uma premissa de valor implícita: a de que vidas mais complexas são sempre mais valiosas, de um ponto de vista moral. Mesmo não sendo uma falácia naturalista, se modificado nesse sentido, o argumento continua problemático, devido à pouca plausibilidade dessa premissa de valor. Já vimos anteriormente (#17 até #19, #39, #43, #44, #55, #116, #128) que, em se tratando do critérios relevantes para saber a quantidade de proteção que alguém merece, a senciência é um pré-requisito necessário para alguém poder ser prejudicado (por inflição de sensação ruim ou privação de sensação boa), e, uma vez que o indivíduo é senciente, quanto maior sua vulnerabilidade, e quanto pior sua situação, mais forte é o seu requerimento de prioridade. Nada disso depende da complexidade do organismo, uma vez que o organismo é senciente. O mais importante a reter de todo esse raciocínio é que a posse da razão não é um critério moralmente relevante para saber o grau de respeito que alguém necessita, mas, sim, a sua vulnerabilidade.

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