quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Parte 7 – Sobre o egoísmo e suas derivações


Parte 7 – Sobre o egoísmo e suas derivações

#136 – O argumento de que outros preconceitos não derivam do egoísmo

Em vários de meus artigos[8], defendi que o egoísmo é eticamente indefensável, e que outros preconceitos como especismo, racismo, homofobia e machismo são derivações direta desse tipo de preconceito. Nigro questionou essa última conclusão. Ele escreve:

“Existem várias confusões conceituais e lógicas ao afirmar que “do egoismo deriva a homofobia, o machismo, o racismo e o especismo”. O egoísta e o altruísta são conceitos extremos, caricaturas fora da realidade. O egoísta ficaria sozinho, assim agiria contra si mesmo. O altruísta se beneficia com o próprio bem que faz. São situações misturadas indescritíveis”.

#137 – Diferença entre egoísmo, altruísmo e igual consideração

O primeiro erro desse argumento é de ambigüidade: Nigro não está a se referir pelos termos “egoísmo” e “altruísmo” os mesmos conceitos que eu explicitei que estava a me referir com as mesmas palavras. Ao que parece, em seu argumento Nigro está a definir egoísta como alguém que nunca considera os interesses dos outros, e altruísta como alguém que nunca considera os seus interesses. Penso que seu argumento deve ser interpretado dessa maneira, pois, de que outra maneira os egoístas e altruístas poderiam ser “caricaturas fora da realidade”? Nos artigos que escrevi sobre egoísmo, defini “egoísta” como a atitude de só levar em conta os interesses dos outros quando isso convém ao agente (e não, nunca levar em consideração os interesses dos outros). Isso é muito diferente de nunca levar em conta os interesses dos outros. É por isso que o mundo está cheio de egoístas, e nem por isso eles estão isolados, agindo contra si próprios (isso seria muito bom se fosse verdade). Outro ponto importante é que o conceito que contraponho, em meus artigos, ao egoísmo, é a igual consideração, e não, o altruísmo. Opto por utilizar “igual consideração” justamente por ser comum a crença de que um altruísta considera apenas os interesses dos outros (ou, só considera os seus próprios interesses à medida em que isso satisfazer os interesses dos outros). Alguém que defende a igual consideração, por outro lado, acredita que interesses similares devem receber o mesmo peso, independentemente de qual for o indivíduo portador do interesse. Isso significa que aceitar a igual consideração implica em dar o mesmo grau de importância a interesses similares seja lá se apareçam no próprio agente ou em outros indivíduos (meus interesses não contam mais por serem meus, e os interesses dos outros não contam mais por serem dos outros) “Eu” e “outro” são considerações moralmente irrelevantes, e o raciocínio ético só começa quando percebemos esse ponto.

#138 - O que há de errado com a teoria do egoísmo psicológico

O segundo erro, é que o argumento de Nigro incorpora as mesmas confusões presentes na conhecida teoria do egoísmo psicológico, teoria cujos problemas dediquei um artigo inteiro a apontar [9] . Não vou repetir aqui os argumentos que enderecei contra a teoria no mencionado artigo. O erro principal da teoria, contudo, é o de inferir que, já que um segundo fenômeno se segue sempre de um primeiro (a felicidade do agente seguiria-se sempre que um agente ajuda outra pessoa, de acordo com a teoria do egoísmo psicológico, o que também é questionável), então que o segundo foi necessariamente o que motivou o primeiro a ter lugar. Em outras palavras, quem acredita no egoísmo psicológico acusa quem ajuda os outros de ser egoísta: “você só faz o bem para se sentir bem com isso, e não por preocupação com o outro”. Nesse raciocínio estão várias confusões. A primeira, é que no raciocínio moral (como em outras formas de raciocínio), o que motiva um agente a tomar uma determinada decisão é, antes de tudo, reconhecer que tal decisão é a decisão correta. Reconhecer qual a decisão correta depende unicamente das razões que podem ser oferecidas a favor e contra as várias alternativas disponíveis para o agenete. Se o agente vai se sentir bem ou não fazendo o que escolher não conta como uma razão, em termos de justificativa ética (veremos por que a seguir, em #145). O fato de um agente se sentir bem por ter ajudado outro alguém é um sub-produto do agente ter percebido que fez a coisa certa, e não, o que geralmente motiva a decisão e a ação. O que motiva a decisão é perceber que uma determinada alternativa possui melhores razões a seu favor; o que motiva a ação é o agente tentar colocar em prática uma coisa por pensar que ela é correta (ainda que ela seja mesmo correta ou não). Fora esse erro principal, os proponentes de tal teoria parecem viver em um mundo a parte. Em qual mundo eles vivem, onde as pessoas que ajudam outros seres são beneficiados? Eu gostaria muito de saber que um mundo assim existe. No mundo em que vivo, infelizmente, as pessoas que ajudam os que necessitam, principalmente quando os beneficiados são os animais não humanos, geralmente são massacrados pelo restante da sociedade, sofrem perseguição, são ridicularizados, etc. É muito fora da realidade dizer que, em contextos assim, alguém se beneficia com o próprio bem que faz. Isso não quer dizer, é claro, que não existam pessoas que façam o bem por motivos mesquinhos (isso existe aos montes), como fazer o bem para ver a si próprio como um santo moral, quando não por medo de punição divina ou por medo de reencarnação, como acreditam alguns religiosos. O que isso tudo quer dizer é que é uma generalização apressadíssima, concluir, do fato de que algumas pessoas às vezes são assim (fazem o bem por motivos mesquinhos), então que todas as outras pessoas em todas as situações são assim, e que só é possível que seja assim. Ainda mais quando o argumento que sustenta toda a tese está envolvido numa confusão de pensar que, só porque um sentimento se segue de uma ação, então que certamente foi esse sentimento (e apenas esse sentimento) que motivou a ação.

#139 – Mesmo se o egoísmo psicológico fosse uma teoria correta sobre a motivação não justificaria  egoísmo normativo: Confusão entre moralidade da decisão (seja ato ou omissão) e moralidade da intenção

Mesmo que o egoísmo psicológico fosse plausível, não há nada nele que pudesse justificar o egoísmo. Isso porque, como o próprio nome já diz, é uma teoria psicológica (descritiva) e não, moral (normativa). Para entender melhor esse ponto, vamos supor, para efeito de argumentação, que a teoria do egoísmo psicológico fosse verdadeira, e que toda motivação por trás de atos de ajuda aos outros seja o benefício para o próprio agente. Tendo descoberto que, por trás de todo ato (seja altruísta, seja de igual consideração, seja egoísta), a motivação é igual, segue daí que todo ato ou omissão possui o mesmo valor moral? Não. O máximo que se poderia concluir disso é que todas as motivações (não os atos ou omissões!) possuem o mesmo valor moral, por serem iguais. As decisões egoístas continuariam tendo um valor moral negativo, por serem prejudiciais (e por outros erros que veremos na seqüencia, em #147 até #157). O erro envolvido de saltar de uma consideração para outra (avaliação sobre a moralidade da motivação e avaliação sobre a moralidade da decisão) é herança da visão que enxerga a moralidade das decisões como dependente da motivação do agente, e não das conseqüências sobre os atingidos. Não é necessário muito esforço para ver que esse raciocínio é ruim. Pegue por exemplo o ato de torturar uma criança. Do que depende a imoralidade desse ato? Obviamente, depende das conseqüências sobre a criança. Torturar crianças é uma coisa errada porque faz mal às crianças. Esse é o motivo principal de ser errado torturar: faz mal às vítimas. O fato do agente ter uma boa motivação em torturar (supondo que o agente pense que é certo torturar uma criança) não muda o erro. Nem o fato de alguém possuir uma má motivação para fazer um bem muda a moralidade do bem que fez. Ajudar os necessitados continua sendo um bem, mesmo quando feito, por exemplo, por motivos mesquinhos. A motivação, nesse caso, é que não foi boa. O erro todo reside em ver em conjunto duas coisas que precisam ser avaliadas de maneira distinta: a moralidade da decisão (seja ato, seja omissão) e a moralidade da intenção. A primeira visa responder o que deve-se fazer (é uma avaliação sobre a decisão que depende da avaliação sobre o que é um estado de coisas bom e o que é um estado de coisas ruim – no exemplo que dei, o estado de coisas ruim é o dano sobre a criança). Já a segunda visa avaliar o caráter do agente, não a decisão. A moralidade da intenção depende basicamente de se saber se o agente acreditava que estava fazendo algo certo ou não. A moralidade da decisão, ao invés, depende de uma decisão ser moralmente correta ou não (ter ou não justificativa a seu favor), o que independe das crenças dos agentes sobre se ela é correta ou não. É somente devido à plausibilidade dessa distinção que conseguimos reconhecer a possibilidade de alguém fazer um bem com uma motivação má e alguém fazer um mal, mas com uma boa intenção. Esses critérios são separados, e um não influi no outro. Se a moralidade da decisão dependesse da moralidade da motivação, então alguém estaria certo em fazer todo o tipo de coisa horrível, bastaria que esse alguém pensasse que a coisa é certa (daí, sua motivação seria boa e a coisa se tornaria automaticamente correta). Se fosse assim, teríamos o “toque mágico” de poder transformar uma decisão na decisão moralmente correta (fazê-la possuir justificativa a seu favor) simplesmente por acreditarmos que ela é moralmente correta (que possui justificativa a seu favor).

#140 - Preconceitos agente-centrados e objeto-centrados

Desfeitas essas confusões, voltemos então à principal alegação do argumento de Nigro: o de que preconceitos como especismo, racismo, homofobia e machismo não são derivações do egoísmo. Antes de fazer a crítica a esse argumento, penso que há um sentido em que o argumento de Nigro é plausível. Contudo, casos onde esse sentido se aplica são muito raros. Para entender esse sentido, vamos relembrar que, com relação a esses preconceitos mencionados, são possíveis duas formas: agente centrado e objeto centrado. Essas duas formas não são exclusivas dos preconceitos; qualquer princípio que visa oferecer razões, seja justificável, seja injustificável, normalmente aparece em uma dessas formas. Então, a forma do princípio não indica se ele é justificável ou não. Então, esses preconceitos são injustificáveis não devido à sua forma (se objeto centrado ou agente centrado), mas devido a se basearem em características moralmente irrelevantes. Contudo, para melhor entendimento de qual o erro envolvido em cada um desses preconceitos, é importante começarmos a entender que diferentes formas eles tomam. Na forma agente centrado, o preconceituoso afirma que um determinado grupo merece um status superior porque é o seu grupo. Por exemplo, um racista agente-centrado dirá “cada um deve valorizar mais os membros de sua própria raça”.  Já um racista objeto-centrado (ou, paciente-centrado) dirá “os membros da raça x valem mais”. A diferença é que o racista objeto-centrado manterá tal crença quer ele pertença à raça x ou não. O tipo de preconceito objeto-centrado onde o próprio proponente do preconceito não é também membro do grupo favorecido é raro de acontecer, mas acontece principalmente em indivíduos que pertencem a grupos geralmente já discriminados anteriormente como inferiores por outros preconceituosos. Por exemplo, existem pessoas de pele negra que consideram pessoas de pele branca como tendo valor maior, justamente por terem sofrido uma lavagem cerebral por parte dos racistas brancos, o que as fez passarem a acreditar que elas próprias valem menos. Essas pessoas (as vítimas, que acreditam que o preconceito que sofreram está correto) são racistas objeto-centradas. São racistas porque acreditam que a raça é um critério moralmente relevante. O racismo delas é objeto-centrado porque não depende da relação do agente com sua raça. Não é como dizer “cada um que prefira os da sua raça” (nesse caso, seria agente centrado: prescreve atitudes diferentes para cada agente), mas sim, “a raça x vale mais” (prescreve o mesmo tipo de atitude para todo e qualquer agente). É apenas quanto a algumas manifestações (que são a minoria, aliás) desse segundo tipo de preconceito (objeto centrado) que faz sentido afirmar que não deriva do egoísmo. Por exemplo, o humano de pele negra que defende que os humanos de pele branca são superiores pode ser acusado de racismo (por pensar, erroneamente, que a raça de alguém é um critério moralmente relevante), mas não pode ser acusado de egoísmo (pois a raça que defende como superior nem é a raça dele). O outro tipo, agente centrado, necessariamente deriva do egoísmo, pois prescreve que cada um respeite apenas os membros da sua raça, sua espécie, seu gênero, sua nação, sua opção sexual, etc. A maioria das manifestações do preconceito objeto-centrado também derivam do egoísmo, pois o grupo “x” a qual se reivindica possuir um status superior, quase sempre é o do próprio agente que faz a reivindicação.

#141 – Preconceitos são injustificáveis por se basearem em características moralmente irrelevantes

Antes de continuarmos, é importante lembrar que preconceitos, seja lá na forma que vierem (agente-centrados ou objeto-centrados), são eticamente injustificáveis. O motivo disso, como vimos, é a que divisão dos grupos é feita com base numa característica moralmente irrelevante (maiores explicações em sessões anteriores desse texto, como #3 até #28, #89, #90), ou seja, não influenciam naquilo que torna o respeito necessário: a possibilidade de uma vítima ser prejudicada com nossas decisões.

#142 – Racionalizações para camuflar o egoísmo por traz de determinadas reivindicações preconceituosas

Uma distinção importante é a seguinte: o preconceito agente-centrado é sempre derivado do egoísmo; o preconceito objeto-centrado pode ou não derivar do egoísmo. Essa segunda possibilidade, quanto ao preconceito objeto-centrado, torna difícil de se descobrir se alguém defende uma posição porque sinceramente acredita nela ou porque a utiliza como camuflagem para o seu egoísmo. Para entender melhor, considere esses exemplos de racismo paciente-centrado. O indivíduo A, que é lilás, defende que “a raça violeta vale mais”. O indivíduo A não pode ser acusado de egoísmo (pode ser acusado de racismo e de tolice, mas não de egoísmo), pois não pertence à raça que afirma valer mais. Já o indivíduo B, que é violeta, também defende que “a raça violeta vale mais”. Nesse caso, se o indivíduo B está sendo egoísta ou não, depende dos motivos pelos quais ele acredita que a raça violeta vale mais. Se ele acredita sinceramente, por algum outro motivo que não o fato de ele mesmo pertencer à raça violeta, que a raça violeta vale mais, então o seu preconceito não é derivado do egoísmo (o que, nem por isso, o torna justificável). Se, por outro lado, acredita que a raça violeta vale mais devido a ele mesmo pertencer a tal raça, então seu racismo deriva do egoísmo. O que complica a análise é que, normalmente os preconceituosos que tem seus motivos iniciais no egoísmo gostam de disfarçar, alegando outros motivos. Supondo, no exemplo, que a real motivação do indivíduo B defender que a raça violeta vale mais é porque ele pertence à raça violeta, então, ele é um racista por motivos egoístas, mesmo que seja um racista objeto-centrado. Contudo, imagine que ele pretende mascarar esse ponto, para não ser acusado de egoísmo e para tentar dar um ar de maior seriedade ao seu racismo. Provavelmente ele irá alegar que acredita que a raça violeta é superior por outro motivo. O problema é que ele, nesse caso, não acreditará sinceramente nesse motivo. O motivo alegado foi apenas uma racionalização, o motivo real foi outro.

#143 – Racionalizações para não se admitir que a motivação de alguém para o especismo é o egoísmo

Fazendo a ponte com a questão do especismo, temos de reparar no seguinte. A única espécie cujos membros alegam que são moralmente superiores são os humanos. A forma de especismo defendida é objeto-centrada. Ou seja, o que é defendido geralmente é que os humanos valem mais, e não, “que cada um respeite apenas os da sua espécie”. O problema é que os defensores de que os humanos valem mais são, por acaso, todos membros da espécie humana. Todos eles se privilegiarão muito da aceitação dessa crença. Então, são todos muito suspeitos ao reivindicarem tal coisa. É claro, assim como no exemplo acima, do indivíduo violeta, os especistas sugerem outros motivos para explicar por que acreditam que os humanos valem mais (a maior posse da razão, por exemplo, que não se sustenta por motivos que já detalhamos anteriormente, em #3 até #28). Contudo, ao que parece, tais motivos são apenas racionalizações, não o motivo real. E o motivo real é que os humanos defendem o especismo porque estão na ponta tirânica da situação. Sinceramente duvido que os especistas, que não querem admitir que sua motivação é egoísta, defenderiam que, se fosse descoberto que uma outra espécie “vale mais” do que a humana, então que eles mesmos se ofereceriam como churrasco para os membros dessa outra espécie. Isso revela que sua motivação, sim, é egoísta, e os preconceitos, na imensa maioria dos casos, tem origem, sim, no egoísmo; apesar de todos os outros motivos utilizados como racionalizações para negar esse ponto.

#144 – Exemplo de motivação incógnita para a defesa de uma posição que aparentemente é egoísta: a questão do “planetismo”

O próxima passagem no texto de Nigro deixa incógnita a motivação por trás da conclusão:

“Nosso planeta Terra é mais importante que Marte. Eu prefiro que um asteróide caia em Marte do que aqui na Terra. Eu sei que você deve estar me xingando de planetista”.

A convicção de Nigro, de que é preferível que um asteróide caia em Marte do que na Terra pode ou não ter origem no egoísmo. Se o motivo real dele preferir que um asteróide caia em Marte do que na Terra for o de ele estar na Terra e não em Marte, então, com certeza a motivação é egoísta (pois, se ele estivesse em Marte, e for essa a motivação, então ele preferiria que o asteróide caísse na Terra). Contudo, se, por algum outro motivo, alguém manter a mesma conclusão, não é egoísta. Por exemplo, se Nigro acredita que é preferível o asteróide cair em Marte porque na Terra existem seres sencientes possíveis de serem prejudicados e em Marte não, então sua motivação não é egoísta. Da minha parte, concordo com a conclusão de Nigro quanto a esse ponto, exatamente por esse motivo: temos um critério imparcial para defender que é preferível que um asteróide caia em Marte do que na Terra: na Terra existem seres sencientes que podem ser prejudicados; em Marte, tanto quanto se sabe, não. Esse critério é imparcial porque, se fosse invertida a situação (se os seres sencientes estivessem em Marte e não na Terra), então teríamos razões para preferir que o asteróide caísse na Terra. Se existissem seres sencientes tanto na Terra quanto em Marte, então teríamos que dar igual peso aos interesses de cada um desses seres, independentemente de onde estivessem; fazer o contrário seria tornar verdadeira a acusação de “planetismo”, como o autor menciona. Nigro parece ter cometido todas essas confusões em seu raciocínio por ter deixado de fora (e pensado que eu os outros filósofos que tratam dessas questões também tínhamos deixado de fora), justamente o que é relevante: a senciência. Realmente, à primeira vista, parece uma coisa idiota uma pessoa defender que é ser “planetista” defender que é melhor que um asteróide caia em Marte do que na Terra. Mas essa acusação só é idiota devido a existirem seres sencientes na Terra e não em Marte. Se existissem seres sencientes em Marte, então a acusação faria todo sentido, e não seria nem um pouco idiota. Afinal de contas, o que haveria de especial na Terra que tornaria os seus seres sencientes mais valiosos do que seres sencientes de outros planetas, se existirem? Seria um preconceito equivalente ao nacionalismo: dizer que alguém vale mais porque nasceu em tal lugar.

#145 - Falácia genética: explicar a origem da motivação é diferente de justificar a decisão

Começamos essa sessão analisando a origem da motivação por trás de se estabelecer uma linha divisória de consideração moral por localidade geográfica, e terminamos por avaliar a moralidade desse critério. Como foi mencionado acima, seja lá se a motivação para a existência de uma determinada visão moral venha do egoísmo ou não, nada disso é relevante para estabelecer se tal visão moral é justificável ou injustificável. Fazer o contrário seria confundir a explicação sobre a origem de algo (no caso, a origem de uma crença) com sua justificação (falácia genética). Algo pode ter surgido do egoísmo e ser uma coisa boa. Por exemplo, vamos supor, para efeito de argumentação, que a explicação contratualista para o surgimento da ética esteja correta. Ou seja, que o respeito pelo outro teve como origem histórica o auto-interesse (“não agrido você, e você não me agride, que tal?”). Mesmo que a motivação originária seja mesquinha, isso de nada serve para se concluir que o respeito pelo outro é algo ruim, e nem para se concluir que o respeito só faz sentido com tal motivação egoísta. Isso porque  a moralidade de uma decisão (seja ato ou omissão) é uma coisa; a motivação do agente para realizá-la é outra – as duas coisas tem de ser avaliadas separadamente. E, além disso, perguntar “qual a motivação?” e “qual a moralidade dessa motivação?” (no sentido de ‘a motivação presente é boa?’; ‘que motivação alguém deveria ter?’) também exigem dois modos de raciocínio distintos para responder; o primeiro é descritivo, o segundo é normativo). Como já vimos detalhadamente antes (#3 até #28), tais preconceitos são injustificáveis por se basearem em características moralmente irrelevantes (seja lá a motivação que o preconceituoso tiver).

#146 - O contratualismo não reconhece a igual consideração nem entre humanos

Com relação ao contratualismo, é necessário fazer um parêntese importante. Muitas vezes o contratualismo é trazido à tona com vistas a manter que o especismo, diferentemente do racismo e do machismo, é justificável. O argumento é o seguinte: já que a ética deve ser centrada em contratos (“eu não bato em você, e você não me bate”), os animais não humanos devem ser excluídos da consideração moral, porque não são capazes de fazer essas negociações conosco. Isso mostra, no entender dos proponentes desse argumento, por que o especismo é correto, ao mesmo tempo que mostra por que o racismo e o machismo são errados. O fato de alguém pertencer a uma determinada raça ou a determinado gênero em nada influencia na sua capacidade de fazer contratos, concluem os proponentes do argumento. E, concluem também, a partir disso, que a igual consideração entre humanos é um dever, enquanto que a igual consideração com relação a membros de outras espécies não é um dever. Esse argumento não funciona, por vários motivos. O primeiro, é que, se o contratualismo for uma teoria plausível, e se algum animal não humano tivesse a capacidade de contratuar, então, os contratualistas teriam de admitir considerá-lo. Então, não serve para justificar que a espécie de alguém é uma característica moralmente relevante de maneira direta. Ela se torna relevante apenas se estiver sempre atrelada à falta de capacidade de contratuar – o que pode nem sempre ser o caso. Isso nos conduz ao segundo problema: embora a raça ou gênero de alguém não influenciem diretamente na capacidade que alguém possui de contratuar, com certeza existirão membros de todas as raças e gêneros que, então, ficarão de fora da consideração moral: bebês, crianças muito pequenas, idosos senis, portadores de determinadas doenças mentais, pois não possuem capacidade para contratuar (ou, qualquer um de nós que, por algum motivo, perca essa capacidade). O que isso mostra é que tal argumento não serve para defender a igual consideração entre humanos. O terceiro problema deriva do segundo: tal argumento não conseguiria explicar o que há de errado com um opositor da igual consideração com relação a humanos que leve o critério da capacidade de contratuar a sério. Ou seja, que exclua da consideração moral também todos os humanos incapazes de contratuar (independentemente de espécie, raça, gênero, etc.). O quarto problema é que, assim como espécie, raça e gênero, a capacidade de contratuar também é moralmente irrelevante. Temos razões para considerar moralmente os outros indivíduos, e as razões mais básicas em nada tem a ver com a possibilidade desse alguém nos ameaçar. A razão básica para não torturar um bebê é que sofrer é algo ruim. Nenhuma razão adicional a essa é necessária para se considerar o fazer sofrer algo errado. Outras razões serão oferecidas, que indiretamente mostram o que há de errado com o contratualismo, quando analisarmos os problemas com a justificação moral do egoísmo, a seguir (já que o contratualismo parte da premissa que o egoísmo é justificado; ou seja, que só temos motivos para respeitar os outros se isso nos for conveniente):

 #147 - Avaliação moral sobre o egoísmo: definindo egoísmo

Devido a tudo o que foi explicado antes sobre falácia genética (#145), a avaliação moral sobre o egoísmo tem de ser discutida à parte. Publiquei outros dois artigos (citados em #136) onde o foco central é essa avaliação. Novamente, o que farei agora é expor apenas o argumento central explicando os motivos do egoísmo ser errado. Antes, contudo, é necessário deixar bem claro o que estou chamando de egoísmo: é a idéia de que o bem (as necessidades, interesses, bem-estar, preferências) de um agente lhe dão uma razão para agir no fomento desse bem, enquanto que o (necessidades, interesses, bem-estar e preferências similares) de outros indivíduos não fornecem razão para outros agentes (que não próprio indivíduo) agirem no fomento desse bem. Em outras palavras, o egoísta, diante de um determinado tipo de sofrimento (por exemplo, morrer queimado), dirá que o interesse dele próprio em não morrer queimado lhe dá uma razão para evitar de se queimar, enquanto que o mesmo tipo de interesse, quando aparece em outro indivíduo, não fornece as mesmas razões para que ele (ou qualquer outro agente) não queime esse outro indivíduo. Ou, ainda, mesmo que o egoísta admita que as necessidades dos outros geram razões para atender essas necessidades, sempre enxerga como se as mesmas necessidades, quando aparecem nele próprio, geram razões mais fortes para agir no fomento delas. Outro ponto importante é que é falso que o egoísmo propõe nunca levar em consideração os interesses dos outros: ele propõe levar apenas na medida em que isso for vantajoso para o egoísta (chamarei isso de consideração instrumental pelo bem dos outros). Quando entendemos que é isso que eu tenho em mente quando uso a palavra egoísmo, fica fácil entender por que Nigro está equivocado ao pensar que casos assim são extremos, “fora da realidade”. A maioria das pessoas é egoísta no sentido que defini. Nigro adota uma atitude egoísta nesse sentido, pelo menos quando as vítimas são animais não humanos. Ele reconhece que o seu próprio interesse em não morrer gera uma razão para ele próprio não se degolar, mas não reconhece que o mesmo interesse, quando aparece em outros indivíduos não humanos, gere as mesmas razões para que ele tenha o mesmo tipo de atitude (haja vista que aprova matar animais não humanos quando o interesse do humano não é fútil).

#148 – Egoísmo objeto-centrado e agente-centrado

Dediquei dois artigos inteiros no tratamento da questão do egoísmo normativo (citados em #136). Minha conclusão foi a de que o mesmo não tem como se justificar. Enderecei nesses artigos muitos argumentos, então, o que se segue é apenas o principal deles. Assim como em outros tipos de preconceitos, o egoísmo também aparece na sua forma objeto-centrado ou agente-centrado.

#149 - Defesas circulares do egoísmo objeto-centrado 

Na forma de egoísmo objeto-centrado, o egoísta afirma o seguinte: “todos têm razões para dar prioridade a mim, porque eu sou mais especial”. É isso que explica a atitude do egoísta, em se sentir justificado em não considerar o bem dos outros (ou, considerar sempre em menor medida, mesmo que as necessidades sejam similares em grau) e ao mesmo tempo, se sentir ressentido quando alguém não considera o seu bem. Para que essa visão seja minimamente plausível, é necessário que o egoísta ofereça um argumento que explique o porque dele (e não qualquer outro indivíduo) ser mais especial. E o problema reside justamente aí: qualquer argumento que ele possa oferecer que não seja circular, automaticamente precisa rejeitar o egoísmo. O que ele poderia oferecer de argumento circular seriam as seguintes considerações: (1) Minhas necessidades devem ter prioridade porque ‘eu sou eu’. Isso é circular porque é assumir exatamente o que está em dúvida: “por que ele não qualquer outro?”; (2) Minhas necessidades devem ter prioridade porque são as únicas que eu me sinto motivado a fomentar. Essa resposta também é circular, porque a pergunta é exatamente “por que devo fomentar apenas as necessidades que me sinto motivado a fomentar?”, e “tenho justificativa para ter a motivação que tenho?”. Todas essas respostas assumem, sem perceber, que ele já é mais especial. Mas, é isso que elas deveriam provar.

#150 - Defesas do egoísmo que provam que o egoísmo não é justificável (auto-refutantes)

Percebendo esse ponto, um defensor do egoísmo objeto-centrado deve reconhecer que a única forma de tornar plausível o que propõe é demonstrar que nele próprio, enquanto indivíduo, há uma outra característica (que não o fato dele ser ele mesmo, e independente dele ser ele mesmo) que o torna mais especial do que os outros indivíduos. O problema é que qualquer característica desse tipo necessariamente destrói a plausibilidade do egoísmo, enquanto teoria moral, (pelo menos na sua forma objeto-centrado). Por exemplo, supondo que um egoísta afirme: “eu sou mais especial do que os outros porque todos dependem de mim para sobreviver” ou “minhas necessidades devem ter prioridade porque estou numa situação pior do que a de todos os outros indivíduos”. Supondo, para efeito de argumentação, que essas afirmações fossem verdadeiras (que todos realmente dependessem dele para sobreviver, e que o indivíduo se encontrasse realmente na pior situação, em comparação a todos os outros – o que, na prática, é muito raro de ser verdade em relação a alguém que defende o egoísmo), então tal pessoa não fez uma defesa do egoísmo, porque o critério que ofereceu se baseia na exigência de imparcialidade. Ou seja, se a regra, no caso, é “dar prioridade ao indivíduo cujos outros dependem dele” ou “dar prioridade ao indivíduo que estiver na situação pior”, o egoísta tem de admitir que, se por acaso fosse outro indivíduo, e não ele, que estivesse em uma dessas condições, então que a prioridade deveria ser desse outro, e não dele. Assim, se os critérios fossem esses (que são critérios plausíveis), o fato do egoísta estar numa dessas condições é um mero fato contingente (poderia ser outro indivíduo). Portanto, não servem como defesa do egoísmo. Na vida real, contudo, essas defesas quase nunca são tentadas, porque geralmente os egoístas nunca se enquadram nessas duas condições (todos os outros dependerem dele, ou ele estar na pior situação). As tentativas mais utilizadas de defesa do egoísmo são realmente as circulares, mencionadas anteriormente. Contudo, repare no ponto importante: qualquer característica (e não apenas as duas do exemplo citado) que o egoísta poderia endereçar como defesa de que ele é mais especial (com vistas a fugir da circularidade) necessariamente destruiria a possibilidade do egoísmo se justificar (porque tal característica poderia estar em outro indivíduo). Essa constatação nos oferece, então, boas razões para pensarmos que o egoísmo objeto-centrado não é plausível.

#152 – Características do egoísmo agente-centrado (universalizado)

Geralmente quando se percebe que o egoísmo objeto-centrado não é plausível enquanto teoria moral, parte-se para o egoísmo agente-centrado. Nos outros artigos que escrevi (ver artigos citados em #136), chamei essa forma de egoísmo de “egoísmo universalizado”. Em outras palavras, a diferença entre os dois tipos de egoísmo é a seguinte: “que todos dêem prioridade a mim” (egoísmo objeto-centrado) e “que cada um dê prioridade a si” (egoísmo agente-dependente ou universalizado). Uma diferença marcante dessa segunda forma de egoísmo, em comparação à primeira, é que no egoísmo objeto-centrado, como vimos, se a teoria fosse plausível, o egoísta teria razões para ficar ressentido se os outros não levassem em consideração o seu bem (porque todos teriam, então, razão para pensar que ele é mais especial); já no egoísmo agente-centrado, por se propor que cada um tem razões para considerar apenas o seu próprio bem intrinsecamente (e o bem dos outros apenas instrumentalmente), então os proponentes desse tipo de egoísmo não tem razões para ficarem ressentidos com alguém que não leve em consideração o bem deles.

#153 - O que há de errado com o egoísmo, mesmo universalizado

Será essa segunda forma de egoísmo um pouco mais plausível do que a primeira? Geralmente, os que defendem o egoísmo universal alegam que tal forma é mais plausível com o seguinte argumento: “ninguém está dizendo que ‘eu sou mais especial que os outros’, em termos objetivos; se está dizendo é que ‘cada um é mais especial para si’”. A pretensão de plausibilidade desaparece quando investigamos mais de perto o que isso (“mais especial para si”) quer dizer. O que dá a entender, nesse tipo de reivindicação, é o seguinte: que ninguém tem razões para acreditar que é, de um ponto de vista objetivo, mais especial do que os outros, mas que, contudo, cada um deve, apesar disso, se considerar mais especial quando é ele próprio que está decidindo como agir. O egoísmo objeto-centrado é baseado na ilusão de que “sou mais especial do que os outros”. Já o egoísmo universal é baseado na crença impossível de ser verdadeira, de que “cada um é mais especial do que todos os outros”; ou ainda, na pura irracionalidade de “sabemos que ninguém é mais especial do que ninguém, mas, mesmo assim, vamos agir como se isso não fosse verdade”.

#154 - Interpretando o “cada um é mais especial para si”

Além disso, a idéia de “cada um é mais especial para si” é enigmática. O que isso quer dizer? Que cada um acredita que é mais especial que os outros? Se for esse o caso, a frase não deveria ser “sou mais especial para mim”, mas sim, “para mim (na minha opinião), sou mais especial”. Mas, se for interpretada dessa maneira, não se tem uma defesa do egoísmo agente-centrado, e sim, objeto-centrado. Ou seja, o que se quer dizer, então é que “na minha opinião, sou mais especial (em termos objetivos)”. Como vimos acima, temos razões de peso para rejeitar essa visão. Outra maneira de interpretar essa frase (“cada um é mais especial para si”) seria “cada um tem um vínculo afetivo maior consigo próprio do que com os outros”. Se for interpretada dessa maneira, o argumento que se pretende construir a partir dessa premissa (mesmo que ela seja verdadeira no caso de muita gente, enquanto premissa descritiva) é o de que o egoísmo está moralmente justificado. Só que isso é também circular, de maneira igual ao argumento circular já analisado, normalmente utilizado em defesa do egoísmo objeto-centrado: “tenho mais razões para fomentar minhas preferências porque me sinto mais motivado a fomentá-las do que as dos outros”. A circularidade envolvida é não perceber que a pergunta que se faz é “por que o fato de um agente ter um vínculo afetivo maior com alguém (no caso, o agente para com ele mesmo) justificaria a decisão de que esse alguém deve receber prioridade?”. Sem perceber, nesse argumento, já assume-se que o próprio agente está justificado em enxergar-se como tendo valor maior, quando é ele que decide. De que outra maneira poderia ele pensar que o fato dele ter vínculos afetivos com alguém (no caso, ele próprio, mas, poderia ser outro alguém, ou outro objeto) torna esse alguém mais valioso? A única forma de pensar isso é enxergá-lo como tendo um valor especial, um “toque de Midas” que torne os objetos do seu vínculo afetivo mais especiais. Só que, como sabemos, isso é circular. Alguém só teria justificativa para pensar que esse vínculo afetivo maior é uma razão para dar prioridade a si próprio se tivesse razões objetivas para acreditar que o objeto desse vínculo (no caso, ele mesmo) possui valor maior – o que, como vimos analisando as defesas do egoísmo objeto-centrado, é falso.

#155 - O principal erro do egoísmo universalizado

Na defesa do egoísmo universalizado, está implícita a crença de que, de alguma maneira, o fato de ser uma determinada pessoa que está a decidir, é sempre relevante para saber o que ela deve decidir. Os proponentes do egoísmo universal dizem o seguinte: “a preferência x gera uma razão para ser fomentada apenas se ela aparecer no mesmo indivíduo que está a decidir sobre se deve fomentar ou não a preferência x”. Vemos que tal crença é um erro moral quando nos perguntamos, nos casos onde a preferência x é uma razão para fomentá-la, de acordo com o egoísmo universal (a saber, os casos onde a preferência x aparece no próprio agente decisor), o que faz com que tal preferência seja uma razão para fomentá-la. Por exemplo, quando um egoísta universal diz que o sofrimento gera uma razão para ser aliviado (preferência x, nessa caso = alívio do sofrimento) quando aparecer no próprio agente que toma a decisão sobre se deve fomentá-lo ou não, temos de perguntar o seguinte: o que há no sofrimento que faz com que gere razões para ser aliviado, nos casos em que deve ser aliviado, e não, aumentado? A resposta sincera só pode ser a de que sofrer é uma experiência ruim. Contudo, é por isso mesmo que o egoísmo (mesmo na sua forma universalizada) é errado: porque o sofrimento não deixa de ser uma experiência ruim quando aparece nos outros. O que gera razões para alguém decidir (no caso, o valor negativo do sofrimento) e que gera razões que indicam como deve decidir, é como uma determinada decisão atinge alguém na condição de paciente da decisão. Mesmo o egoísta quando reflete sobre como fomentar suas preferências olha para si próprio na condição de paciente de sua decisão. Ou seja, ele precisa olhar para si próprio como se fossem dois (um na condição de agente, outro na condição de paciente da decisão). As razões sobre como deve-se agir vêm unicamente da condição de paciente (a condição de agente é relevante apenas para saber se há possibilidade de a decisão influenciar no curso dos eventos), pois dependem de como uma decisão x afetará alguém (no caso, por acaso, esse alguém é ele mesmo, mas poderia não ser), beneficiando-o ou prejudicando-o.  O problema, para o egoísta é que razões, como vimos, são sempre gerais: se elas nos ajudam a responder o que fazer num determinado caso particular, ao mesmo tempo apontam que deveríamos fazer o mesmo em casos relevantemente similares (ou seja, casos que mantenham em comum as características relevantes). Então, se a razão pela qual se deve aliviar o sofrimento é porque se trata de uma experiência ruim, isso automaticamente gera razões prima facie para aliviar o sofrimento, seja lá qual for o seu portador, independentemente se é o próprio portador que está a decidir ou não. Isso porque o fato de ser o próprio portador da necessidade que está a decidir ou não, não influencia no sofrimento ser uma experiência ruim, na felicidade ser uma experiência boa, e assim por diante. É por isso que o egoísmo, mesmo na sua forma universal, não é uma teoria moral plausível. É uma teoria que confunde o que é uma característica relevante para saber se é possível a decisão moral (a condição de agente: saber se o agente tem cursos de decisões alternativos disponíveis que produzam resultados de valor moral diferentes) com o que é uma característica relevante para saber qual decisão deve ser tomada (a condição de paciente: saber como uma situação x afeta beneficiando ou prejudicando os indivíduos atingidos por ela).

#156 – A questão da prioridade e a rejeição do egoísmo

É importante perceber que, uma vez reconhecendo que a principal razão para se considerar o bem de alguém depende do sofrimento ser uma experiência ruim e da ausência de felicidade ser um dano por privação, temos de reconhecer outros aspectos desses mesmos elementos, que por sua vez mostram que, dependendo da situação, a prioridade no atendimento das preferências é dos outros, não do próprio agente. Os aspectos do qual falo são a intensidade desses dois elementos. Tendo reconhecido que a principal razão, por exemplo, para o alívio do sofrimento, é que este é uma experiência ruim, temos de reconhecer que, quanto maior o sofrimento, prima facie, maiores as razões para dar prioridade a tal alívio. O que acontece é que a maior quantidade de sofrimento pode estar não no agente, mas em outros indivíduos. Daí que reconhecer esses pontos básicos implica no dever de rejeitar o egoísmo. Note que esse critério (dar prioridade aonde o sofrimento for maior) cumpre o requisito de imparcialidade. Ele não é como o que muitos definem por altruísmo (dar prioridade sempre aos outros). Ele diz, ao invés, para dar prioridade aos que estiverem sofrendo mais (estiverem na situação pior), independentemente de quem seja esse indivíduo (pode ser o agente, bem como pode ser outro indivíduo).

#157 - Critério imparcial de prioridade

Outros critérios de prioridade poderiam ser: (1) “Qual situação contém mais indivíduos na pior situação?” (2) “Quais indivíduos estão na pior situação, comparativamente aos outros?”. Se levarmos em conta apenas esses dois critérios, a prioridade já aponta para se dar prioridade à situação que a maioria dos animais não humanos passa atualmente, comparativamente a qualquer outra causa. Isso porque eles se encontram na pior situação (não existem humanos vivendo em granjas industriais nem no inferno natural, por exemplo), e coincidem com o tipo de indivíduo cujo maior número está na pior situação (literalmente trilhões). Note que esse critério também é imparcial. Não se está dizendo que a prioridade de preocupação, no mundo atual, deve ser com relação aos animais não humanos porque eles são animais não humanos. Se fosse assim, eu estaria sendo especista e meu argumento seria circular. Estou dizendo que eles merecem prioridade por se encontrarem na pior situação. Se fossem humanos no lugar deles, a prioridade deveria ser a preocupação pelos humanos, e assim por diante.

Notas:


[8] Ver, por exemplo CUNHA, Luciano C. Sobre a Importância da Razão na Ética. Disponível em http://www.olharanimal.net/luciano-cunha/1420-sobre-a-importancia-da-razao-na-etica; CUNHA, Luciano C. Explicando por que o Egoísmo não é Ético. Disponível em http://www.olharanimal.net/luciano-cunha/1547-explicando-porque-o-egoismo-nao-e-etico

[9] CUNHA, Luciano C. Uma Crítica ao Apelo à Teoria do Egoísmo Psicológico. Disponível em http://www.olharanimal.net/luciano-cunha/1546-uma-critica-ao-apelo-a-teoria-do-egoismo-psicologico



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