quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Parte 2 – A crença de que um indivíduo possui maior valor moral por ser membro da espécie humana


Parte 2 – A crença de que um indivíduo possui maior valor moral por ser membro da espécie humana

#23 – O argumento de que alguém possui maior valor por pertencer à espécie humana

Talvez por perceber que o argumento da posse da racionalidade não funciona para defender a idéia de que todos os seres humanos (e somente os seres humanos) são dignos de consideração moral, é que Nigro apele a um segundo critério: o de pertencer à espécie humana.

Nigro escreve:

Os animais não tem um projeto de vida, por isso a morte não lhes tira nada - é chocante, mas é verdade. Aquelas pessoas que por alguma infelicidade não podem raciocinar e de planejar seu futuro continuam sendo seres-humanos como nós.

#24 – O critério “pertencer à espécie Homo sapiens” é trazido à tona quando se percebe que o critério “posse da razão” não serve para se defender que é um erro matar todo e qualquer ser humano

Em resumo, o argumento de Nigro visa explicar onde está o erro em matar seres humanos. Num primeiro passo, a razão oferecida é a de que os humanos “têm um projeto de vida”. No entender de Nigro, isso explica porque é errado matar todo e qualquer ser humano e explica também porque é certo matar todo e qualquer animal não-humano. Como vimos na análise do argumento anterior, esse critério não serve para se defender a idéia de que é errado matar todo e qualquer ser humano (e, Nigro percebeu esse ponto!), porque tal critério exclui exatamente aqueles humanos incapazes de planejar o futuro e, portanto, terem um projeto de vida. Novamente, se tal argumento estivesse correto, então seria moralmente correto matar bebês, crianças pequenas, idosos senis, portadores de determinadas doenças mentais, etc. Nigro, percebendo que o critério que adota para explicar o erro em matar humanos na verdade aponta para a conclusão contrária (de que é correto matar alguns humanos), tenta colocar uma condição ad hoc (digamos, um “remendo”) em sua teoria: o erro em matar humanos se dá por frustrar um projeto de vida quanto ao futuro, mas aqueles humanos que não apresentam capacidade de planejar o futuro devem, contudo, receber a mesma proteção, devido a serem membros da espécie humana.

#25 – A circularidade do uso do critério  “pertencer à espécie humana” para explicar o erro em matar

Se não está claro ainda o porque desse ser um mau argumento, atente para o círculo vicioso no qual tal argumento se baseia. O argumento visa responder: “O que torna errado matar humanos?” com a resposta “É a capacidade para fazer planos para o futuro” e, responde à seguinte pergunta “e, aqueles humanos que não possuem capacidade para fazer planos para o futuro?” com a resposta “Também é errado matar, porque são seres humanos”. Ora, se o que explica o erro em matar seres humanos é a capacidade para fazer planos para o futuro (que, como vimos anteriormente, em #20 e #21, é uma explicação equivocada, que reside na confusão entre o critério relevante para considerar alguém como agente moral, com o critério relevante para considerar alguém como paciente moral), e não o fato dos seres humanos serem o que são (seres humanos, o que é verdadeiro, porém irrelevante), então não seria errado matar os seres humanos que não possuem capacidade para fazer planos para o futuro. Se, por outro lado, se mantém que é errado matar os seres humanos que não possuem a capacidade para fazer planos para o futuro, então é falso que o erro em matar humanos dependa frustrar planos quanto ao futuro. O que a lógica não permite é as duas respostas serem verdadeiras ao mesmo tempo, haja vista que uma nega a outra.

#26 – Se o erro em matar não reside na capacidade de ter um projeto de vida, então é errado matar seres sencientes não humanos também 

A única maneira de tornar plausível o argumento de Nigro, se ele pretende afirmar que é errado matar todo e qualquer ser humano, é abandonar a idéia de que o erro em matar dependa do indivíduo ter a capacidade de fazer planos quanto ao futuro. É exatamente isso que penso que ele deva fazer porque, como vimos, esse critério é irrelevante para explicar o dano da morte. Mas, como vimos, adotar o critério relevante para explicar o dano da morte (a possibilidade da vítima sofrer um dano por privação) implica em reconhecer que é errado matar qualquer ser senciente cuja morte lhe cause um dano por privação – o que incluirá reconhecer o erro em matar animais não humanos sencientes.

#27 – A circularidade do critério “pertencer à espécie humana” para explicar o erro em matar seres humanos

A única maneira de Nigro defender o erro em matar todo e qualquer ser humano e que é certo matar todo e qualquer animal não humano é se basear na única característica que realmente consiga com sucesso colocar todos os humanos de um lado, e todos os animais não humanos de outro. Porém, a única característica capaz disso é o fato de uns pertencerem à espécie humana, e outros não. Assim, reformulando nesse sentido, o argumento de Nigro se torna esse: “o que explica o erro em matar seres humanos é que seres humanos pertencem à espécie humana”. Perceba como esse argumento é circular. Embora a circularidade não seja exatamente uma falácia formal, perceba que um argumento assim é realmente muito pouco informativo. A única coisa que afirma é que seres humanos são seres humanos. Disso, ninguém discorda (uma coisa é ela mesma, isso é óbvio!). Porém, apesar disso ser verdadeiro, não ajuda nada a descobrirmos onde está o erro em matar (seres humanos ou quaisquer outros seres). O que alguém quer descobrir é o que há nos seres humanos que torna errado matá-los. O próprio fato de eles pertencerem à espécie Homo sapiens não ajuda a responder isso.

#28 – A arbitrariedade do critério “pertencer à espécie humana” para explicar o erro em matar 

Alguém poderia, legitimamente, perguntar: “por que humanos e não indivíduos de qualquer outra espécie?”. Quando alguém faz essa pergunta, o que quer dizer é “o que há de especial nos humanos que não há em indivíduos de nenhuma outra espécie?”. Seja lá o que houver de especial (se houver), não pode ser o mero fato de humanos serem humanos. Isso é verdadeiro, porém, irrelevante, haja vista que qualquer coisa é ela mesma. Se alguém dissesse a Nigro que “os únicos seres onde há erro em matar são as amebas”, obviamente ele gostaria de saber por que. Se a resposta fosse “ora, é simples: é que amebas são amebas” ele consideraria, com razão, essa resposta insatisfatória. Ele queria saber, com a pergunta, o que há nas amebas que as torna tão especiais. Mas, o mesmo se sucede com os seres humanos. Eu gostaria de saber o que há neles que os torna tão especiais. E é isso que se quer saber de alguém que diz que é errado matar apenas quando as vítimas são humanos. Note que, percebendo a circularidade em se responder “o que torna os humanos mais especiais é que eles pertencem à espécie Homo sapiens”, geralmente os defensores do especismo partem então para o argumento de que seres humanos são mais racionais. Mas, essa saída não está disponível para Nigro, pois, foi exatamente para evitar as implicações dessa saída que ele apelou ao argumento circular. Então, a tentativa terminou num beco-sem-saída.

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