quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Esclarecendo confusões freqüentes – um FAQ sobre anti-especismo


Esclarecendo confusões freqüentes – um FAQ sobre anti-especismo

(Respondendo as objeções levantadas pelo Dr. Carlos Eduardo Nazareth Nigro)

Luciano Carlos Cunha

#1 – Os velhos argumentos novamente

Em 29 de maio de 2012, o Dr. Carlos Eduardo Nazareth Nigro postou como comentário em meu blog alguns argumentos que, em seu entender, mostram que o especismo é justificável. Nigro, em seguida, fez do seu comentário uma postagem em seu próprio blog. Os argumentos que o Dr. Carlos Nigro apresenta como se fossem novidades são, contudo, os mesmos argumentos que todo defensor dos animais já está acostumado a ouvir e responder: o argumento de que os humanos são moralmente superiores por serem racionais; o argumento da casa em chamas; o de que aumentar a consideração moral pelos animais não humanos diminuirá a consideração pelos humanos; o de que a igualdade humana é uma igualdade factual; a confusão entre ética animal e ética ambiental; o da ladeira escorregadia para a eugenia nazista;  entre outros velhos conhecidos, para os quais esse FAQ é uma resposta.

#2 - Qual a importância de se responder novamente aos velhos argumentos

 Apesar de Nigro não apresentar nenhuma novidade (e eu mesmo já ter respondido quase todos esses argumentos em outros artigos[1]), a análise de tais argumentos vale a pena, com vistas a entendermos o que há de errado com eles. No final das contas, é um bom exercício de lógica e de raciocínio moral tentar responder, mais uma vez, aos velhos argumentos. Eles contêm tantos erros básicos, que se tornam ótimos exemplos práticos de como ilustrar falácias formais e informais, como a da falsa dicotomia, petição de princípio, falsa analogia, falácia naturalista, apelo à galeria, ladeira escorregadia sem base factual, irrelevância, incoerência, entre tantos erros de raciocínio. Outro motivo da importância em se responder a tais argumentos é que muitos dos defensores dos animais, apesar de se pronunciarem contrários a esses argumentos, parecem não saber explicar o que há de errado com eles, muitas vezes por não saberem como avaliar argumentos. Isso os conduz muitas vezes a utilizarem, também, argumentos muito ruins para defender os animais não humanos.

Antes de iniciar, contudo, gostaria de agradecer à postura do Dr. Carlos Nigro, enquanto debatedor. Embora eu discorde quase que totalmente dos argumentos que endereçou (e, a razão disso será explicada a seguir), não posso negar que o Dr. Carlos Nigro é uma pessoa intelectualmente honesta, algo raríssimo de se ver nos debates. Isso porque o Dr. Nigro atacou os meus argumentos, e em nenhum momento fez acusações à minha pessoa ou utilizou de argumentos ad hominem. É nesse mesmo espírito que ofereço uma resposta aos argumentos de Nigro, para que possamos continuar um debate intelectualmente saudável cujo objetivo é descobrir a verdade (no caso, a verdade sobre o que temos ou não justificativa para fazer aos animais não humanos), e não qualquer outra coisa. Gostaria de agradecer inclusive a uma contribuição trazida por Nigro em uma de suas críticas. Ele me mostrou que nem todos os preconceitos derivam do egoísmo (como irei explicar na parte 7, sobre a diferença entre preconceitos agente-centrados e objeto-centrados). Contudo, mostrarei também porque o especismo, tal como praticado pelos humanos, é derivado do egoísmo, e por que, independentemente de derivarem do egoísmo ou não, um preconceito, por outras razões, é sempre injustificável. De qualquer forma, um obrigado ao Dr. Carlos Nigro pela honestidade intelectual de fazer um debate centrado em críticas aos argumentos. É com essa mesma honestidade intelectual em mente que respondo às suas objeções, com vistas a que possamos, juntos, chegar mais perto da verdade.

A resposta será dividida por assunto, em 10 postagens.

Parte 1 – A crença de que um indivíduo possui maior valor moral por ser mais racional

#3 - A crença de que, se existem alguns indivíduos mais valiosos do que outros, então que os mais valiosos têm direito de fazer o que bem entenderem com os menos valiosos

Para entendermos de onde Nigro parte toda a sua crítica que faz à visão anti-especista, basta darmos uma olhada no seguinte trecho de sua resposta:

“...toda a discussão a respeito dos animais parte do princípio de que uma pessoa vale tanto quanto um peixe ou uma formiga porque não existiria nada que justifique ‘a crença de que os animais humanos tenham status superior’. E é esse o ponto que deve ser discutido porque todo o resto deriva dele. Para quem discorda disto todo o artigo não serve para nada”.

#4 – Risco de ambigüidade: dois sentidos para o termo “pessoa”

Para entendermos melhor a posição de Nigro, é necessário entender que o mesmo está a se referir pelo termo “pessoa” o mesmo que “membro da espécie biológica Homo sapiens”.  Então, para evitarmos confusões (e, para detectarmos a confusão envolvida no argumento de Nigro), é necessário entender que o termo “pessoa”, nesse primeiro momento, não está se referindo ao que geralmente se refere pelo mesmo termo na tradição filosófica anglo-saxônica, que tem seu uso difundido desde John Locke até pensadores dos nossos dias como Peter Singer.

#5 - O termo “pessoa” para se referir a um indivíduo autônomo, com consciência temporal e capacidade para agência moral

“Pessoa”, de acordo com esse segundo uso do termo, diz respeito a um indivíduo autônomo, com um sentido temporal de si (ou seja, percebe o presente, se lembra do passado e faz planos para o futuro). Muitas vezes, acrescenta-se outra característica: uma pessoa é alguém que possui um senso de justiça, a quem faz sentido fazer uma reivindicação moral. Nesse segundo sentido, “pessoa” é quase um sinônimo para “agente moral”. É claro, alguém poderia “suavizar” a definição de pessoa nesse segundo sentido, mantendo algumas características da definição mas não outras. Se for mantido apenas a exigência de que seja um indivíduo com sentido temporal de si (descartando a exigência de que possua um senso de justiça), então a definição do termo é quase que sinônimo de “agente” (ainda que não agente moral). Com vistas a evitar confusão entre os dois conceitos que utilizam a mesma palavra, me referirei por “pessoa(h)” para sinalizar esse uso quando referente à membros da espécie humana, e “pessoa(a)” para se referir a um indivíduo agente (moral ou não) no sentido descrito acima.

#6 – O erro em se dar um salto do primeiro sentido do termo “pessoa” para o segundo, e vice-versa

Um dos principais argumentos de Nigro para explicar o porquê de, no seu entender, os membros da espécie humana valerem mais, de um ponto de vista da consideração moral envolve dar um salto do primeiro sentido do termo “pessoa” para o segundo, concluindo então que todos os que pertencem ao primeiro grupo automaticamente pertencem ao segundo, o que é claramente falso. Considere o seguinte trecho de sua resposta:

“A noção da própria existência e da morte, a cultura, as escolhas, as responsabilidades e a liberdade por não sermos determinados geneticamente a agir da mesma forma que todos os outros indivíduos torna a espécie humana especial e superior às outras espécies. Somente a consciência humana é capaz de ter conhecimento aproximado da realidade, da verdade”.

#7 – Erro em pensar que todos os membros da espécie Homo sapiens são pessoas (no segundo sentido do termo)

Note que, nesse momento, ao oferecer uma razão explicando porque os membros da espécie humana valeriam mais, ele apela à noção de pessoa no segundo sentido. No argumento de Nigro, este parece pressupor que todos os humanos possuem as habilidades listadas (noção da própria existência e da morte, responsabilidade moral, conhecimento da verdade, etc.). De que outra maneira poderia concluir que todos os seres humanos valem mais exatamente por esse motivo?  Note que as características listadas são as envolvidas na definição de um agente moral.

#8 – Resumo do argumento “humanos valem mais por serem mais racionais”

Existem dois problemas graves com esse argumento. O primeiro é factual, o outro é moral. Para melhor entendermos esse ponto, reformulemos o argumento assim:

(1) O relevante para saber se a vida de alguém deveria ser mais protegida são suas capacidades de autonomia (prática ou moral);
(2) Apenas os humanos e todos os humanos são autônomos no sentido descrito acima (ou que, pelo menos, qualquer humano se situa acima, no que diz respeito à posse daquelas habilidades, a qualquer animal não humano);
(3) Logo, a vida de humanos deveria ser mais protegida do que a de animais não humanos.

#9 – Erro factual com o argumento de que “humanos valem mais por serem mais racionais”

O problema factual se encontra na premissa número 2. Ela envolve duas falsidades factuais. A primeira: é falso que todos os humanos possuem as habilidades listadas. Já foi apontado corretamente e exaustivamente por Singer, Regan, Sapontzis, entre outros, que bebês, crianças muito pequenas, idosos senis, comatosos, e portadores de determinadas doenças mentais não possuem aquelas habilidades. Então, é falso que todos os membros da espécie humana são autônomos no sentido descrito por Nigro. A segunda falsidade factual envolvida no argumento é que, mesmo que fôssemos considerar a posse daquelas habilidades em alguns aspectos (como a noção da própria existência e da morte) e fossem descartados outros aspectos (como a habilidade para agência moral), ainda assim existiriam humanos que se situam abaixo da linha, em comparação a determinados indivíduos pertencentes a outras espécies biológicas. Um chimpanzé ou gorila adulto possui, por exemplo, maior compreensão do que é estar vivo, sentido temporal de si e capacidade de comunicação do que um bebê humano.

#10 – Manobra retórica envolvida no argumento que conduz a crenças factuais falsas

A manobra retórica nesse argumento consiste em se referir a “membro da espécie humana” por “pessoa” (que é o uso freqüente no senso comum), para então dar a entender que todos os seres humanos são “pessoas” no sentido de serem agentes autônomos. Os leitores menos atentos tenderão a, devido a se usar a mesma palavra para se referir a dois conceitos totalmente diferentes, concluir que todos os que pertencem ao grupo que se encaixa na primeira definição também se encaixam na segunda e vice-versa. Dessa confusão de ambigüidade chega-se geralmente a conclusões factualmente falsas. Uma é pensar que todos os seres humanos são agentes morais (pensar que todas as pessoas ‘h’ são pessoas ‘a’). Outra é pensar que apenas os seres humanos podem ser pessoas no sentido de serem agentes (pensar que apenas as pessoas ‘h’ são pessoas ‘a’).

#11 – Nenhuma das duas saídas disponíveis sustenta a tese de que humanos valem mais

Note que, exposto esse ponto, Nigro só tem duas saídas, e nenhuma delas é boa para o que pretende. (1) Ou mantém que o critério da posse da racionalidade é relevante para saber o grau de respeito que alguém merece. Nesse caso, terá de admitir que, então, alguns animais não humanos merecem mais respeito do que alguns seres humanos, devido aos primeiros serem mais racionais do que os segundos. (2) Ou abandona o critério da posse da racionalidade como relevante para sabermos o grau de respeito que alguém merece. Nesse caso, não tem mais motivos para acreditar que, devido à maior capacidade racional de alguns membros da espécie humana, então que todos os membros da espécie humana (incluindo aqueles que não possuem tais capacidades) devam receber status moral superior devido à capacidade de alguns. Note que, se adotada essa saída, nem mesmo os que possuem tais capacidades deveriam ser vistos com maior valor, haja vista ter-se reconhecido que tais habilidades são irrelevantes para o grau de consideração moral que é devido a alguém.

#12 – A possibilidade do argumento do grupo (e sua circularidade) e por que pertencer à espécie humana é irrelevante

Outra saída disponível para Nigro seria manter que a posse de racionalidade é um critério relevante para saber quem deve ser considerado moralmente, e, mesmo reconhecendo que alguns humanos não a possuem, afirmar que esses humanos (destituídos de razão) deveriam, contudo, receber consideração, porque outros membros dessa mesma espécie são capazes de razão. Esse é o conhecido “argumento do grupo”. O argumento do grupo só faria sentido se pertencer à espécie humana fosse moralmente relevante. Como o autor não apela ao argumento do grupo, deixarei a análise desse argumento para mais adiante. Nesse primeiro argumento, é exatamente o oposto que Nigro parece reconhecer: que pertencer à espécie humana não é suficiente para explicar o motivo pelo qual alguém deveria valer mais. Por isso, o seu argumento tenta trazer à tona outra característica (presumidamente possuída apenas por seres humanos, e por todos os seres humanos em grau similar), para explicar por que os humanos valeriam mais, que não o mero fato de serem humanos. O problema é que tal característica mostra exatamente o contrário: que, para além de não ser possuída em igual grau por todos os seres humanos, sequer é possuída por grau algum por todos os seres humanos. Isso sugere uma circularidade no argumento do grupo: primeiro, a posse da razão é trazida como razão para explicar o erro em não se considerar os humanos; depois, o pertencimento à espécie humana é trazido como razão para explicar o erro em não se considerar os que não tem a posse da razão.

#13 – Erro moral com o argumento de que “humanos valem mais por serem mais racionais” e as implicações danosas de se aplicar esse princípio coerentemente

O erro moral se encontra na premissa número 1. Vamos supor que Nigro, ao terminar de ler os parágrafos acima, que apontam para o erro factual, acuse-me do seguinte: “então, você está a dizer que não devemos respeitar aqueles humanos que não possuem aquelas capacidades racionais?”. Isso só seria se verdade se eu, como Nigro, concordasse que a capacidade racional de alguém é relevante para saber se esse alguém deve ou não deve ser respeitado, e o grau de respeito que esse é devido a esse alguém. Mas, é exatamente desse ponto que discordo radicalmente. Como exporei a seguir, a capacidade racional nada tem de relevante para saber se alguém deve ser considerado moralmente (e o grau de consideração que lhe é devido); é relevante apenas para saber o grau de deveres morais que alguém possui. Então, o que quero apontar é que é Nigro, não eu, que tem que admitir que o critério moral do qual parte tem como implicação o desrespeito por seres humanos que não possuem as habilidades racionais listadas por eles.

# 14 – Duas exigências formais do raciocínio moral: relevância e coerência

Para explicar o porquê de a capacidade racional ser um critério irrelevante para se saber o grau de respeito que alguém merece, é necessário alguma explicação sobre teoria ética. Na ética, boa parte do que queremos descobrir é como tomar a decisão correta (outra coisa que se quer descobrir geralmente é ‘que virtudes cultivar para conseguir tomar a decisão correta’). Descobrir qual decisão correta geralmente é tentado a partir da aplicação de princípios gerais a casos práticos particulares. Esses princípios sugerirão alguns critérios que indicarão qual decisão deve ser tomada. O que se procura descobrir, então, para cada questão moral, são as características relevantes para decidir a questão. A partir disso, tenta-se chegar a um princípio (ou vários) que incorpore essas características relevantes e sirva como guia para decidir, descartando as características irrelevantes. Geralmente tal princípio também hierarquiza o peso das características relevantes, e, no caso desse peso variar, indica do que depende essa variação, em termos das circunstâncias da situação. Irei me referir a essa exigência do raciocínio moral por relevância. Uma vez tendo analisado das melhores maneiras disponíveis e chegado a um princípio que abarque aquilo que é relevante, busca-se que o princípio a qual se chega sirva de guia não apenas para um caso, mas para outros casos relevantemente similares (ou seja, casos nos quais estejam presentes aquelas características moralmente relevantes). Nesse caso, supondo que alguém se baseia num critério relevante, é possível que erre moralmente por aplicá-lo de maneira incoerente (aplica-o corrretamente em alguns casos, mas não em outros). Irei me referir a essa exigência do raciocínio moral por coerência.

#15 – O erro de se aplicar um critério irrelevante de maneira coerente

Na discussão acima, do problema factual do argumento de Nigro, expus o que aconteceria se o princípio que ele sugere fosse aplicado coerentemente. Um detalhe importante é que não significa que, se o critério fosse aplicado coerentemente, então que as decisões morais de Nigro estariam, automaticamente, corretas. Isso porque o critério pode se revelar baseado numa característica moralmente irrelevante (como pretendo mostrar a seguir). Então, supondo, para efeito de argumentação, que Nigro aceita aplicar coerentemente o critério que sugere como moralmente relevante (a capacidade racional, para determinar quem merece consideração), e, então, exclui da consideração moral, juntamente com os animais não humanos, todos aqueles seres humanos que não possuem as capacidades racionais listadas por ele. Sua decisão agora é coerente. É moralmente correta? Não. Porque se baseia, ainda, num critério irrelevante. Um critério baseado numa característica irrelevante aplicado de maneira coerente continua sendo um mau critério, mesmo aplicado coerentemente. As únicas chances de se tomar a decisão correta, baseando-se numa característica irrelevante, seria por coincidência (talvez alguns casos daqueles também tenham a característica relevante, perdida de vista pelo princípio sugerido por Nigro).

#16 – O que é relevante (vulnerabilidade) e o que é irrelevante (capacidade para razão) para saber quem devemos considerar moralmente

Como saber, então, que o princípio sugerido por Nigro baseia-se numa característica relevante ou irrelevante? Temos de nos perguntar, em primeiro lugar, o que faz surgir a questão moral específica sobre a qual estamos nos debruçando. A questão específica, nesse caso, é: “o que torna alguém digno de respeito?”.  Para responder a essa pergunta, é preciso fazer, antes, outra: “por que alguém precisa de respeito?”. À medida que respondemos a essa pergunta, fica claro que ela não depende, em grau algum, da capacidade racional de alguém (talvez até dependa de maneira inversa). A primeira resposta óbvia é que alguém precisa de respeito porque é vulnerável, ou seja, é possível de alguém prejudicá-lo. Imagine, por exemplo, a figura de um indivíduo onipotente, que jamais fosse possível prejudicá-lo (seja física, seja psicologicamente, moralmente, etc.): nada do que fizermos poderia lhe atingir (ele não sofreria danos, seja por inflição de sensação ruim nem privação de sensação boa, nem nunca acreditaria numa mentira; na verdade, ele sempre teria a melhor vida possível). Faria sentido, diante de tal ser, dizer que ele precisa de respeito? Não. Simplesmente porque não temos poder o bastante para fazer-lhe algo de mal. Então, veja: uma característica moralmente relevante e central com relação ao dever de respeitar é a vulnerabilidade do paciente da nossa decisão. Definirei vulnerabilidade como a possibilidade de ser prejudicado.

#17 – Duas formas básicas de prejuízo: por inflição de sensação ruim ou privação de sensação boa

Com vistas a responder mais especificamente a presente questão moral (para sabermos exatamente quais seres precisam de respeito, e em qual grau), temos de nos perguntar o seguinte: quais as principais maneiras de alguém ser prejudicado? Existem pelo menos duas maneiras básicas em que se pode dizer que alguém foi prejudicado. A primeira é por inflição de sensação ruim. É por isso que dizemos que alguém foi prejudicado quando, por exemplo, sofre física ou psicologicamente. A inflição de sensação ruim não esgota as possibilidades de se prejudicar alguém. É possível alguém ser prejudicado também por privação de sensação boa. Suponha que alguém possui uma vida da qual gosta muito e que, numa noite, após ir dormir, morre sem dor alguma, nem física nem psicológica. Não faz o menor sentido dizer que essa pessoa não foi prejudicada pela morte prematura, mesmo que não tenha sofrido prejuízo por inflição. A explicação do prejuízo, nesse caso, se dá por privação. A pessoa em questão foi privada de todas as sensações que ela gostava de desfrutar. Note que nem a inflição de sensação ruim nem a privação de sensação boa precisam de um agente deliberador para acontecer. As próprias circunstâncias e eventos da vida de alguém podem fazer acontecer algo que lhe prejudica. “Prejuízo” é um conceito centrado no paciente: para alguém ser prejudicado, não é necessário a ação de alguém.

#18 – Defesa do critério da senciência: ele é relevante para saber quem é capaz de ser prejudicado por inflição de sensação ruim ou privação de sensação boa

Assim, se o que queremos saber é quais seres merecem respeito, precisamos apenas nos perguntar quais seres são capazes de serem prejudicados. Para respondermos a essa segunda pergunta, termos de nos perguntar quais seres são capazes de sofrerem inflição de sensação ruim ou privação de sensação boa. A resposta será: apenas aqueles seres capazes de sensações. Por esse motivo, o critério da senciência (ou seja, aqueles seres capazes de sentir e desfrutar) não é apenas mais um critério arbitrário ou irrelevante para responder quem deve ser respeitado e quem não deve. Isso porque, se o que cria a necessidade de um respeito é a possibilidade de prejuízo, a capacidade da senciência está atrelada às duas formas básicas nas quais é possível de alguém sofrer um prejuízo: por inflição de sensação ruim ou privação de sensação boa.

#19 – Diferença entre sofrer uma perda e ter consciência da perda: a morte é principalmente um dano por privação

Isso mostra que o critério sugerido por Nigro para haver erro em matar (“a noção da própria existência e da morte”) envolve uma confusão entre ser prejudicado (no caso, por privação) e ter consciência do prejuízo que sofrerá. No caso de alguém saber de antemão o prejuízo que sofrerá por privação (como alguém que sabe que irá morrer), isso geralmente faz surgir um prejuízo por inflição de sensação ruim, por saber do prejuízo por privação que o espera. Mas, note que isso só é possível devido à privação da sensação boa ser um prejuízo de maneira independente (de outra maneira, não haveria razões para alguém ficar triste por saber que será assassinado); o que mostra que não é necessário ter consciência da perda para sofrer tal perda. Temos, então, boas razões para considerar que é um erro prima facie (ou seja, existem exceções, como a legítima defesa e a eutanásia, por exemplo, tratadas mais adiante), matar um ser senciente. De acordo com Nigro, “...os animais não tem um projeto de vida, por isso a morte não lhes tira nada - é chocante, mas é verdade”. Como vimos nos argumentos expostos acima, isso é confundir sofrer uma perda com ter consciência da perda. Chocante é descobrir como alguém pode acreditar que uma afirmação desse tipo, que não resiste a um parágrafo de exame crítica, possa ser verdade.

#20 – Quanto menor a racionalidade, geralmente maior a vulnerabilidade, então maior o dever de prioridade no respeito

Perceber que o que é relevante para saber se alguém deve ser respeitado ou não é sua vulnerabilidade mostra que o critério sugerido por Nigro, o da posse da racionalidade, não só é irrelevante para saber o grau de respeito que alguém merece, como também é inversamente proporcional: quanto maior a racionalidade (pelo menos, no sentido instrumental) de alguém, geralmente (ainda que nem sempre) menor sua vulnerabilidade (pois, sabe melhor ‘se virar sozinho’), portanto, de menor proteção precisa. No dia-a-dia, todos nós já reconhecemos esse fato. É por isso que damos mais cuidado a um bebê (que, devido à sua falta de racionalidade e autonomia, necessita de maiores cuidados por possuir uma vulnerabilidade maior) do que a um adulto. Só uma mente moralmente perversa poderia pensar que a falta de racionalidade e a conseqüente vulnerabilidade de um bebê gera uma razão para fazer churrasco desse bebê ou usá-lo em experimentos. O problema é que, quando as vítimas são os animais não humanos, infelizmente a maioria dos humanos se baseia nesse erro de raciocínio, que é moralmente perverso. Se a falta de racionalidade dos animais não humanos mostra alguma coisa de moralmente relevante, é que geralmente precisam de uma proteção maior, devido à sua vulnerabilidade maior. Eles não podem, diferentemente de alguns humanos adultos, por exemplo, lutarem por seus direitos. Isso só mostra que temos um dever maior ainda de lutar por eles, do que por humanos que têm condições de se defender sozinhos.

#21 – A posse da razão é relevante apenas para saber quem deve ser responsabilizado

No que é relevante a capacidade racional então? Ela é relevante quando tentamos responder à seguinte questão moral: “o que torna alguém responsável pelas suas escolhas e qual o grau de responsabilidade que faz sentido cobrar de alguém?”. Nesse caso, é a posse da racionalidade que é relevante, pois, se alguém não entende a noção, por exemplo, de deveres morais, não faz sentido responsabilizá-lo pelo que faz. Novamente, é por esse motivo que não é racional ficar bravo com um bebê de alguns meses que espalhou comida por toda a casa. Igualmente, não faz sentido cobrar de um animal não humano que responda pelo que faz (nesse quesito, assim como na vulnerabilidade, novamente, estão em pé de igualdade com bebês humanos, portadores de determinadas doenças mentais, idosos senis, etc.). Isso não quer dizer, obviamente, que devemos deixar os seres destituídos de razão, sejam humanos ou não humanos, fazerem todo e qualquer ato – haja vista que alguns de seus atos podem ser nocivos a outros indivíduos sencientes. E, uma vez reconhecendo que a presença da capacidade racional é relevante para saber se devemos ou não responsabilizar alguém pelo que escolhe, faz todo sentido pensar que, quanto maior essa capacidade (o que proporciona maior entendimento das questões morais), maiores as responsabilidades morais que alguém têm. Como diria o tio Ben, “com grandes poderes vêm grandes responsabilidades”.

#22 – Confusão entre sofrer uma perda e ter consciência da perda

O raciocínio de Nigro parte do pressuposto de que o dano da morte depende da compreensão do que é morrer. Isso é confundir "sofrer uma perda" com "ter consciência da perda que irá sofrer". Novamente, da mesma maneira, se o mal de morrer dependesse da compreensão do que é a morte, teríamos de defender que matar (sem causar dor) qualquer criança pequena que possui uma vida significativa, e que ainda não entende o que é estar morto, não causa perda alguma a essa criança. Mas, obviamente, a criança perde algo, não perde? Ela perde de desfrutar. E desfrute só depende da capacidade da senciência. Portanto, é falso que os animais não humanos sencientes não perdem nada ao serem mortos, mesmo os que não possuem consciência da perda.

[1] Os artigos estão divididos com índices nos seguintes endereços: www.olharanimal.net/pensadoresetica-e-animais/luciano-cunha e www.anda.jor.br/category/colunistas/questionando-o-obvio 

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