domingo, 30 de dezembro de 2012

Não ao veganismo especista - uma resposta à "Mabel"

Em resposta ao meu FAQ sobre anti-especismo, que também foi publicado no site Olhar Animal, alguém que assina como Mabel Nobrega enviou o seguinte comentário, no próprio site:

#  Mabel Nobrega  28-12-2012 14:06 escreve:

"Interessante o fato de uma pessoa extremamente arrogante e soberba ter escrito sobre igualdade.  Imagino que ele tenha se valido do ditado "faca o que eu digo, mas nao faca o que faco." No  minimo, pode se dizer que tudo que vem do L. Cunha quanto a respeito e igualdade eh hipocrisia,  afinal ele se julga o detentor de toda a verdade e qualquer pessoa que nao concorde com a sua  opiniao e tachada por ele de imbecil, como o fez no grupo aberto do facebook Garimpando Opcoes  Veganas".

Eis minha resposta:

Se você pensa que defender a igualdade e o respeito implica em se calar diante das injustiças, e  não julgar e avaliar as crenças e opiniões (e também os argumentos que visam sustentar essas  crenças e opiniões) das outras pessoas, então não faz a menor idéia do que são as noções de  igualdade e respeito. O compromisso com a igualdade e o respeito implica um dever de nos  pronunciarmos diante das injustiças. Um compromisso com a verdade implica em um dever de  explicarmos o que há de errado com determinadas idéias, e de mostrar por que determinados  argumentos são ruins. O respeito pelas pessoas não implica que temos de respeitar qualquer idéia  que elas acreditem (por mais estúpida que essa idéia possa ser, como no caso do especismo,  racismo e sexismo). Demonstramos respeito por uma pessoa mostrando o por que de determinadas  idéias que ela sustenta estarem muito erradas. E, demonstramos o devido respeito por essas  crenças submetendo-as a escrutínio crítico  e as rejeitando se elas se mostrarem implausíveis (e,  combatendo-as, se elas também forem moralmente hediondas, como é o caso do especismo, racismo e  sexismo).

Não faz o menor sentido acusar alguém que oferece argumentos para sustentar a sua posição de  pensar que é "dono da verdade". Isso só pode vir de uma confusão gigante sobre o propósito do  debate racional. Alguém que oferece argumentos os está submetendo-o a escrutínio crítico. Se  alguém faz isso, é porque quer que seus argumentos sejam analisados por outras pessoas, para ver  se eles realmente sustentam a conclusão que visam sustentar, e se realmente provam que a  conclusão é verdadeira ou não. A maioria das pessoas possui uma idéia tão distorcida do que é um  debate racional, que tendem a ver tudo ao contrário. Quando alguém, ao invés de oferecer  argumentos, apenas apela a intuições, ou apenas faz exclamações do tipo "isso é mesmo um  absurdo!", "que coisa horrível", sem dar base alguma para sustentar suas exclamações, então é  visto como alguém tolerante e "aberto a rever suas concepções". Nada poderia estar mais longe da  verdade. 

Note que a questão aqui não é dizer que alguém se acha "dono da verdade" porque não está aberto a  avaliar os seus argumentos. A questão é que geralmente, só por alguém oferecer um argumento e  pretender que as conclusões a que ele conduz sejam verdadeiras, só por isso, alguém já é  classificado como pensando ser "dono da verdade". Em contrapartida, geralmente esse mesmo tipo de  pessoa enxerga alguém que fala "é tudo muito relativo!" como sendo tolerante e aberto a pensar  com seriedade no assunto.  Isso só pode vir de um entendimento grotesco do que são  argumentos. Para começar, não só quem escancara que está a oferecer argumentos pretende que suas  conclusões sejam verdadeiras: todo mundo faz a mesma coisa, toda vez que afirma ou nega algo,  (mesmo quando se esforça ao máximo para esconder os argumentos, e esconder a pretensão de que sua afirmação  ou negação tenha validade objetiva). Por exemplo, você pretende que o que afirmou sobre mim seja  verdadeiro. Então, se é para classificar como se achando "dona da verdade" toda pessoa que  pretenda que os seus argumentos sejam sólidos e que as conclusões que chega são verdadeiras,  então tem-se que se classificar todo mundo assim.

É claro, é muito mais fácil pensar que "tudo é muito relativo mesmo", "a verdade é relativa", e  que ninguém erra nunca. Só que, ao contrário de quem oferece argumentos visando sustentar uma  conclusão, é quem defende esse tipo de perspectiva que pode ser legitimamente acusado de não  estar aberto a rever suas concepções. Afinal de contas, se "a verdade é relativa a opinião de  cada um", para que então rever suas concepções, não é mesmo? Só que, o primeiro problema é que,  então, alguém que pensa assim não tem razões para criticar o adversário pelo que ele defende (nem  pela maneira que ele se comporta, já que, segundo essa visão, ele não está errado, já que ninguém errada nunca, pois é tudo "muito relativo"). O segundo  problema é que essa afirmação pretende ser ela mesma verdeira  em termos objetivos, e não,  relativa. Isso a torna auto-refutante.

Assim, todo mundo, o tempo todo, está a fazer afirmações e argumentos cuja pretensão é de  validade universal. É impossível pensar alguma coisa com sentido e que ao mesmo tempo consiga  fugir dessas condições. Mesmo quando dizemos "esse assunto em particular é muito subjetivo",  queremos que essa sentença seja verdadeira em termos objetivos (e não "verdadeira para mim"). A  diferença toda, entre as pessoas, reside no fato de que algumas escancaram que estão a fazer  reivindicações objetivas e a utilizar argumentos cuja pretensão é de validade universal, e outras  pessoas mascaram esse ponto para que suas posições sejam vistas como tolerantes e como não  discordando de ninguém. Então, é esse tipo de pessoa que pode legitimamente ser acusada de  desonestidade intelectual, e não, quem oferece argumentos para sustentar suas conclusões.

A questão é que a maioria das pessoas, incluindo você, não faz a mínima idéia do que seja um  debate racional. Vêem a argumentação como um jogo de manipulações, e não como tentativas de  chegar à verdade. Talvez, porque elas próprias só utilizem argumentos dessa maneira. O que  acontece é que as pessoas estão tão acostumadas a esse jogo manipulatório nos debates, e tão  arraigadas em sua crença no relativismo (que surge geralmente para não terem que assumir que,  muitas vezes, elas estão totalmente erradas), e a só participarem de debates onde cada um tenta  berrar mais alto do seu lado "isso é um absurdo!", sem discutir argumento nenhum, que então vêem  alguém oferecendo argumentos como se achando "dono da verdade". É claro, quem pensa que ninguém  se engana nunca, que é tudo muito relativo, que respeitar as pessoas é respeitar suas idéias, por mais implausíveis que sejam, não  suporta o fato de descobrir que está errado. Enquanto o outro lado faz igual, e apenas grita  "isso é um absurdo!", sem oferecer argumento nenhum, as pessoas se sentem confortáveis com suas  crenças, e falam falsamente que o interlocutor é uma pessoa "respeitável para se debater", só  porque o interlocutor não demonstrou que sua crença estava errada (é claro, ele apenas ficou a  exclamar, igual a você, que "é tudo muito absurdo!": não colocou você e suas crenças contra a parede).

Agora, o que gente assim não suporta é ter que dar de cara com o fato de que os argumentos que  ofereceu eram muito ruins (quando existiram!) e as crenças que sustentavam eram totalmente  implausíveis. São pessoas assim, que realmente se acham os verdadeiros "donos da verdade", porque  não suportam ter que dar de cara com um argumento que prova que estão errados; por isso gostam de  dizer que tudo é muito relativo e é só uma questão de opinião, e que o interlocutor só é  respeitoso  enquanto ficar a exprimir exclamações sem uma argumentação. Ou seja, quem  pensa assim se acha democrático, mas o seu respeito pelo ideal democrático vai apenas até o  momento onde o interlocutor oferece um argumento para mostrar que se está errando. Quando o  interlocutor faz isso, então ele é um "arrogante", "prepotente", "dono da verdade". "Como  o Luciano é prepotente! Além de dar um argumento que visa mostrar que estou errada, além de tudo,  ele pretende que o argumento seja sólido e a conclusão seja verdadeira! Quanta prepotência!"

Nesse momento, essas pessoas vão atacar quem ofereceu a demonstração de que o argumento era ruim  (porque não suportam saber que estão erradas). É como mandar assassinar um mensageiro que veio  dar uma notícia ruim. Nesse momento, só surgem argumentos ad hominem (que foi o que aconteceu  naquele debate e o que você está a fazer agora). Nenhum dos argumentos que ofereci foram  discutidos. Tudo o que se fez foi afirmar que sou arrogante, prepotente, hipócrita porque ofereci  um argumento para mostrar que vocês estão errados. Sinto muito, mas, como todo mundo sabe, isso  não prova que o que falei estava errado. É por isso que o argumento ad hominem é uma falácia:  mesmo que fosse verdade que sou tudo aquilo de que me acusam (prepotente, arrogante, hipócrita),  isso não tem poder algum de mostrar que aquilo que defendo está errado.Você está a fazer a mesma  coisa agora: não mencionou nenhum argumento do texto que você comenta (talvez por que não tenha  tido nem a mínima decência de ler aquilo que comenta), apenas dirige ataques à minha pessoa, e à  forma com que falo. O uso dessa tática é muito comum: quando não se consegue provar que as idéias  que o adversário defende estão erradas, ao invés da saída humilde de se admitir que o  interlocutor tem razão, a pessoa prepotente parte para os ataques pessoais. Para se ter uma idéia  do nível do debate no facebook que você menciona, ele teve pérolas do tipo: "olha, os argumentos  que você endereçou são bons, mas eles caem por terra porque você é pedante, arrogante,  egocêntrico, etc.". Se isso não for um exemplo escancarado de falácia ad hominem, eu não sei mais  o que pode ser.

Sobre a falácia ad hominem, escrevi esse artigo:

http://www.anda.jor.br/10/12/2012/o-uso-de-estrategias-ad-hominem-para-continuar-a-se-desrespeita r-os-animais-nao-humanos

Sobre o que acusações de hipocrisia não tem o poder de provar, escrevi esse artigo:

http://www.anda.jor.br/15/12/2012/igualdade-animal-e-nao-veganismo-individual

Um conselho: se pretendem mostrar que estou errado no que defendo, é bom começar tentando avaliar  os argumentos que ofereço e tentar procurar erros neles. Daí então, faz todo sentido me mostrar  que há algo de errado com eles, e que as conclusões que cheguei são falsas. Até agora, só vi ataques à minha pessoa e à forma com que  escrevo. Isso só vai me fazer acreditar que vocês não conseguem mostrar que estou errado, e por  isso apelam à tática ad hominem, porque não suportam descobrir que estão errados em alguma coisa,  já que se acham "donos da verdade". Enquanto utilizarem da tática ad hominem, só vão é fazer eu  pensar que estou certo, que fazem assim porque não conseguiram encontrar nenhum erro com os  argumentos, e estão "embirradinhos" porque não suportam o fato de saber que estão errados em  alguma coisa. "Vejam que blasfêmia! O Luciano ali demonstrou que eu, a "dona da verdade" estou  errada em alguma coisa! Mas, é muita petulância mesmo!".

Quem já leu qualquer artigo que escrevo (inclusive, alguns deles, artigos que são respostas a  debates) sabe que o que faço são avaliar os argumentos. Até agora, em muitas questões, eu e meus  críticos discordamos muitas vezes radicalmente (como é o caso do artigo que você está a  comentar). O debate, nesses casos, contudo, ocorre normalmente, como deveria ser. É totalmente  falsa a afirmação de que acuso alguém de ser imbecil por discordar das minhas idéias. Quem leu  meus artigos (inclusive este que você está a comentar) sabe que, muitas vezes, agradeço ao  interlocutor por ter me apontado um erro de argumentação e por ter mostrado que eu estava errado  no ponto em questão. Além do próprio artigo que estamos a comentar, um ótimo exemplo de debate  saudável onde os interlocutores discordaram radicalmente de mim, e o clima foi totalmente respeitoso, pode ser visto aqui. No debate que você  menciona, do facebook, eu não acusei ninguém de ser imbecil por discordar de mim. Isso é uma  manipulação grosseira. Eu afirmei, ao invés, que determinadas idéias são pura imbecilidade,  porque não possuem nenhum bom argumento a seu favor, e, depois de poucos momentos de reflexão  crítica, já se revelam tolices, preconceitos irracionais.

Para quem não sabe do debate no facebook que você menciona, e pode ter uma idéia errada do que  você está a apontar, a imbecilidade da qual falo diz respeito a uma interlocutora no debate ter  afirmado que estuprar e assassinar não são questões morais (questões que exigem uma justificativa  quando estamos a decidir), que são apenas questões jurídicas (ou seja, coisas que deveríamos deixar  de fazer apenas porque existem leis proibindo-as). No entender da interlocutora, a única regra  moral seria jamais mentir. Torno a repetir: pensar assim é uma imbecilidade, porque, se estuprar  e assassinar não são questões morais (questões que exigem uma justificativa sobre como decidir),  a despeito do dano gravíssimo que causam às suas vítimas, então, é muito difícil imaginar como é que qualquer  outra coisa poderia ser uma questão moral. Para começar, como é que mentir (que causa um dano  muito menor do que estuprar e assassinar), seria uma questão moral, em primeiro lugar? Aliás, se  nem estuprar nem assassinar são questões que merecem reflexão moral (se são o tipo de decisão  moralmente neutra, como pentear o cabelo para o lado ou para trás), por que haveriam de existir  leis proibindo essas coisas então?

No referido debate no facebook, muitas pessoas que comentavam me acusando das mesmas coisas  (arrogante, pedante, etc.) sequer leram o que escrevi antes. A prova disso é que muitas pessoas  falavam exatamente os mesmos argumentos que eu já havia respondido anteriormente. Algumas dessas  pessoas até orgulharam-se de não ter lido o que escrevi, e de nunca terem lido nada sobre o tema.  Isso revela o quão preparadas elas estão para entrar num debate ou escrever sobre determinado  tema, e revela também muito da sua "boa intenção" por trás de debater (xingar o interlocutor sem  ter lido o que ele fala). E, então, quando a gente apenas posta novamente o link para onde está a  resposta já oferecida anteriormente para o argumento que ele torna a repetir, somos considerados  arrogantes. É claro, alguém assim deve ser achar tão especial que quer que o interlocutor repita  somente para ele, escrevendo tudo novamente o que já havia falado, porque ele é muito especial  para se dar ao trabalho de ler aquilo que já foi respondido anteriormente (e, que ele nem vai ler se for escrito novamente, já que o seu objetivo não é refletir sobre o tema, mas, xingar o interlocutor).

E, para quem não sabe do debate em questão (que era um debate em uma comunidade onde só haviam  veganos), uma das idéias que defendi que causou repulsa foi a idéia de que o especismo, racismo e  sexismo são preconceitos igualmente deploráveis, e que os animais devem ter direitos. Isso mesmo:  muitos veganos tem uma repulsa moral pela idéia de que existe a obrigação de respeitar os animais  (que envolverá, por exemplo, proibir legalmente o seu uso, assim como a escravidão humana é  proibida legalmente). Descobrir que muitos veganos pensam assim não deveria causar espanto. Isso  porque, alguém ser vegano não significa que esse alguém deixou de ser especista.Vejamos por que:

O especismo não é caracterizado pelo uso dos animais. Isso é só uma conseqüência do especismo. É  possível que alguém seja especista e não utilize os animais (seja vegano). O especismo se  caracteriza pela idéia de que seres humanos estão justificados em tratar membros de outras  espécies como inferiores. Assim, os especistas acham, por exemplo, que está certo, que humanos  tem direito moral de utilizar os animais não humanos. Então, alguém que não faz uso dos animais  (é vegano), mas acha correto que outras pessoas o façam, é especista. Geralmente, esse tipo de  vegano defende com unhas e dentes o direito de outras pessoas, que não ele, fazerem uso dos  animais, se quiserem. Enxergam a questão assim: humanos tem direito de explorar os outros  animais, mas quem não quiser fazer, não tem problema (é moralmente opcional), assim como quem  quiser jogar pingue pongue tem esse direito, mas, quem não quiser fazer, não tem problema. Isso  porque, não reconhece nem direitos morais, muito menos igualdade, para os animais. É vegano por  questão de gosto, não por questão de justiça. Então, mentalmente, é tão especista quanto quem usa  os animais. Esse tipo de tolice surge da confusão em não se saber distingüir uma questão de ética, justiça, de uma questão de gosto pessoal.

O especismo, por ser uma idéia imbecil (carece de qualquer justificativa a seu favor) é uma idéia  que qualquer um tem o dever de combater. E, vou combater o especismo, venha de onde vier, seja de  gente que usa os animais, seja de veganos.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

FAQ sobre anti-especismo

Elaborei, como resposta às objeções levantadas pelo Dr. Carlos Eduardo Nazareth Nigro à perspectiva anti-especista, um FAQ sobre o tema.

Eis aqui o índice das respostas:

Parte 1 – A crença de que um indivíduo possui maior valor moral por ser mais racional

Parte 2 – A crença de que um indivíduo possui maior valor moral por ser membro da espécie humana

Parte 3 – A (ir)relevância das intuições

Parte 4 – A idéia de que animais não possuem valores e a defesa do bem-estarismo

Parte 5 – O argumento da casa em chamas

Parte 6 – A crença no “senso de proporção”

Parte 7 – Sobre o egoísmo e suas derivações

Parte 8 – O racismo por trás de argumentos que pretendem ser anti-racistas

Parte 9 – Argumentos de ladeira escorregadia

Parte 10 – Confusão entre igualdade senciente e ambientalismo


Parte 10 – Confusão entre igualdade senciente e ambientalismo

#185 – O erro em se pensar que rejeitar o especismo implica em aceitar o ambientalismo

Por fim, Nigro confunde a proposta dos que defendem a igual consideração entre os seres sencientes com a proposta da ecologia profunda. Nigro escreve:

“Não é possível da defesa da valorização de cada pessoa humana, única e especial, derivar para a homofobia, o machismo e o racismo. Mas deriva mesmo para o especismo porque todas as pessoas são muito mais importantes do que os indivíduos das outras espécies - não tente concluir desta frase que eu defendo a extinção de todas as espécies. [...] O indivíduo necessariamente desaparece por trás da animalidade e da coletividade. O que resta é o discurso ecológico, o endeusamento da Terra e da sociedade. São conseqüências dessa dissolução do indivíduo como alguém único e especial: o totalitarismo, o eugenismo, o infanticídio e, em breve, manipulações genéticas e clonagem”.

#186 – Especismo, racismo e sexismo são injustificáveis devido à mesma razão

Com relação à primeira parte do comentário, Nigro, mais uma vez, parece não ter percebido o que os filósofos defensores da igual consideração estão a denunciar: que a espécie biológica é um critério tão moralmente arbitrário e moralmente irrelevante quanto são a raça, gênero ou opção sexual. Como a discussão desse argumento já aparece detalhadamente em partes anteriores do artigo (#3 até #28), me limitarei à segunda.

#187 – Ambigüidade com o termo eugenia

O primeiro problema é que novamente Nigro coloca sob o mesmo grupo questões morais totalmente distintas: totalitarismo, eugenismo, infanticídio, manipulações genéticas e clonagem. Não é objetivo do presente artigo discutir a moralidade de cada uma dessas questões. Na sessão anterior (#177 até #180), falei algo sobre o que torna o infanticídio uma questão moral, e em que condições ele é justificável e em que condições não é. Quanto às outras questões, me limitarei a apontar que o debate contemporâneo sobre eugenia, manipulações genéticas e clonagem – diferentemente do totalitarismo - em nada tem a ver com o totalitarismo e a “dissolução do indivíduo”, como Nigro aponta. O termo “eugenia” sofre do mesmo mal do termo “eutanásia” (que já foi discutido anteriormente): é associado a práticas nazistas que em nada se assemelham ao que se discute no debate contemporâneo. Enquanto que os nazistas enxergavam a “melhoria da espécie humana” como significando torná-la composta somente por indivíduos da raça ariana, o que se refere pelo termo “eugenia” no debate filosófico nada tem a ver com isso. Considere esse exemplo: supondo que se descubra, no futuro, que a causa de vários tipos de câncer e outras doenças é genética. Supondo que se descubra também que é possível eliminar essas doenças de uma vez por todas: basta uma modificação nos genes. Assim, ninguém mais nasceria vulnerável ao câncer e outras doenças. Eu não entendo como é que alguém ser invulnerável ao câncer pode significar a “dissolução do indivíduo”. Quer dizer agora que, para alguém ser um indivíduo, ele precisa ser tão vulnerável a doenças quanto a natureza o fez?

#188 – Diferença entre valor do indivíduo e qualidade da vida do indivíduo/ o defensor dos indivíduos contrário a melhorar a situação dos indivíduos

Nigro e muitas outras pessoas que se colocam a discutir questões como eutanásia e manipulações genéticas cometem uma confusão básica (devido ao preconceito que possuem): não distinguem entre o valor do indivíduo e a qualidade da vida desse indivíduo. Os nazistas também igualavam as duas coisas: pensavam que se uma raça fosse “superior” (no sentido em que tivesse mais habilidades, fosse menos vulnerável a doenças, etc.), então que os membros dessa raça também valiam mais, enquanto indivíduos. Como já discutimos anteriormente, isso é um erro moral básico: aqueles que são mais fortes e habilidosos devem ter apenas mais deveres, e não, mais direitos (muito menos o direito de desconsiderar os interesses dos mais fracos). Para a mentalidade nazista, a constatação de alguém possuir algum problema genético é uma premissa para se inferir a conclusão de que esse alguém não merece respeito. Os que se negam a reconhecer que existem problemas que são genéticos, apesar de se colocarem como defensores da igualdade, partem da mesma premissa moral errada da qual partem os nazistas: de que o fato de alguém ter um problema genético é uma razão para considerá-lo como inferior (por isso, tentam negar a constatação factual de que existem problemas genéticos). Novamente, a discordância entre essas pessoas e os nazistas não é entre princípios morais (como vimos em #158 até #168), é entre os fatos. Ambos acreditam que, se alguém tem um problema genético, então que merece ser considerado como inferior. Os nazistas, partindo dessa premissa moral errada constatam o fato de que existem sim, doenças genéticas, e inferem daí a conclusão que se segue da premissa (de que essas pessoas não merecem consideração). Os que criticam a conclusão dos nazistas, mas partem da mesma premissa moral errada, têm que negar os fatos, para não admitir que a premissa está errada (e, para não admitir a conclusão que se segue logicamente dela). Por isso, negam que existam doenças genéticas. A situação é ridícula, pois são essas pessoas que se intitulam “defensores dos indivíduos” que, por partirem dessa premissa envolta numa confusão moral sem tamanho, são contra a práticas que podem melhorar e muito a vida dos indivíduos. Por outro lado, os que são rotulados por essas pessoas de desconsiderarem o indivíduo por aprovarem determinadas manipulações genéticas, defendem tais manipulações justamente pensando em melhorar a qualidade de vida (conclusão que surge da aceitação de que, quanto pior é a situação de alguém, maior consideração ela precisa) dos indivíduos atingidos pela decisão. É ridículo ver alguém que se intitula “defensor dos indivíduos” ser contra uma modificação genética que poderá curar o câncer, por exemplo, ao mesmo tempo que é a favor de matar animais não humanos sencientes (portanto, indivíduos) para qualquer fim, seja um fim importante, seja um fim banal. A situação é tão absurda, pois envolve uma confusão enorme. E dessa confusão resulta a conclusão de que, por exemplo, para dar igual consideração a alguém que não tem uma perna, tem-se que pensar que é errado lhe fornecer uma prótese; para dar igual consideração a alguém que tem neurofibromatose (a chamada “doença do homem-elefante”), então que não podemos lhe arranjar uma operação que torne menos pior sua condição, e que nem mesmo devamos procurar uma cura. Essa conclusão é imbecil. A negação em aceitar que sim, tais pessoas têm uma doença, só surge daquela premissa moral errada: de que, se alguém tiver mesmo uma doença, então que ela não merece consideração, ou que merece uma consideração menor. A conclusão moralmente correta é a contrária: quando alguém tem uma doença, ela merece prioridade; quanto pior a doença, maior a prioridade. É somente devido a existir um mundo cheio de analfabetos morais  que é possível acontecer situações ridículas como essas: defesas da igual consideração entre os indivíduos são vistas como manobras nazistas; manobras que partem da mesma premissa moral que os nazistas são colocadas como defesa da igualdade pelos próprios auto-intitulados defensores da igualdade.

#189 – Veneração pelos processos naturais: desvalorização do indivíduo

Outra possível raiz da confusão de Nigro talvez seja a veneração pelos processos naturais. Modificar aquilo que é natural (mesmo quando o que é natural resulta em algo terrível para os indivíduos, como a doença da neurofibromatose, a síndrome da dor crônica, a síndrome do pânico, a depressão e a síndrome de arlequim, por exemplo) é, para essas pessoas, ser arrogante e “brincar de deus”. É claro, essas mesmas pessoas buscam tratamento quando ficam doentes. Mas, como mencionei anteriormente, o fato de elas serem hipócritas não prova que elas estão erradas. O que prova que elas estão erradas é outra coisa, que pretendo discutir agora. Dessa discussão, podemos entender melhor por que a comparação entre os defensores da igualdade senciente (centrada nos indivíduos) e o ambientalismo holista, tal como presente na ecologia profunda [13] (centrado na desvalorização dos indivíduos e na valorização do todo) é, além de errada, espantosa: uma corrente é o oposto da outra, em termos éticos. Dessa discussão, gostaria de mostrar que é o pensamento de Nigro (ainda que o autor não perceba e não tenha má intenção), de ser contra modificar a natureza mesmo quando isso for altamente benéfico para os indivíduos (e altamente prejudicial caso não o fizermos) que têm semelhanças com a postura presente nos regimes totalitários e no ambientalismo holista: a desvalorização do indivíduo.

#190 – Diferença básica entre igualdade senciente e ambientalismo holista quanto ao que possui valor em si e valor instrumental

Comecemos por notar que, se alguém é contra modificar um processo natural, mesmo que esse processo natural seja um inferno para os indivíduos atingidos por ele, então é porque esse alguém acredita que tais processos possuem valor moral (ou seja, que devam ser objeto do respeito). De outra forma, não faria sentido pensar que é errado modificar tais processos. E mais, alguém que pensa assim precisa acreditar que o valor moral de tais processos não é pequeno: é grande a ponto de anular o valor dos indivíduos. Reconhecer o valor dos indivíduos, pelo contrário, nos conduz à conclusão de que temos de aliviar o seu sofrimento, garantir que ele não sofra dano por privação, aumentar o seu desfrute, etc. Mencionei a veneração pelos processos naturais com vistas a agrupar essa visão e outras semelhantes de um lado, e a visão do respeito pelos indivíduos de outro. Outra visão semelhante à veneração pelos processos naturais (e que surge dela) é a visão do ambientalismo holista. No ambientalismo holista (tal como presente, por exemplo, na ecologia profunda), entidades como ecossistemas, espécies, a Terra, enfim, “o todo” têm valor. E, nessa visão, o valor dessas entidades é alto: não apenas supera o valor dos indivíduos em caso de conflitos de decisão para sabermos quem devemos preservar, como também os indivíduos só possuem valor à medida que forem instrumentos para manutenção do valor dessas entidades. É por esse motivo que se diz que, em visões totalitaristas (ou seja, que vêem valor apenas no todo, como por exemplo, a ecologia profunda), os indivíduos possuem valor instrumental. Nesse tipo de visão, o “todo”; seja esse “todo” um ecossistema particular, a Terra inteira, as espécies (não os indivíduos membros das espécies) ou os processos naturais em geral; é que possui valor em si. Já a visão que defende igual consideração para todos os seres sencientes é centrada no oposto: o “todo” (os processos naturais, os ecossistemas, a Terra inteira) possui valor instrumental para os indivíduos sencientes (e apenas quando tais coisas beneficiam os seres sencientes); já os seres sencientes possuem valor em si.

#191 – Pensar que igualar animais humanos e não humanos terminará no ambientalismo só pode vir da própria visão ambientalista da negação do valor do indivíduo quanto a animais não humanos

Estando claro agora que as duas visões são opostas, é possível perceber a enorme confusão que Nigro fez. A defesa da igual consideração para todos os seres sencientes jamais terminará num raciocínio do tipo do ambientalismo holista. Defender que todo ser senciente merece igual consideração é se basear no valor do indivíduo. É defender que cada indivíduo senciente merece estar o melhor que for possível. O detalhe curioso é que, se Nigro conclui da defesa da igual consideração para todos os seres sencientes, que o “indivíduo necessariamente desaparece por trás da animalidade e da coletividade [...] o que resta é o discurso ecológico, o endeusamento da Terra e da sociedade” é porque se baseia na mesma visão ecológica que está a criticar: que os animais não humanos só tem valor instrumental (enquanto membros de espécies, ou partes de um ecossistema, ou quanto à sua utilidade para humanos, etc.). É por esse motivo que Nigro teme que se iguale animais não humanos a animais humanos em termos de status moral: ele pensa que, então, todos possuirão apenas valor instrumental para a manutenção do todo (mas, ele só pensa assim porque assume que o valor dos animais não humanos é instrumental). É só por desvalorizar completamente os animais não humanos enquanto indivíduos que Nigro pode chegar a uma conclusão absurda como essa. Como discutimos detalhadamente na sessão anterior (#169 até #184): a proposta dos defensores dos animais é elevar o status destes enquanto indivíduos, retirá-los da categoria de coisas (sejam coisas para usar como recurso ou coisas para a manutenção da espécie, do “Todo”, do ecossistema, etc.), e não, colocar os humanos nesse mesmo tipo de categoria de coisas.

#192 – A noção de indivíduo está atrelada à noção de senciência

Infelizmente, (assim como também o fazem inclusive, por mais estranho que isso possa parecer, muitos ativistas dos direitos animais), Nigro confunde ética animal com ambientalismo. Não é possível defender a igual consideração para todos os seres sencientes e ao mesmo tempo negar o valor do indivíduo. Isso porque a noção de senciência está intimiamente atrelada à noção de indivíduo: não existe ser senciente que não seja, ao mesmo tempo, um indivíduo; e não existe indivíduo que não seja senciente. Isso porque, para alguém ser um indivíduo, precisa possuir uma mente, pois é a mente que faz a distinção entre sujeito e objeto. Para isso, é necessário a capacidade de sentir. Toda sensação precisa de um indivíduo que a sinta. É por isso que defender os seres sencientes é a mesma coisa que defender os indivíduos.

#193 – Resumo das diferenças principais entre visões centradas no indivíduo e visões totalitárias

Voltemos então à divisão que fiz anteriormente. De um lado, temos a visão da igual consideração para todos os seres sencientes, que é centrada no valor do indivíduo, e que entidades não-sencientes possuem valor instrumental para os seres sencientes (ou seja, possuem valor apenas quando beneficiarem os seres sencientes). Do outro temos visões totalitárias, dentre elas a visão da ecologia profunda: são centradas no valor do “todo” (seja esse “todo” comunidades, sociedades, espécies, a Terra, ecossistemas, etc.), e os indivíduos possuem valor instrumental (ou seja, possuem valor apenas quando beneficiarem o “todo”). Uma diferença marcante, que às vezes é perdida de vista com relação aos dois tipos de visão, é que elas podem ser resumidas numa divisão assim: (1) Seres sencientes (indivíduos) possuem valor em si; entidades não sencientes possuem valor apenas instrumental; (2) Entidades não sencientes possuem valor em si; seres sencientes (indivíduos) possuem valor apenas instrumental.

#194 - Ambientalismo coerente (não especista) e incoerente (especista): porque é injustificável seja lá de qual forma apareça

Vale a pena ressaltar, contudo, uma observação correta que está implícita no argumento de Nigro: que, para alguém ser coerente com o tipo de ambientalismo holista presente na ecologia profunda, alguém tem que rejeitar por completo o valor de seres humanos, enquanto indivíduos. Isso porque, como vimos, a visão moral embutida na ecologia profunda é que os indivíduos possuem valor apenas instrumental. Contudo, raramente encontramos uma postura ambientalista coerente. Uma das raras exceções é a visão de Penti Linkola [14] : ele rejeita o valor de quaisquer indivíduos, quer sejam humanos, quer sejam não humanos. Note que não estou a afirmar que, devido à sua visão ser coerente, então que está correta. Já expliquei anteriormente (#14 e #15) por que pensar assim é um erro: por que é possível alguém aplicar coerentemente um mau critério. Como explicarei a seguir (#197), a idéia de que indivíduos não possuem valor é um mau critério. O que é importante agora é notar que a maioria dos ambientalistas é incoerente quanto a esse ponto: eles rejeitam o valor de indivíduos apenas quando os indivíduos em questão são membros de outras espécies, e não, quando são humanos. Então, todas essas visões incoerentes de ambientalismo são necessariamente especistas, portanto injustificáveis moralmente. E são injustificáveis porque qualquer razão que explique o valor de seres humanos enquanto indivíduos explica ao mesmo tempo o valor de qualquer indivíduo nãohumano, enquanto seres sencientes. Então, seja lá qual a forma de ambientalismo (coerente ou incoerente), é injustificável: se coerente, é injustificável porque comete o erro de não reconhecer o valor de indivíduos (explicarei por que isso é um erro a seguir, em #197); se incoerente, é injustificável porque é especista.

#195 - Ética animal e ambientalismo não combinam: e os ambientalistas perceberam esse ponto

 O que é curioso em toda essa história é que é mais fácil para os especistas (do que para os defensores dos animais) perceberem que um ambientalismo coerente requer rejeitar o valor de indivíduos em geral (o que inclui rejeitar a idéia de igual consideração para qualquer ser senciente, seja humano, seja não humano), e que a aceitação do valor do indivíduo requer rejeitar o valor dos processos naturais. Aceitar a igual consideração para seres humanos, como vimos, requer aceitar a igual consideração para todo e qualquer ser senciente. Isso porque qualquer razão plausível que explique o valor de seres humanos enquanto indivíduos explica ao mesmo tempo o valor enquanto indivíduos dos demais seres sencientes. Aceitar que indivíduos possuem valor em si, por sua vez, requer a rejeição do ambientalismo (que envolve ou a visão de que indivíduos possuem apenas valor instrumental ao todo, ou então, mesmo admtindo algum valor nos indivíduos, que é sempre menor que o valor do “todo” não senciente). O próprio Callicott [15] , que é um ambientalista incoerente especista (aceita o valor dos indivíduos quando a questão são os humanos; rejeita o valor dos indivíduos quando se tratam de não humanos) percebeu uma incoerência no pensamento da maioria dos animalistas: tentar unir ética animal com ambientalismo.

#196 - Danos naturais

Como já detalhei em outros dois artigos [16], a vida que os animais levam na natureza, devido aos processos naturais mesmos (independentemente dos danos causados por humanos), é um inferno: a regra é a morte por inanição, parasitismo e predação, o que resulta que a qualidade de vida dos seres sencientes sujeitos aos processos naturais quase sempre se resume a apenas sofrimento intenso, do momento que nasce até o momento que morre (a maioria nasce apenas para morrer de inanição). Então, defender o dever de preservar os processos naturais (que, na maioria das vezes, provocam quase que uma maximização do sorfimento) é mostrar uma desconsideração total pela morte e sofrimento dos mesmos indivíduos que se diz proteger. É claro, Callicott menciona essa questão como uma tentativa de redução ao absurdo da proposta da ética animal [17]. Algo como: “vejam, se temos de considerar os animais não humanos enquanto indivíduos, temos de protegê-los da morte por inanição, parasitismo, doenças, predação, etc. – e isso é absurdo; logo, não devemos considerá-los como indivíduos”. Uma análise mais profunda, contudo, revelará que o preconceito, o absurdo, está na veneração pelos processos naturais, embutido na visão ambientalista e, infelizmente, na maioria dos que se dizem defensores dos animais. Afinal de contas, ninguém considera absurdo, uma vez tendo-se reconhecido o valor de seres humanos enquanto indivíduos, então que deve-se protegê-los do mal que sofrem por inanição, parasitismo, doenças, predação, etc. Todos esses danos são causados naturalmente, é verdade. Contudo, isso não é relevante, haja vista que se o dano é artificial ou natural não altera a característica do dano ser algo ruim, ser um prejuízo para o indivíduo. Para uma vítima, não faz diferença se ela sofrerá um sofrimento x devido a uma doença ou devido a um ataque de um humano. Se evitável, permitir que o dano aconteça ou praticá-lo ativamente são igualmente errados. Não direi mais nada sobre essa questão, no presente momento. Os que tiverem interesse no assunto ou objeções podem consultar os dois artigos mencionados.

#197 – Por que indivíduos sencientes possuem valor e por que qualquer teoria moral plausível precisa aceitar esse valor

Já argumentei anteriormente explicando por que a senciência (#17 até #22, #26, #116, #128 até #130, #168, #192) é um critério moralmente relevante. Então, devido a isso, darei como algo não controverso que seres sencientes (indivíduos) possuem valor moral. Apenas recapitulando a razão central: seres sencientes são o tipo de seres que valorizam: faz diferença para eles estar num estado ou em outro. Todo ser senciente busca o prazer e foge do sofrimento. São o tipo de ser que precisa de consideração moral porque são vulneráveis (é possível prejudicá-los, por inflição de sensação ruim ou por privação de sensação boa). Note que já somente devido a seres sencientes possuírem valor moral, a visão incorporada no ambientalismo holista se revela moralmente errada, pois ela nega o valor de seres sencientes (e, o que é pior, sem um argumento que dê base para essa negação). Se adotarmos a visão da ecologia profunda, teremos de dizer que o erro em colocar fogo em outra pessoa não tem nada a ver com o fato de ser uma experiência horrível ser queimado, mas sim, que isso pode afetar prejudicialmente (e apenas se afetar prejudicialmente) um ecossistema, por exemplo. Obviamente, há algo de muito errado nisso. A razão principal para não queimar alguém é que o sofrimento é algo ruim. Então, se quiserem manter sua posição minimamente plausível, os proponentes do ambientalismo holista precisam incorporar a premissa de que os seres sencientes têm valor. Se não se reconhece nem que seres que possuem sensações de dor e prazer precisam ser considerados, fica mais difícil ainda dizer que entidades que sequer sentem alguma coisa, sequer tem alguma experiência, sequer desejam um estado ao invés de outro, precisam. Então, mesmo se reconhecerem o valor dos seres sencientes, os proponentes do ambientalismo holista tem uma tarefa muito mais difícil. Eles têm de provar não apenas que entidades não sencientes possuem valor; tem de provar que esse valor supera o valor dos seres sencientes. Para descobrirmos qual das duas visões devemos adotar (a visão da igual consideração para os seres sencientes ou essa visão de ambientalismo holista modificada para se tornar mais plausível), as perguntas cruciais que temos de responder, então, são as seguintes: entidades não sencientes possuem valor moral? Se possuírem, qual o tamanho desse valor? Minha conclusão, como veremos na seqüência, é que não precisamos responder à segunda pergunta, porque a resposta da primeira é “não”.

#198 - Por que não funciona uma combinação de ética animal com ecologia profunda, nem mesmo se modificarmos as duas visões para atribuírem valor tanto a seres sencientes quanto a entidades não sencientes

Antes de respondermos à primeira pergunta, é importante explicar por que não funciona a tentativa de juntar as duas posições. Essas tentativas são comuns por parte de alguns ativistas dos direitos animais. Como mencionei anteriormente, as duas visões são antagônicas: uma é centrada na idéia de que seres sencientes têm valor em si, e que o valor do “todo” é meramente instrumental; a outra é centrada na idéia de que o “todo” têm valor em si, e que o valor dos seres sencientes é meramente instrumental. Vimos acima que a visão da ecologia profunda, como é colocada inicialmente, é muito pouco plausível. Isso porque, como já analisamos detalhadamente antes (#17 até #22, #26, #116, #128 até #130, #168, #192) temos boas razões para pensar que os seres sencientes possuem valor em si. Se os indivíduos que valorizam não possuírem valor, fica muito difícil explicar que qualquer outra coisa tenha valor. Então, sugeri uma modificação na visão da ecologia profunda, para torná-la menos vulnerável a essa objeção. Modificada dessa maneira, a ecologia profunda pode ser entendida assim: “seres sencientes e algumas entidades não sencientes (a Terra, as espécies, os ecossistemas, etc.) possuem valor em si, mas o valor dessas entidades não sencientes supera o valor dos seres sencientes”. O que alguns ativistas dos direitos animais sugerem é modificar, também, a visão animalista, para que se reconheça que aquelas entidades não sencientes têm valor. Se fosse modificada dessa maneira, a visão da igual consideração para os seres sencientes seria assim: “seres sencientes e algumas entidades não sencientes (a Terra, as espécies, os ecossistemas, etc.) possuem valor em si, mas o valor dos seres sencientes supera o valor das entidades não sencientes”. Olhando bem para as duas definições é que podemos entender por que a junção não funciona: elas continuam antagônicas (uma continua dizendo que os seres sencientes têm mais valor, em casos de conflito; e a outra continua dizendo o oposto). Notadamente, o tempo todo, existem casos de conflitos. Se essa junção fizesse sentido, seria necessário um terceiro critério para desempates. Mas, antes de buscarmos tal critério, é preciso fazer aquela pergunta crucial que mencionei anteriormente: “entidades não sencientes possuem valor em si?”. Se a resposta for “não”, nem precisamos buscar esse terceiro critério. Se a resposta for “sim”, além da busca por esse terceiro critério, teria-se de responder outra questão importante: “por que essas entidades não sencientes (a Terra, os processos naturais, as espécies, os ecossistemas) e não outras (objetos artificiais, por exemplo)?”. Como mencionei anteriormente, penso que não precisamos nos preocupar com nada disso, porque a resposta da primeira pergunta é “não”.

#199 – Por que entidades não sencientes não possuem valor: o experimento mental do coma total irreversível

Para responder a essa pergunta (“entidades não sencientes possuem valor em si?”), vou recorrer a um experimento mental. Imagine que você está em posição de escolher o seguinte: (1) Ou você morre agora, nesse exato instante; (2) Ou você entra em coma total agora (onde você não terá sensação alguma, nem mesmo sonhos) e fica em coma total por mais cinqüenta anos; depois de passar cinqüenta anos nessa condição, no exato instante em que se completa 50 anos do coma total, você morre. Vamos supor, para melhor entendimento do exemplo, que não há nenhuma vida após a morte. A pergunta é: faz diferença para você alguma das duas opções? Não faz. Se você escolher a opção A, você se torna um corpo não senciente agora mesmo. Se você escolher a opção B, você também se torna um corpo senciente agora mesmo. Os cinqüenta anos do coma não fazem diferença para você. Não há como dizer que você foi mais prejudicado em uma situação do que na outra. Em todas as duas situações, você foi prejudicado porque perdeu de desfrutar (você foi impedido de ter sensações), mas, foi igualmente prejudicado (pois foi impedido de ter sensações na mesma medida, já que nos cinqüenta anos do coma você também não teria nenhuma sensação). É claro, você poderia objetar: “essas duas situações são diferentes moralmente sim; em uma há a angústia da família, a outra não”. Você poderia dizer, também, ao invés: “minha família é muito religiosa, e ficaria muito abalada se soubesse que não fizeram de tudo para me manter vivo”. Você poderia dizer ainda: “eu tenho uma preferência agora pelo meu corpo continuar vivo, mesmo sem sensação alguma”. Tudo isso pode ser verdade, mas o ponto é que nada disso prova que entidades não sencientes têm valor. Isso porque todas essas alegações apelam a preferências de seres sencientes (sua família, ou as suas preferências agora, enquanto você ainda é senciente). Então, em ambas opções no exemplo, você não valorizará mais nada. Sua vida biológica que virá a seguir, se escolher o coma total, não terá valor positivo (satisfação) nem valor negativo (sofrimento): será uma vida com desvalor (valor = 0).

#200 - Como as visões biocentristas teriam de abordar o exemplo do coma total irreversível

Recordemos novamente a questão que esse exemplo visa ilustrar (a saber, se entidades não sencientes possuem valor e, se sim, qual o tamanho desse valor). Ao endereçar essa questão, é importante lembrar que o holismo (a idéia de que apenas “o todo” e não os indivíduos possuem valor, como acontece na ecologia profunda) não é a única forma de visão moral que valoriza entidades não sencientes. Outro exemplo é o biocentrismo, tal como proposto por filósofos como Paul Taylor [18] e Gary Varner [19]. O biocentrismo, assim como o holismo ambientalista, também reconhece valor em entidades não sencientes. A diferença é que, no biocentrismo, cada organismo vivo individualmente possui valor, e, possui o mesmo status moral (valor em igual medida).  Analisemos, então, no caso desse exemplo do coma total irreversível, o que nos mandaria fazer uma visão que reconhecesse igual valor para todas as coisas vivas, independentemente de serem sencientes ou não (a visão biocentrista): não só teríamos de respeitar o corpo vivo, que não é mais alguém (o “alguém” que ali estava já se foi há muito tempo), como teríamos de dizer que o respeito devido a esse corpo vivo é igual ao respeito que era devido quando havia ali um ser senciente, pois ambos podem ser igualmente prejudicados. Claramente há aí uma dificuldade, pois é difícil entender como é possível algo que não pode ter sensação alguma possa ser prejudicado, haja vista que não é possível lhe infligir sensação ruim alguma nem fazer com que ele perca de desfrutar (já que o desfrute para ele é impossível). A única maneira que se poderia dizer que um corpo vivo foi prejudicado é se fosse possível fazê-lo sair do coma e, por algum motivo, não se fizesse isso. Mas, note que o prejuízo nesse caso se torna inteligível porque ele sofre uma perda: a perda do desfrute que teria caso voltasse a ser senciente.

#201 – Como as visões ambientalistas holistas teriam de abordar o exemplo do coma total irreversível

Há ainda uma implicação ainda mais absurda, no caso das visões que afirmam que, em caso de conflito, deve-se dar prevalência às entidades não sencientes (o “todo”, a biosfera, um ecossitemas, etc.). A tentação, nesse ponto, é dizer que essas visões enxergariam o corpo vivo como merecendo mais respeito do que o ser senciente que nele habitava. Contudo, essa acusação é falsa, pois a vertente da ecologia profunda que estamos a examinar aqui não considera valor em coisas individuais (no caso, o corpo vivo individual), mas apenas ao “todo” (espécies, ecossistemas, planetas, etc.). Contudo, há um sentido em que se pode acusar uma visão assim de valorizar em maior grau um mero corpo vivo do que um indivíduo senciente: já que, em se tratando de coisas individuais (sejam seres sencientes, sejam meramente vivos, etc.) essa visão atribui apenas valor instrumental, caso aconteça de o corpo meramente vivo colaborar mais com a manutenção do “todo” do que quando era senciente, então o valor do corpo vivo, de acordo com essa visão, é maior. É importante não confundir aqui com visões que vêem na preservação do “todo” valor instrumental para outros seres sencientes (como poderia-se dizer que um corpo vivo é instrumentalmente bom para pequenos insetos ou para adubar a terra, que gerará frutos para os seres sencientes, etc.). No tipo de visão que estamos discutindo, o valor instrumental é para o “todo” (que é uma entidade não senciente), e não para os seres sencientes que vivem nele.

#202 – Por que seres sencientes são vulneráveis ao prejuízo e entidades não sencientes não são

É muito difícil entender como seria possível uma entidade não senciente ser prejudicada. Vimos que a possibilidade de se prejudicar um ser senciente se dá porque ele valoriza algo. Seres sencientes vêem valor positivo na satisfação e valor negativo no sofrimento. Se alguém lhes inflige sofrimento (agrega-se valor negativo à sua qualidade de vida, em relação ao que estava antes), ou se diminui-se sua possibilidade satisfação (coloca-se tal ser num estado de qualidade de vida de valor igual a zero) ou impede-se que a satisfação aumente (o que resulta numa qualidade de vida menor em relação ao que poderia estar), são prejudicados. É um tanto enigmático pensar como é que, na ausência de qualquer coisa semelhante (na ausência de qualquer valorização por parte do objeto que será atingido pela decisão), uma entidade não senciente (seja a Terra, os processos naturais, ecossistemas, espécies, idéias, sapatos, cartazes, etc.) podem ser prejudicados. É claro, poderíamos falar algo no sentido metafórico, para querer dizer que tais coisas foram destruídas ou “estragadas”: “o ideal da igualdade será ‘prejudicado’ se não for compartilhado”; “o sapato foi ‘prejudicado’ por ter que andar na lama”; “a espécie foi ‘prejudicada’ por ser extinta”. Em cada um desses casos, o uso é metafórico. No caso do ideal de igualdade, se ele não for propagado, quem é prejudicado são os indivíduos sencientes que estiverem na pior situação. No caso do sapato, quem foi prejudicado foi seu dono. No caso da espécie, quem foi prejudicado foram os indivíduos que morreram (isso somente se algum deles foi assassinado, e se viver era algo de valor positivo para eles, como já discutimos na questão da eutanásia, em #70 até #72 e #175 até #179).

#203 – O “bem próprio” das entidades não sencientes: uso ou metafórico, ou “sencientomórfico”

Para ser possível alguém ser prejudicado, é preciso que haja um indivíduo que valorize alguns estados e desvalorize outros. Para isso, é necessário que o ser em questão seja senciente. Uma possível objeção, quanto a esse ponto, seria alegar que uma planta, por exemplo, valoriza alguns estados em relação a outros, porque só cresce em determinadas condições (o que é comumente chamado de o seu “bem próprio”). Esse uso, contudo, também é, ou metafórico ou “sencientomórfico”. É metafórico se o uso da expressão for o mesmo quando se diz, por exemplo, “o aspirador de pó ‘quer’ sugar o pó”, para se referir ao que vai acontecer se deixarmos o aspirador nas condições de funcionamento, e não para sugerir um suposto desejo por aspirar, por parte do aspirador. Se, por outro lado, se deduz, da constatação de que existem certos processos físico-químicos que orientam o crescimento de uma planta, que então há alguém “ali dentro” valorizando, então isso é um “sencientomorfismo”.

#204 – Argumentos contra o fontismo

Se, quanto a esse ponto, alguém objetar que, no caso do aspirador alguém precisa colocá-lo em funcionamento e, no caso da planta (ou das espécies, da Terra, dos processos naturais, etc.) ela faz isso sozinha, isso não dá sustentação à conclusão de que, então esse tipo de entidade tem valor em si. Isso pelo seguinte motivo. Num caso assim, o produto das forças é similar naquilo que é moralmente relevante (ambos são não sencientes), diferindo apenas com relação aos tipos de força que os coloca em movimento (num caso, são forças naturais, no outro, são forças humanas, ou seja, artificiais), então o objeto de respeito, nesse tipo de visão, são as forças originárias, não os produtos. Nesse caso, tal argumento é culpado do preconceito que denominei “fontismo” em outro artigo [20] : algo é visto como objeto de respeito (valor em si) quando produto de forças naturais; já quando produto de forças humanas, é visto como tendo mero valor instrumental. Essa visão é problemática por três motivos principais. O primeiro, é que, para manter-se coerente, teria-se de dizer que os objetos que são produto de forças naturais possuem apenas valor instrumental para essas forças, e não valor em si (por isso tal argumento não serve para defender a existência de valor em si nesses objetos). O segundo motivo é que a eleição de qual força deve ser objeto de respeito é arbitrária: por que não o contrário? O terceiro, e principal motivo, é que, do fato de que uma coisa foi produto de decisão humana não se pode deduzir, disso, que então o produto dessa decisão possui necessariamente valor instrumental. Isso porque os humanos produzem outros seres sencientes (como quando tem filhos, por exemplo). Como já foi argumentado anteriormente (#17 até #22, #26, #116, #128 até #130, #168, #192, #197, #199, #202) seres sencientes possuem valor em si, e não valor instrumental. Alguém, nesse ponto, pode objetar que o valor do que os humanos produzem é instrumental apenas quando tal produto não for senciente. Contudo, isso é petição de princípio (assumir aquilo que o argumento pretende provar). O que o argumento pretendia era dar sustentação à conclusão de que objetos não sencientes possuem valor instrumental quando são feitos por humanos, e a razão oferecida para isso era a de que tudo o que os humanos fazem possui valor instrumental.

Portanto, temos boas razões para manter a tese de que apenas seres sencientes possuem valor. Essa tese é totalmente contrária àquela que Nigro atribui aos defensores dos animais, pois é uma tese centrada no valor dos indivíduos.

Parte 11 - Conclusões finais

#205 - Os reais motivos da sugestão do critério da posse da razão como critério de consideração moral: o especismo é um preconceito de aparências

Toda a análise que fizemos acima com relação ao especismo mostra não apenas que é um preconceito eticamente injustificável, como o racismo, nazismo, machismo, homofobia, mas também, igualmente a esses outros preconceitos, é um preconceito baseado na aparência física da vítima. Como vimos, os especistas tentam mascarar essa característica de seus preconceitos, alegando que estão a se basear em outra característica para traçar a linha divisória sobre quem merece e quem não merece consideração moral: a posse da razão. Há dois problemas fundamentais com essa tentativa: o primeiro é que, assim como raça, gênero e espécie, ela também é moralmente irrelevante para saber quem deve ter seus interesses considerados. Isso porque ela resulta, como foi apontado inúmeras vezes (#3 até #28), de uma confusão entre o critério relevante para saber quem deve ser responsabilizado pelas suas escolhas (a posse da razão) e o critério relevante para saber quem deve ser moralmente considerado (a possibilidade de alguém ser prejudicado, que depende, por sua vez, da capacidade de sofrer e desfrutar – o que implica em valorizar uns estados e desvalorizar outros - a senciência). O segundo problema é que as manobras ad hoc feitas pelos proponentes desse critério de consideração moral (a posse da razão) para incluir na comunidade moral humanos incapazes de razão indicam que a real motivação para a sugestão de tal critério revela, mesmo a despeito do que dizem, um preconceito de aparências físicas. Isso porque, na maioria das vezes (senão sempre) a sugestão de tal critério é trazida não por se pensar que o critério é relevante, mas como uma mera desculpa para se excluir os animais não humanos da consideração moral (por terem um formato de corpo diferente). Quanto a essa tentativa, podemos concluir a partir de uma das poucas afirmações isentas de erro moral que Nigro fez em seu texto: discriminar com base na cor da pele ou dos olhos – e também com base no fato de alguém ser peludo ou ter escamas, ter um rabo ou não, ter posse da razão ou não, eu acrescentaria – é, nas suas próprias palavras “coisa de imbecis”. Como todos os outros preconceitos de aparência, o especismo é igualmente imbecil.

#206 – Conseqüencias do especismo e da visão da sacralidade da vida humana

Para quem ainda não se deu conta das conseqüências terríveis do especismo, é preciso lembrar que, mesmo que fosse verdade tudo o que Nigro acusa os anti-especistas (e, como vimos, a maioria das coisas não é, e as coisas que são verdadeiras, pelas razões que apontei acima, em #169 até #184, são moralmente corretas, ao contrário do que ele pensa), ainda assim, as conseqüências do especismo são muito piores do que qualquer outra coisa que se possa apontar. É a visão especista incorporada por Nigro e pela maioria das pessoas que manda torturar e matar, a cada ano, trilhões de animais não humanos, pelos motivos mais fúteis possíveis. É esse tipo de visão que produziu algo similar, em termos do número de sofrimento e mortes, a 5000 holocaustos somente nos últimos vinte anos. São os especistas que obrigam animais não humanos a viverem uma vida inteira de sofrimento, sejam galinhas espremidas todas na mesma gaiola que as impede de se mover e tem de viver com os ossos quebrados, além de receberem hormônios e terem seu metabolismo acelerado para que coloquem ovos o dia inteiro, sejam as vacas tratadas como “máquina de leite”, que tem de passar a vida inteira sem poder se mover, sendo estuprada, engravidada e tendo que ver seus filhos serem mortos como carne de vitela; sejam os bilhões de pintinhos que não tem outra coisa senão sofrimento desde que nascem e depois são colocados na pilha de descarte da produção de ovos (existe motivo mais fútil do que esse?), sejam todos os outros animais que morrem no tanque escaldante a passam uma vida inteira de sofrimento e os trilhões de peixes que são fisgados e içados e morrem por asfixia para que os humanos possam continuar a cultivar a prática imbecil autorizada pelo seu preconceito irracional. Isso sem contar os outros males que os animais sofrem, incluindo a morte, pelos outros usos (industriais ou artesanais) que os humanos fazem, e o inferno com que são obrigados a viver, na natureza (sofrimento que poderíamos fazer muito para aliviar se não fôssemos especistas, como já discuti nos dois artigos citados em #196). É a visão especista que faz com que cachorras sejam constantemente engravidadas para que seus filhotes sejam vendidos, e depois, geralmente, abandonados para morrer nas ruas. É a visão de pessoas que acreditam na sacralidade da vida humana, e que, portanto, acreditam que jamais deve-se tirar uma vida humana, seja lá em que condição esteja essa vida, que obriga milhares de humanos a terem negado o seu direito de morrer e serem obrigados a viver em condições de sofrimento extremo e inútil. Isso os conduz a se opor a qualquer caso de eutanásia, aborto e infanticídio. É esse tipo de visão que obriga alguém, por exemplo, a viver em situações de extremo sofrimento, nenhum prazer e nenhuma chance de recuperação. É esse tipo de visão que conduz a conclusões e atitudes morais que não pode ser descrita como outra coisa a não ser uma atitude de sádicos e moralmente doentes. Infelizmente, essas atitudes são a da maioria de nós, pior ainda por ser praticada todos os dias.

#207 - O truque de retórica de argumentar contra a razão

Como vimos, temos razões de peso para rejeitar o especismo (mesmo que o anti-especismo fosse tudo de ruim que Nigro aponta, o que não é verdade). Isso porque, mesmo se o fato de darmos igual consideração a todos os seres sencientes fosse terminar em todas as conseqüências (imaginárias e altamente especulativas) que Nigro aponta, ainda assim, comparado com as conseqüências reais (e não, imaginárias) do especismo, tal situação não seria muito menos pior, pois envolveria ainda menor número de sofrimento e mortes. Nesse ponto, geralmente se começa a tentar argumentar contra a razão. Isso acontece geralmente depois de se perceber que a posição que se defende não possui boas razões a seu favor. Não penso que Nigro tentaria essa tática, pois é uma pessoa que afirma aceitar a razão. Minha crítica, nesse ponto, é a outras pessoas, que utilizam dessa tática estúpida e má intencionada. Essa é uma tática muito empregue, infelizmente. Muitas pessoas entram em um debate cheias de argumentos, acreditando que se tratam de bons argumentos. Quando se mostra, um por um, que tais argumentos estão errados, depois do nocaute do último argumento, a cartada final da pessoa é argumentar contra a razão. Infelizmente, essa tática de retórica, das mais nojentas, é muito utilizada por alguns defensores dos animais que teimam em utilizar argumentos ruins e descartar os argumentos bons. Afirma-se, comumente, por exemplo, que seguir a razão produz uma moralidade “fria”, isenta de emoções. O motivo dessa tática demasiada estúpida é que não é possível de se oferecer um argumento para se afirmar que a razão não é confiável. Isso porque, para esse argumento fazer algum sentido, a razão tem de ser confiável. Senão, nenhum argumento, incluindo o que diz que a razão nunca é confiável, faz sentido. É por isso que tentativas assim são auto-refutantes. O segundo problema com essa tática, quando utilizada como acusação de que seguir a razão produz um moralidade “fria”, isenta de emoções, é que ela resulta de uma confusão e mistura de dois âmbitos distintos da moralidade: descobrir qual a decisão correta (conteúdo da moralidade) e descobrir que sentimentos deveríamos fomentar para conseguir fazer as coisas corretas (o que estariam entre as virtudes). Com relação à primeira, o papel razão é imprescindível, pois, como já vimos anteriormente, se formos nos basear em nossas intuições, é possível que estejamos apenas reproduzindo preconceitos. Com relação à segunda, o papel da razão também é imprescindível, pois, se não soubermos a resposta para a primeira pergunta, e se não soubermos que sentimentos melhor conduzem a produzir o que foi concluído nas respostas da primeira pergunta (o que requer razão também), como encontraremos esses sentimentos então? Isso mostra que, ao contrário do que essas pessoas pensam, a razão não exclui sentimentos morais (aliás, a conclusão racional mostra que alguns sentimentos, como o da empatia, devem ser fomentados), o que ela exclui é a escravidão a sentimentos que impedem as pessoas de se livrarem de seus preconceitos (as impede de raciocinar bem). Por fim, essa tática é um truque de retórica dos mais nojentos porque seus proponentes o utilizam apenas quando percebem que seus argumentos são ruins. Isso mostra que nem seus proponentes acreditam no que estão a afirmar. Se acreditassem, começariam já por essa questão, e não, tentar argumentar em outra.

#208 - A piada do caçador

Carlos Nigro termina sua postagem em seu site, com uma piada (que está localizada em seu blog abaixo dos comentários), que é a seguinte: “Era uma vez um czar naturalista que caçava homens; quando lhe disseram que também se caçam borboletas e andorinhas, ficou muito espantado e achou uma barbaridade”. Como já analisamos anteriormente, já que Nigro pensa que retrata o pensamento dos defensores dos animais, isso prova que seu pensamento está envolto numa confusão gigante em pensar que o anti-especismo se assemelha em alguma coisa ao ambientalismo defendido por, por exemplo, a ecologia profunda. Se Nigro realmente comete essa confusão por ignorância dos fundamentos opostos das posições anti-especistas e ambientalistas ou se é uma tática de retórica para retratar os defensores dos animais como pessoas anti-humanos só ele pode saber (acredito, pessoalmente, que o autor tenha boa motivação e só tenha se confundido quanto aos fundamentos dessas posições). Tomo a liberdade aqui de fazer uma versão da piada, cujo protagonista é um especista (que infelizmente, são a maioria dos humanos): “existia alguém que já aceitava que considerar alguém não digno de respeito com base na cor da pele ou a cor dos olhos desse alguém era coisa de imbecis. Ele já percebia que a cor da pele ou dos olhos não influenciava naquilo que era relevante para saber se alguém deveria ser respeitado: a possibilidade desse alguém ser prejudicado por inflição de sofrimento ou pela perda do desfrute. Quando lhe contaram que considerar alguém não digno de respeito com base na espécie biológica ou na posse da razão desse alguém era uma coisa igualmente imbecil (já que também não influencia naquilo que é relevante), ele ficou espantado e achou uma barbaridade”.
Espero, sinceramente, que o Dr. Carlos Nigro, como pessoa racional e defensor do princípio ético da igualdade que se mostrou, reconheça que aquilo que explica o que torna os humanos dignos de igual consideração (a capacidade de sofrer e desfrutar) explica, ao mesmo tempo, por que todo e qualquer ser com a capacidade de sofrer e desfrutar, independentemente de espécie biológica, é digno de igual consideração moral. E, que seja muito bem-vindo como novo defensor da igual consideração para todos os seres sencientes.

Notas:


[13] Tenho aqui em mente as visões de CALLICOTT, J. Baird, “Animal Liberation and Environmental Ethics: Back Together Again”, en Eugene C. Hargrove (ed.), The Animal Rights/Environmental Ethics Debate: The Environmental Perspective (Albany: State University of New York Press, 1992), pp. 249-261; CALLICOTT, J. B. 1989. In defense of the land ethic: Essays in environmental philosophy. Albany: State University of New York; Hargrove, E. 1992. Foundations of wildlife protection attitudes. In: The Animal Rights/Environmental Ethics Debate: The Environmental Perspective, 151–183, ed. E. C. Hargrove, Albany: State University of New York.; LEOPOLD, A., A Sand County Almanac, New York: Oxford University Press, 1987; LINKOLA, P., Can life prevail?: A radical approach to the environmental crisis. London: Integral Tradition Publishing, 2009; NÆSS, A. 2005. The selected works of Arne Næss. Deep ecology of wisdom, vol. X.Dordrecht: Springer. NORTON, B. G. 1987. Why preserve natural variety? Princeton: Princeton University Press.


 [14] Linkola, P., Can life prevail?: A radical approach to the environmental crisis. London: Integral Tradition Publishing, 2009.

 [15] CALLICOTT, J. B. 1989. In defense of the land ethic: Essays in environmental philosophy. Albany: State University of New York.

[16] CUNHA. Luciano C., O Princípio da Beneficência e os Animais Não Humanos: Uma Discussão Sobre o Problema da Predação e Outros Danos Naturais. In: Agora: Papeles de Filosofia, Vol. 30, N. 2, 2001. ISSN 0211-6642; CUNHA, Luciano C., Sobre Danos Naturais. In: Ética mas Allá de la Espécie: La Consideración Moral de los Animales no Humanos, 2011. http://masalladelaespecie.files.wordpress.com/2011/01/luciano-carlos-cunha-sobre-danos-naturais.pdf

[17] CALLICOTT, J. Baird, “Animal Liberation and Environmental Ethics: Back Together Again”, en Eugene C. Hargrove (ed.), The Animal Rights/Environmental Ethics Debate: The Environmental Perspective (Albany: State University of New York Press, 1992), pp. 249-261.

[18] TAYLOR, P., Respect for nature, Princeton: Princeton University Press, 1986.

[19] VARNER, G. 2002. Biocentric individualism. In Environmental ethics: What really matters, what really works, 108–120, ed. D. Schmidtz and E. Willot. Oxford: Oxford University Press.

[20] CUNHA. Luciano C., O Princípio da Beneficência e os Animais Não Humanos: Uma Discussão Sobre o Problema da Predação e Outros Danos Naturais. In: Agora: Papeles de Filosofia, Vol. 30, N. 2



Parte 9 – Argumentos de ladeira escorregadia


Parte 9 – Argumentos de ladeira escorregadia

#169 – Exemplo de argumento de ladeira escorregadia

O Dr. Carlos Nigro escreve:

“As expressões usadas ‘animais-humanos’ para diferenciar dos ‘animais-suínos’, ‘animais-peixes’, tem a intenção óbvia de deixar todas as espécies do Reino Animal num mesmo bloco indiferenciado. Disso decorre, logicamente, que uma criança vale tanto quanto um bezerro, um porco ou um hamster. Esta manobra para igualar seres-humanos aos animais já foi utilizada com muito sucesso pelos nazistas em relação aos ‘ratos’ judeus, por Stalin (com os ciganos e judeus) e, atualmente, em genocídios africanos. É muito mais fácil matar e domesticar outros seres-humanos se vermos neles simples animais sem autoconsciência do que se concebermos cada pessoa como alguém muito especial e único). Os regimes comunistas investem e encaram os cidadãos desta forma. Os favoráveis ao aborto e ao infanticídio, à pena de morte e à eutanásia também. O Homem animalizado escravizado pela inteligetsia”.

#170 - Argumentos de ladeiras escorregadia não provam que o que está em questão é errado ou ruim (pelo contrário, tem de assumir que não é)

O argumento de Nigro exposto acima é um exemplo do que chamamos de argumento de ladeira escorregadia. Argumentos desse tipo basicamente dizem o seguinte: não se deve dar um primeiro passo em uma coisa que, a princípio, parece ser algo bom, pois pode escorregar para algo terrível e não ter mais volta. Então, a primeira coisa que precisa ficar clara com relação a argumentos de ladeira escorregadia é que eles não oferecem razão alguma para demonstrar que a coisa em questão (no caso, tratar todos os seres sencientes com igual consideração) é algo ruim. Pelo contrário, argumentos apelam para um suposto perigo para se escorregar para uma coisa ruim (o genocídio, por exemplo), justamente porque não conseguiram provar que a coisa em questão (no caso, a igual consideração de todos os seres sencientes) é ruim ou errada. Isso porque, se tivessem conseguido apontar algo de errado com a igual consideração não especista mesma, então não precisariam apelar para o perigo de se escorregar para algo ruim. Assim sendo, os proponentes de argumentos de ladeira escorregadia, se essa é a única objeção que eles têm à prática que estão a discutir, têm de admitir que, então, se ele não é moralmente boa, no mínimo é moralmente neutra (nunca, moralmente ruim).

#171 - A proposta é melhorar as condições dos animais não humanos, e não, piorar as condições dos humanos

O erro principal com o argumento de ladeira escorregadia empregue por Nigro, contudo, é outro. O erro torna a situação até engraçada (para não dizer ridícula), porque ele atribui aos defensores dos animais não humanos uma proposta que é contrária à proposta real. A proposta dos defensores dos animais não humanos, quando defendem que devemos dar igual consideração a todos os seres sencientes, independentemente de espécie, é a de que tratemos os animais não humanos sencientes tão bem quanto um ser humano deveria ser tratado; e não, que se passe a tratar os seres humanos como se trata os animais não humanos hoje (assassinando-os em massa a cada minuto, queimando-lhes vivos, arrancando seus membros, etc.). A situação desse argumento é risível. Não acredito que seja possível (nem que a pessoa tenha muita dificuldade em raciocinar) alguém entender que a proposta dos defensores dos animais seja diminuir a consideração pelos humanos a ponto de tratá-los como são tratados os animais não humanos hoje. Qualquer criança entende que a proposta dos defensores dos animais é melhorar a consideração pelos animais, e não, piorar a consideração pelos humanos.

#172 – Todos igualmente numa situação ruim?

A confusão presente no argumento de Nigro pode ser explicada a partir de diversos motivos. O primeiro motivo é que talvez ele pense que o princípio da igual consideração prescreva apenas igualar os níveis de bem-estar dos indivíduos, não importando em que nível de bem-estar estes, no final das contas, irão se encontrar (assume o princípio igualitarista como sendo a única coisa moralmente relvante). É por esse motivo que não existe nenhum filósofo igualitarista que defenda que o princípio da igual consideração é a única coisa relevante para saber o que deve-se fazer. Qualquer igualitarista costuma combinar o princípio igualitarista ou com o do prioritarismo (a prioridade deve ser melhor a situação de quem está na pior situação), ou com o do utilitarismo (devemos maximizar a quantidade agregada de felicidade), ou com o princípio do suficientialismo (devemos estabelecer uma linha acima da qual pode-se dizer que alguém está bem, e abaixo, que está mal; quanto mais abaixo da linha alguém está, maior deve ser a prioridade em aumentar o bem-estar; quanto mais acima, mais justificável se torna retirar algo desse alguém para melhorar a situação de quem está pior), ou, com todos ou alguns desses princípios em conjunto. Novamente, não acredito que Nigro tenha feito realmente essa confusão. O que dá a entender é que ele quer, como tática de retórica, atribuir aos defensores dos animais uma visão que nenhum de nós defende. Só um muito mal entendedor do princípio da igualdade poderia pensar que os defensores da igualdade querem que todos estejam igualmente na pior situação.

#173 – A igual consideração é o oposto dos preconceitos, pois estes dependem de atribuir valor diferenciado aos indivíduos

Segundo entendo o princípio da igual consideração e a rejeição do especismo, sim, é verdade que daí “decorre, logicamente, que uma criança vale tanto quanto um bezerro, um porco ou um hamster”. Isso é verdade, mas o que Nigro esquece de mencionar é que decorre logicamente da aceitação do princípio da igualdade, juntamente com a aceitação de que a felicidade tem valor intrínseco positivo, que todos esses  merecem ter o máximo de felicidade possível (distribuída de maneira eqüitativa). Então, em nenhum sentido a igualação (em termos de merecer igual consideração) que os defensores dos animais fazem de humanos e não humanos lembra a manobra dos nazistas, de igualar judeus a ratos. Isso porque, diferentemente dos defensores dos animais (e, semelhantemente à visão de Nigro), os nazistas também viam a vida dos animais não humanos como valendo muito pouco. Então, quando os nazistas igualavam judeus a ratos, estavam querendo dizer que ambos os tipos de seres não valiam nada. Quando os defensores dos animais igualam todos os seres sencientes, o que querem dizer é que todos valem “o valor máximo”. Obviamente que Nigro entendeu esse ponto. Propostas morais tão distintas e antagônicas como estas (a defesa de que ninguém vale mais do que ninguém, e a defesa de que judeus e ratos valem bem menos do que os nazistas) não podem escorregar uma para outra. É exatamente por essa diferença fundamental que a igual consideração é exatamente o contrário de visões como o nazismo e o especismo: a igual consideração diz que ninguém vale mais do que ninguém (então, que ninguém tem o direito de escravizar, chacinar, ninguém); já visões como o nazismo e o especismo dependem de haver uma quantificação do valor dos indivíduos, e que uns sejam vistos com um valor tão baixo, comparativamente a outros, que torna justificável utilizá-los como se fossem meros recursos para os que valem mais. É por esse motivo que não faz sentido afirmar que a igual consideração implicaria em que todos valessem muito pouco. Isso porque, como todos valem exatamente em igual medida, não têm sentido quantificar o valor desses indivíduos (não confundir com quantificar a qualidade da vida que vivem, como veremos mais adiante, em #175 até #179). O argumento de Nigro seria como dizer que não devemos dar direitos às mulheres porque isso pode rebaixar o status dos homens; ou de que não deveríamos dar direitos a negros porque isso pode rebaixar o status dos brancos. O que dá a entender é que Nigro se apega tanto ao especismo que pensa que só o fato de se dar direitos aos animais não humanos já é rebaixar o status dele; mesmo que ele não tenha nada a perder com isso (a não ser o tipo de dieta que provavelmente mantém agora).

#174 – Por que a autoconsciência não é moralmente relevante para o erro em assassinar e para a consideração moral

Outro erro presente no argumento de Nigro lembra o erro principal de argumentos anterior do mesmo autor, de pensar que o critério da posse da razão é moralmente relevante para se estabelecer quem merece igual consideração. Como já explicamos detalhadamente antes (#3 até #22), isso é confundir o critério relevante para saber quem deve ser responsabilizado pelo que escolhe (a posse da razão) com o critério relevante para saber quem merece consideração (a capacidade de sofrer e desfrutar). Dessa vez, Nigro parece dar a entender que o critério relevante para saber se alguém merece igual consideração é a capacidade para a autoconsciência. Nigro escreve: “é muito mais fácil matar e domesticar outros seres-humanos se vermos neles simples animais sem autoconsciência do que se concebermos cada pessoa como alguém muito especial e único”. Em primeiro lugar, é preciso clarear o que comumente se entende por autoconsciência. Diz-se que um indivíduo é autoconsciente quando esse indivíduo não apenas têm consciência das coisas, do mundo ao seu redor, mas também consegue entender que ele está no mundo (então, ele tem consciência não apenas de outros seres ou objetos, mas também de si) – em outras palavras, ele percebe que ele também é alguém. Definindo autoconsciência dessa forma, fica claro por que ele não é um critério moralmente relevante para saber quem merece igual consideração: é possível alguém ser prejudicado de muitas maneiras, mesmo que não tenha esse tipo de desenvolvimento mental. O que é relevante moralmente para saber se alguém sofre ou não uma perda ao ser morto não é que o paciente da decisão tenha consciência de si, mas que tenha consciência de algo que dê significado à sua vida (sensações de prazer, por exemplo). O peixe, quando é fisgado e içado, sofre uma dor extrema. Não é preciso ter autoconsciência (veja: não estou a afirmar que o peixe não tem autoconsciência; apenas que se ele tem ou não é moralmente irrelevante). O bebê humano, quando assassinado aos poucos dias de idade, sofre uma perda (a perda do desfrute futuro), e a existência dessa perda não depende da autoconsciência (o mesmo vale para o caso do peixe, por exemplo). Então, está claro que é um critério moralmente irrelevante. E, outro detalhe: mesmo se esse critério fosse relevante, não serviria para defender que todos os humanos possuem status moral superior ao dos animais não humanos. Isso porque muitos humanos (os portadores de determinadas doenças mentais) não possuem autoconsciência. Então, são pessoas como Nigro (e também os nazistas a quem Nigro se refere) que vêem os animais não humanos como “simples animais sem autoconsciência”. Anti-especistas, diferentemente de Nigro, vêem cada indivíduo senciente (independentemente de espécie, raça, gênero, posse ou não da razão ou da autoconsciência ou outras considerações moralmente irelevantes) como “alguém muito especial e único”. Então, é absurdo como é que alguém poderia pensar que enxergar as coisas dessa maneira poderia descambar para o nazismo.

#175 – A analogia do nazismo com eutanásia, aborto, infanticídio e pena de morte também é falsa

Nigro também constrói outras falsas analogias. Ele mantém que a motivação dos nazistas (igualar judeus a ratos, no sentido de alegar que ambos valem quase nada) é a mesma não apenas dos defensores dos animais não humanos, mas também dos “favoráveis ao aborto e ao infanticídio, à pena de morte e à eutanásia também”. Como já vimos anteriormente, essa analogia com relação aos defensores dos animais é certamente falsa. A proposta dos defensores dos animais é igualar, em termos de status moral, todos os seres sencientes, independentemente de espécie, mas no sentido de que o bem de cada um deve ser maximizado (e não, minimizado) de maneira imparcial. Como vimos anteriormente (#172, #173) atribuir valor igual a todos nunca poderia justificar práticas como o nazismo, racismo e especismo, pois são práticas que dependem essencialmente da crença de que uns possuem valor maior (e, muito maior, a ponto das vítimas serem vistas como meros recursos) do que outros. Também é falsa a analogia que Nigro monta, do nazismo com as várias outras várias questões morais que menciona. Para se reconhecer que a analogia é falsa, não se precisa concordar com o ponto de vista de que eutanásia, aborto, infanticídio e pena de morte às vezes se justificam. Então, deixemos de lado, por um breve momento, a discussão sobre a moralidade dessas questões (cada questão dessa precisa ser discutida a parte uma das outras) e entendamos por que a analogia com o nazismo é falsa. A diferença crucial entre o nazismo e a defesa dessas posições morais é que os nazistas se baseavam num critério que não cumpria a exigência de imparcialidade. Os nazistas traçavam uma linha onde os que estavam acima dela (os arianos) jamais poderiam estar embaixo; e os que estavam embaixo, jamais poderiam estar em cima (os membros de outras raças). Os nazistas não aprovariam o modo como tratavam os judeus, se tal modo de tratamento fosse direcionado a eles. E, como vimos, a característica eleita pelos nazistas para explicar o que diferenciava o caso deles e dos judeus (a raça) é moralmente irrelevante, pelos motivos que já detalhamos antes (#158 até #168).

#176 – Por que a analogia entre nazismo e eutanásia é falsa

Vejamos a analogia com cada questão moral separadamente. Comecemos pela eutanásia. Considere esse  caso: alguém não têm mais chances alguma de recuperação de uma doença terminal e está sofrendo de maneira extrema, sem mais nenhum momento de prazer, e de qualquer maneira morrerá logo. Se alguém defende, por exemplo, que a melhor maneira de demonstrar respeito pelas preferências de tal pessoa (a menos que ela expresse que quer continuar viva, o que é raríssimo nesse tipo de situação) é abreviar o seu sofrimento (ou seja, eutanasiá-lo) não defende isso porque considera aquela pessoa inferior e que o seu bem não vale nada. Pelo contrário, defende isso porque realmente se importa com o sofrimento que passa aquela pessoa. E, se o sofrimento de alguém é visto como importante, é por que se considera o valor desse indivíduo. E mais: tal critério cumpre o requisito de imparcialidade. Alguém pode sinceramente afirmar: “esse é o modo correto de respeitar os interesses de alguém, e eu aprovo e exijo tal modo de tratamento, inclusive se acontecer de eu ficar nesse tipo de situação”. É importante não se esquecer desse ponto principal: os casos onde a eutanásia se justifica moralmente extraem sua justificativa moral das considerações pelos interesses do paciente, não do agente. É devido à preocupação e respeito pelo bem-estar e preferências do paciente que se defende que, em determinadas situações, a eutanásia se justifica. Não é objetivo do presente artigo estabelecer em que condições se fazem presentes essas justificações. Para os interessados, uma análise mais minuciosa pode ser encontrada em outros autores [10] . Contudo, alguns pontos relevantes básicos são esses: (1) Não há chance de recuperação; (2) O paciente morrerá logo; (3) O sofrimento é extremo e não há como aliviá-lo; (4) Tudo o que havia de disponível para curar o paciente já foi tentado e se mostrou ineficaz. Fora esses pontos relevantes, é preciso distinguir: (1) os casos onde o paciente possui condições de expressar sua preferência (caso em que essa deve ser respeitada); (2) os casos onde o paciente não possui mais preferências por estar inconsciente e não tê-las deixadas expressas, e ; (3) os casos onde o paciente não possui entendimento da sua situação (bebês, por exemplo). Uma das coisas que dificulta a análise moral séria dessa questão é que as pessoas tendem a chamar de eutanásia algo totalmente distinto do significado original (significado este que permeia todo o debate filosófico sobre esse tema). Eutanásia quer dizer “morte boa”, ou seja, aquela condição onde, comparada com a vida que está por vir e da qual não se pode escapar a não ser morrendo, a morte é um bem (pois a vida que está por vir é muito pior do que a morte, e não representa mais um bem, e sim, um grande mal). Isso é muito diferente de matar alguém que possui interesse em viver e que sua vida é algo de bom. Matar alguém que deseja continuar vivendo é assassinato, não eutanásia. A analogia da eutanásia com o nazismo é antiga, mas só existe devido a essa confusão básica. Para que a confusão não se repita: o assassinato visa favorecer os interesses do agente; a eutanásia visa favorecer os interesses do paciente. Os nazistas podem ter utilizado o nome eutanásia para se referir às suas políticas de assassinato, com o objetivo de manipular seus interlocutores. Cair nessa manipulação, como fez Nigro, impede alguém de pensar de maneira séria na questão ética da eutanásia.  Nos casos onde a eutanásia se justifica, é o ponto de vista contrário a eutanasiar que pode ser legitimamente acusado de favorecer os interesses do agente, e desconsiderar totalmente os interesses do paciente. Pelo menos quanto a esse ponto, os que são contrários à eutanasiar nos tipos de caso que listei têm algo em comum com a motivação nazista: a meta é favorecer os interesses do agente (em não ter que matar um parente), ou o respeito por algum ideal abstrato (“a vida humana é sagrada” por exemplo), mas nunca favorecer os interesses e mostrar respeito pelo paciente, que deseja morrer e a vida já não lhe representa mais nada de bom. Assim, os contrários à eutanásia nos casos onde ela se justifica estão sendo sinceros (mas, nem por isso, moralmente corretos) se alegarem que estão preocupados com algum ideal abstrato que nada tem a ver com o bem dos outros, ou que estão preocupados consigo próprios apenas; mas, não estão sendo sinceros se alegam que estão a respeitar o paciente. Para quem ainda não se deu conta da realidade, são as pessoas contrárias à eutanásia que obrigam os portadores de determinadas doenças a viverem vários meses não tendo outra coisa senão sofrimento extremo e tendo que passar por inúmeras cirurgias das quais já se sabe que não adiantarão de nada. São os contrários à eutanásia que obrigam, por exemplo, alguém a continuar vivo, mesmo que esteja com o corpo todo aberto, sem os membros e não tendo outra sensação a não ser dores horríveis, mesmo sabendo que morrerá logo de qualquer forma. Tanto sofrimento inútil, que poderia ser facilmente evitado. Aquelas pessoas que são contrárias a tirar uma vida, seja lá em que condições se encontre essa vida, e sejam lá quais forem as preferências por morrer ou continuar vivo do indivíduo que vive tal vida, não defendem o direito à vida. Ao invés, defendem um dever de viver em condições onde a vida não representa mais nada de bom, mas sim, um verdadeiro inferno.

#177 – O erro com regras absolutas sobre determinados tipos de atos: a razão que torna moralmente errado o ato em um caso pode não estar presente em outro caso cuja decisão moralmente correta pode requerer exatamente o mesmo ato – e vice-versa.

Para facilitar a análise da analogia com o infanticídio, aborto e pena de morte, temos de olhar para outra confusão, que é a raiz do pensamento de Nigro: provavelmente, ele acredita que, se uma decisão é errada em algumas situações, então que é sempre errada, em qualquer outra situação (mesmo em situações que não mantenham as mesmas propriedades moralmente relevantes entre si). Por exemplo, provavelmente ele pensa que, já que geralmente é errado matar seres humanos, então que é errado sempre – que não existem exceções a essa regra. Talvez seja isso que o conduza a se opor sempre à eutanásia, seja lá a situação que se encontre o paciente, por exemplo. Talvez ele pense que, caso se justifique matar um ser humano em um caso, então que é sempre correto matar seres humanos, seja lá em quais casos forem.

#178 – Primeiro erro: as razões que justificam um ato em um caso podem não estar presentes em outras (onde o mesmo ato pode ser injustificável ou moralmente opcional) – e vice-versa, para todas essas três categorias (moralmente obrigatório fazer, moralmente obrigatório não fazer, moralmente opcional).

Existem dois erros básicos com relação a esse tipo de visão. O primeiro é não perceber que as condições que tornam justificável matar em um caso (o fato de não haver possibilidade de recuperação, o paciente estar em condições de sofrimento extremas, o sofrimento não ter como ser aliviado, o paciente expressar uma preferência por morrer, etc.) não se fazem presente em outros. Normalmente, as pessoas vivem vidas que, se já não contém satisfação, é possível conter; geralmente elas preferem continuar vivas, e assim por diante. Em casos assim, matar não se justifica.

#179 – O que torna errado matar e o que não torna/ explicação do que é um dano por privação)/o que torna certo ou um dever matar, e o que não torna

O segundo erro surge devido a Nigro não entender quais são as características relevantes para explicar o erro em matar. E isso vêm do seu especismo. Nigro pensa que o que torna errado matar seres humanos é o fato deles serem humanos (o que é um argumento circular, como já vimos, em #23 até #28) ou o fato deles serem racionais (o que é confundir o critério relevante para ser responsabilizado com o critério relevante para ser considerado, como também já vimos em #3 até #28). Nenhuma dessas coisas explica o erro em matar. O erro básico em matar está que a vítima sofre uma perda. A perda de que falo é a perda do desfrute, da satisfação, ou seja, das coisas que fazem sua vida valer a pena. É claro, se a vítima for morta, não sentirá falta dessas coisas. Mas, essas coisas são um dano por privação, não por inflição. A vítima sofrerá uma perda, mesmo que não tenha consciência da perda que sofreu. Isso porque o desfrute é algo bom, e é ele que torna uma vida um bem. Para entender melhor esse ponto, temos de nos imaginar olhando para os resultados finais, de um ponto de vista “de fora”. Se o indivíduo A morrer agora terá desfrutado, ao longo de sua vida, por exemplo, +78 de felicidade. Se morrer daqui a 30 anos, terá desfrutado, ao invés, +149 de felicidade. Tendo em vista essas duas opções, podemos concluir que a segunda é melhor, e que A  perdeu algo valioso por não estar na segunda situação, mesmo que não saiba disso (por estar morto). Defendi que a perda do desfrute é uma condição suficiente para haver erro em matar, mas não necessária. Outra condição suficiente, mas também não necessária, segundo entendo, é a preferência por continuar vivo. Mesmo em casos onde o desfrute no futuro é inexistente ou mínimo, e a pessoa em questão deseja continuar a viver, deve-se respeitar sua preferência por continuar vivo. Isso porque, não respeitar preferências é outra forma de prejudicar alguém. Nessas duas formas (perda do desfrute e violação das preferências) temos um indivíduo identificável de quem se pode dizer que foi prejudicado. Então, é isso que torna matar errado. Reconhecendo esse ponto, temos de reconhecer também que existem, então, casos onde não é errado matar (onde matar talvez seja até mesmo um dever). Uma condição que precisa estar presente é essa: não há possibilidade alguma de desfrute no futuro (ou ,que o desfrute é tão insignificante, comparado aos sofrimentos extremos, que não vale a pena tentá-lo). Nesses casos, a vida deixa de ser um bem, então, não faz mais sentido afirmar que alguém é danado pela perda dela (aliás, por ela se tornar um mal, o indivíduo é danado pela presença dela). Essa condição precisa ser pesada em relação ao respeito pelas preferências: é possível que a pessoa em questão também possua uma preferência por morrer (nesse caso, respeitar suas preferências é matá-la); ou é possível que, apesar de tudo, prefira continuar viva (nesse caso, respeitar suas preferências é mantê-la viva). Note que o critério das preferências não determina, nunca, isoladamente, o erro em matar. Ele sempre precisa ser pesado à luz do critério da qualidade de vida (a relação entre a quantidade de desfrute e a quantidade de sofrimento). Isso porque, é possível que alguém tenha uma preferência irracional por morrer. Por exemplo, alguém pode ter todas as chances de desfrute no futuro, não estar doente, e, por estar abalado com algum acontecimento, preferir morrer. Nesse caso, a preferência por morrer é irracional e continua sendo errado satisfazer essa preferência (ou seja, num caso assim, continua sendo errado matar). Tendo essas considerações em vista, podemos perceber que a idéia de que é sempre errado matar seres humanos só pode vir de uma confusão no que diz respeito ao que torna errado matar. Como vimos, as duas considerações básicas dizem respeito à qualidade de vida e às preferências. É isso que torna errado (nos casos em que é errado) matar seres humanos (e outros seres sencientes também, já que são capazes de desfrute e de preferências). Não é o fato de serem humanos.

#180 – Que situações tornam o infanticídio justificável e que situações tornam injustificável

Tendo entendido esse ponto, podemos agora entender por que é que alguns casos de aborto e infanticídio se justificam. Comecemos pelo infanticídio. Considere esse exemplo (que, infelizmente, não é muito diferente de inúmeros casos reais): uma criança nasce sem estômago, sem rosto e com a espinha para fora do corpo. Sabe-se que ela viverá, no máximo, alguns dias, e não sentirá outra coisa senão um sofrimento extremo. Ser contrário ao infanticídio, num caso assim, é ser egoísta ao extremo. É demonstrar uma total desconsideração pela criança e seus interesses (é pensar que a criança não vale nada). Como foi mencionado no parágrafo acima, talvez Nigro seja contrário a qualquer caso de infanticídio por pensar que, se justificado o infanticídio num tipo de situação, se justificará toda vez que alguém desejar matar crianças. Isso é absurdo. Como vimos, as condições que justificam o infanticídio no tipo de situação que mencionei não estão presentes em outros tipos de casos. Um detalhe importante, que não pode ser perdido de vista, é que a eutanásia e o infanticídio se justificam com relação a considerações de respeito por quem será morto, e não por quem está matando. Levando em conta essa consideração importante, podemos ver que alguns tipos de infanticídio normalmente praticados carecem de justificativa e, portanto, são formas de assassinato. Por exemplo, existem algumas tribos indígenas que, quando acontece o nascimento de gêmeos, adotam a prática de enterrar os dois gêmeos vivos [11]. O motivo é a crença de que, quando nascem gêmeos, um deles é mal e o outro é bom, e não é possível saber qual é qual. Então é praticado o infanticídio (as crianças são enterradas vivas, sufocadas com folhas, envenenadas ou abandonadas para morrer na floresta). Esse é exatamente o tipo de caso onde o infanticídio não se justifica. Para começar, se carece de qualquer justificativa empírica para se afirmar de que esse será realmente o caso (que um deles se tornará mal). Em segundo lugar, somente o raciocínio indutivo na sua forma mais errada possível pode ver alguma relação entre o fato de nascer gêmeos e o caráter dos nascidos. Em terceiro lugar, mesmo que fosse provado empiricamente que, no futuro, algum dos dois será alguém mau, isso não prova a conclusão moral de que, então é certo matar esse alguém, antes que ele tenha feito algo de mal. Se isso fosse feito em nossa sociedade, qualquer um reconheceria a falta de justificativas. A crença relativista muito difundida no meio das ciências sociais, de que a justificação para o certo e errado dependem da cultura (que envolve uma visão extremamente distorcida sobre justificação em ética, como já discuti em outros artigos [12] ) talvez impeça algumas pessoas de perceber o quão irracional e estúpida é esse tipo de justificativa para o infanticídio. Esse é o tipo de caso onde Nigro teria toda razão em dizer que o infanticídio é totalmente errado, pois, para começar é feito com base em considerações (e, baseadas em considerações irracionais) sobre o interesse de quem mata, não de quem morre. Contudo, mais uma vez, é por Nigro não perceber o que torna errado matar (a perda do desfrute e a violação de preferências) que tende a enquadrar, todos sob uma mesma categoria, casos injustificáveis e justificáveis de infanticídio e eutanásia.

#181 – Crítica a regras morais sobre tipos de atos sem exceção e especulação sobre os motivos que levam alguém a adotar tais regras

Devido à falta de prática com o raciocínio ético (que envolve, na maioria das vezes, descobrir o que torna certas ou erradas determinadas decisões) é que as pessoas tendam a ser dicotômicas e econômicas com relação às suas decisões morais: “ou casos desse tipo são sempre errados, ou são sempre certos”. O erro com esse tipo de visão é que o que torna justificáveis ou injustificáveis as decisões não são o tipo de ato que elas são (se é aborto, se é infanticídio, se é matar, se é deixar morrer, etc.), mas algumas propriedades moralmente relevantes que compõem as situações (notadamente, mas não só isso, o impacto que tal decisão terá na satisfação/sofrimento dos atingidos). E, mesmo que os tipos de atos devessem contar como estando entre essas propriedades relevantes, não fará sentido pensá-los como as únicas propriedades relevantes, já que, se um ato é certo ou errado, é por alguma outra razão (e essa razão precisa remeter à outra coisa moralmente relevante, que não o ato mesmo). As pessoas têm, então, necessidade (devido à falta de prática com o raciocínio ético) de pensar que, por exemplo, ou o aborto é sempre errado, ou é sempre certo. Isso é uma falsa dicotomia. A menos que eles tenham um bom argumento para dizer que é sempre um caso ou sempre outro, temos boas razões para analisar, à luz das considerações moralmente relevantes, cada caso separadamente.

#182 – Condições moralmente relevantes para a análise da moralidade do aborto caso-a-caso

O caso do aborto é ligeiramente diferente dos casos de eutanásia e infanticídio, pois envolvem geralmente os interesses de dois indivíduos diretamente atingidos: a mãe e o feto. Para uma discussão séria da moralidade do aborto é preciso também distinguir casos onde o feto é senciente e quando ainda não é. Por exemplo, em estágio embrionário, não há ali nenhum indivíduo, apenas um aglomerado de células; já na última semana da gravidez o feto está tão pronto (capaz de sensações) quanto é quando nasce. Além dessa consideração importante, temos de lembrar que existem casos onde será possível para o feto ter uma vida saudável caso nasça, mas existem casos onde, se o feto chegar a nascer, será uma daquelas condições onde se justifica o infanticídio, de tanto sofrimento extremo não aliviável que ele passará. Temos de levar em conta também as situações onde a mãe corre risco de vida ou outro risco grave. E temos de levar em conta também casos onde não é possível salvar os dois, e casos onde a única opção é salvar a mãe, e a única maneira de fazer isso é matar o feto. Todas essas considerações tornam a questão da justificativa ou não do aborto muito mais dependente de uma análise caso-a-caso, pois cada caso poderá envolver uma característica moralmente relevante que não estará presente em outro. Mais uma vez: veja que nenhuma dessas considerações tem algo que se assemelhe, nem de longe, com a idéia nazista de que alguns indivíduos são inferiores. Uma justificativa ética precisa considerar os interesses de todos os atingidos de maneira imparcial.

#183 – A questão da pena de morte

O último caso, da pena de morte, é totalmente diferente de todos os outros. Isso porque o que está em jogo, na discussão sobre a moralidade desses casos, é a questão da justiça retributiva e do merecimento. Está em jogo, por exemplo, saber se a questão do merecimento chega a tal ponto, em termos de relevância moral, onde se pode dizer que, devido a um ato passado, alguém não merece mais viver. Está em jogo discutir também se, caso existirem situações onde se justifica moralmente matar alguém por motivos de merecimento, então se isso automaticamente justificaria legalizar uma prática desse tipo (poderiam haver outros motivos que tornassem injustificável a prática da pena de morte – por exemplo, o risco de se condenar inocentes – mesmo se houver justificativa para matar alguém centrada no merecimento. Note que não estou dizendo que existem essas justificativas, nem que não existem. Eu, sinceramente, não tenho uma posição definida com relação a esse assunto, justamente por me faltarem leituras de obras importantes sobre o mesmo. Contudo, já que o objetivo aqui é responder a crítica de Nigro, e não, discutir a moralidade da pena de morte, vou me limitar a apontar que a analogia também nesse caso é falsa. Isso porque, diferentemente das políticas de assassinato nazistas, alguém que defende a pena de morte se baseia numa característica que é geral (ou seja, não está em um indivíduo específico). Segundo o defensor da pena de morte, alguém merece morrer devido a algo que fez, e não devido a pertencer a uma determinada raça. A diferença toda reside no fato de que judeus não podem deixar de ser judeus, e não colocam a vida dos outros em risco por serem judeus; alguém que fez um crime poderia tê-lo deixado de fazer, e acabou com as vidas de outros devido a isso. Um defensor da pena de morte poderia estar errado moralmente ao defender tal prática, mas não poderia ser acusado, como poderia ser acusado um nazista. de favorecer tendenciosamente alguns indivíduos em detrimento de outros. Ele poderia dizer, por exemplo: “qualquer um (inclusive eu) que fizer isso, deveria ser morto”. Se o que alguém fez no passado é relevante para saber como devemos tratá-lo no futuro, a reivindicação do defensor da pena de morte tem alguma plausibilidade (ainda que, no final, se revele moralmente errada, devido a outras razões). Isso é diferente da reivindicação nazista de que a raça é um critério moralmente relevante, que é implausível moralmente desde o início, pelos motivos que já vimos anteriormente (#3 até #28 e #158 até #168).

#184 – Conclusão sobre os argumentos de ladeira escorregadia endereçados por Nigro

Devido ao fato de todas as analogias entre o nazismo e as questões morais listadas por Nigro serem falsas é que temos, então, boas razões para pensar que o temor da ladeira escorregadia possui bases muito fracas. Uma coisa, muito raramente (se é que alguma vez) escorregaria para outra.

Notas:


[10] Ver, por exemplo, RACHELS, James. The End of Life: Euthanasia and Morality. Oxford University Press, 1987; RACHELS, J., Can Ethics Provide Answers? And Other Essays in Moral Philosophy, Boston: Rowan & Littlefield, 1997; BEAUCHAMP, T.L. e CHILDRESS, J.F., Princípios de Ética Biomédica, 4 ed, São Paulo: Edições Loyola, 2002; SINGER, Peter. Ética Prática. 3 ed. Trad. Jefferson L. Camargo. São Paulo. Martins Fontes, 2002.


[11] Sobre isso, ver o Relatório do Centro de Investigação da UNICEF, em Florença, Madrid, fevereiro de 2004, disponível em http://www.hakani.org/pt/oque_e_infanticidio.asp e também a reportagem disponível em http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u389427.shtml

[12] Ver, por exemplo,  CUNHA, Luciano C. Sobre a Importância da Razão na Ética. Disponível em http://www.olharanimal.net/luciano-cunha/1420-sobre-a-importancia-da-razao-na-etica