quarta-feira, 18 de agosto de 2010

A discussão liberdade x bem-estar dentro do abolicionismo animal.


Uma contribuição para a discussão sobre o debate liberdade x bem-estar dentro do abolicionismo animal.
O texto abaixo é uma resposta às idéias apresentadas por meu colega Bruno Müller no artigo “Liberdade e Bem-estar numa Ética de Direitos”, disponível em        http://www.anda.jor.br/?p=67357, por quem tenho uma grande admiração pelo trabalho e principalmente pela reivindicação do abolicionismo animal e da objetividade em ética. Abaixo, contudo, estão minhas razões do porque discordo em geral da proposta do meu colega Bruno, de se colocar a liberdade corporal como principal meta da ética:
(1) Sobre a felicidade como fundamento da ética
O texto menciona que a felicidade não pode ser considerado fundamento da ética, e oferece algumas razões para isso. O que pretendo apontar é que no próprio texto a liberdade e os direitos são fundamentados na felicidade (entendida aqui no sentido amplo, de evitar malefícios e fomentar benefícios). Não digo que fundamentar essas categorias na felicidade é uma falha, pelo contrário, aponto esse problema no texto para mostrar como é difícil defender essas categorias de modo independente, como o autor quer:
(a) Segundo entendo a crítica do texto sobre fundar a ética na felicidade, a mesma é dirigida  ao utilitarismo, que é a teoria ética conhecida por afirmar tal fundamento. Se é o utilitarismo que o texto tem em mente, então precisa levar em conta a felicidade definida pelo utilitarismo. Quanto ao tipo de bem a ser buscado, temos dois tipos principais de utilitarismo, o hedonista e o preferencial:
No hedonista (tal como proposto no texto clássico de Bentham e re-proposto atualmente por David Pearce), promover a felicidade e impedir o sofrimento é a meta. Mas, segundo muitas interpretações[1], “sofrimento”, nesse sentido, pode ser definido num sentido amplo, para abarcar qualquer dano (mesmo que inconsciente). Isso é assim porque um dano, mesmo que inconsciente, impede o desfrute do prazer que seria possível caso tal dano não existisse. Ao contrário do que se pensa, não é verdade que o utilitarismo hedonista não teria objeção direta alguma a "matar com anestesia alguém que quer viver", pois matar, mesmo sem dor, impede o desfrute no futuro para o ser que morre.
Falo isso pelo seguinte: o texto menciona que direitos "significa que os indivíduos animais possuem interesses fundamentais – a vida, a integridade, a liberdade – que, se violados, causam um dano grave ou irreparável" e também que "...tomar-lhe a liberdade, por sua vez, implica tornar o animal vulnerável.". Assim, essas sentenças fundam a liberdade na felicidade (entendida aqui no sentido amplo, incluindo prevenir danos), pois é afirmado que ela é importante na medida em que, caso não seja garantida, enormes danos podem surgir. Da mesma maneira, poderíamos perguntar: "por que ficar vulnerável é ruim?". Ora, porque daí podem surgir danos e o desfrute ser impedido. Essa é uma justificação eticamente valida, e é uma justificação utilitarista (pois foca nas consequências ruins de se impedir a liberdade). Portanto, é falso que a felicidade não pode ser considerada fundamento da ética.
Já no utilitarismo preferencial (tal como proposto por Singer e Hare), o que se visa maximizar é aquilo que os atingidos pela decisão preferem, independentemente de isso os deixar felizes ou não. Por que surge essa forma de utilitarismo? Justamente por aquilo que o texto aponta, da dificuldade em saber o que vai deixar cada um dos indivíduos felizes. Então, a crítica do texto não se aplica ao utiltarismo preferencial. Contudo, o utilitarismo preferencial é, por vezes, criticado por utilitaristas hedonistas, no sentido de não ser realmente um "utilitarismo" - justamente por maximizar preferências poder conduzir ao contrário de maximizar a felicidade (por exemplo, alguém que prefere algo que é ruim para si a longo prazo e não sabe, como fumar). Então, deixar os indivíduos livres para buscarem o seu próprio bem é também problemático, porque sabemos que muitos indivíduos farão coisas (muitas vezes por não saber) que serão contrárias ao seu próprio bem. Isso é extremamente relevante no caso dos animais não-humanos. E isso o texto não aborda.
(b) Em meu entender, não é tão fácil dizer que a felicidade não pode ser fundamento da ética. Simplesmente porque, retirando a felicidade (de agora em diante, usada no sentido amplo que mencionei), teríamos muita dificuldade em explicar por que certas coisas são erradas. Tome como exemplo o que o texto menciona sobre o direito à vida: "os animais têm interesse na continuidade da própria vida, protegem-na, lutam por ela". E, se agora perguntarmos, por que os indivíduos sencientes têm interesse em viver? A explicação do utilitarismo hedonista, no meu entender, é a mais simples e também a melhor. Seres sencientes têm interesse em viver porque a vida lhes proporciona desfrute (e somente quando lhes proporciona algum desfrute). Isso fica nítido nos casos de pessoas em extremo sofrimento que suplicam por meses, reivindicando a eutanásia. Alguém pode objetar aqui: e quanto às pessoas que têm pela frente uma vida terrível e ainda assim preferem viver? Eu responderia que algum desfrute (nem que seja a satisfação de lutar contra os problemas) está presente. Sempre que há um sentido para viver há satisfação junto, nem que seja na esperança de ver aquilo que dá sentido, se realizar. Mas, veja, estou afirmando aqui que a explicação mais razoável para um direito à vida de um ser senciente é a felicidade (desfrute), ou, talvez, a satisfação das preferências. Do contrário, teríamos de forçar aqueles que suplicam por eutanásia a continuarem a viver - que é justamente a posição de alguns "deônticos puros" religiosos.
No próprio texto podemos citar outros exemplos: "Todo animal capaz de empregar sua consciência para obter esse sustento e proteção possui autonomia prática e, como tal, tem interesse na própria liberdade". Aqui o texto corretamente aponta que o interesse na liberdade está fundado no interesse em sustento, mas, se seguirmos adiante, e perguntarmos por que um animal tem interesse em sustentar sua própria vida, veremos que é porque, caso não faça isso, irá sofrer, e, caso faça, terá desfrute. Mais uma vez, temos um fundamento de valor utilitarista. Em meu ver, isso não é problema algum. Pelo contrário, problemas teóricos surgem quando dizemos que a liberdade ou autonomia são valores auto-evidentes, até mesmo quando seu fomento causará os sofrimentos mais extremos possíveis.
Eu meu entender, teorias de direitos como a de Francione tem muito mais em comum com o utilitarismo do que o próprio autor admite. Um exemplo claro é o de fundar a comunidade moral nos seres sencientes, e ainda mais usando a categoria “interesses”. Por que nos seres sencientes? Justamente por serem os únicos seres capazes de desfrute. Mas, veja, esse critério é exatamente o proposto pelo utilitarismo. O texto em questão também adota esse critério, quando comenta sobre a vida vegetal: "A própria perda da vida não é fonte de sofrimento, uma vez que o vegetal não é senciente". Assim, o texto mesmo afirma que a vida só tem valor pelas experiências da senciência que ela proporciona. Portanto, o próprio texto que visa criticar o utilitarismo também adota o critério utilitarista de valor – ainda que não adote o cálculo utilitarista. Adotar esse critério de valor é um problema? Em meu entender, não. Sempre pensei que, embora muitas versões do utilitarismo apresentem problemas, isso não impede da teoria ser aperfeiçoada (como vem sendo feito há séculos), e que jamais deveríamos jogá-la fora. Se a jogássemos totalmente fora teríamos de dizer, por exemplo, que chutar um cachorro é errado por alguma razão misteriosa, já que não poderíamos mais dizer que isso se deve ao impedimento da felicidade dele e ao seu sofrimento, danos, etc - nada que remetesse às consequências para o cão. Assim, algumas teorias de direitos, principalmente aquelas fundadas em interesses, tem muito em comum com o utilitarismo, com a diferença que alguns interesses recebem uma proteção especial[2].
(c) O próximo problema é de lógica. O texto aponta que "...a ética depende de princípios objetivos e universalizáveis [...] e nada mais distante disso do que a felicidade, um atributo absolutamente subjetivo. Podemos ter tudo de que precisamos, e ainda sermos infelizes. Ou, ao contrário, sermos felizes a despeito de todas as adversidades. Ou, pior ainda, podemos deliberadamente ignorar ou violar as normas éticas para viabilizar nossa felicidade". Há pelo menos três erros graves aqui, e eu gostaria de endereçar cada um deles separadamente:
(c.1) O texto aponta corretamente que a ética defende da universalização. Mas, é importante lembrar, isso é uma exigência formal, para validar os possíveis conteúdos. Ou seja, qualquer conteúdo proposto tem que ser possível de ser universalizado. Supondo que o conteúdo proposto seja a felicidade. Seria universalizado da seguinte maneira: a felicidade eticamente desejável é aquela que é compatível com a felicidade de todos - pois são as formas de felicidade que podem ser desejadas sem fazer referências a indivíduos específicos. É esse o sentido de universalização na parte formal da ética (poder desejar algo sem fazer referência a indivíduos específicos) e não a idéia de que não vão existir variações em cada indivíduo quanto ao que melhor ajudará nesse ideal. Se fosse assim como o texto aponta, nem a liberdade poderia entrar como conteúdo, já que aquilo que garante a liberdade de um ser humano que anda com as próprias pernas não garante a de um cadeirante, por exemplo.
(c.2) O exemplo que o texto dá não mostra que a felicidade não pode ser fundamento da ética. Mostra apenas que, em determinados casos, é difícil saber o que deixará alguém feliz. Gostaria de lembrar sobre casos bem fáceis de se saber o que contribuirá para o bem-estar de alguém. Por exemplo, ninguém quer ter as pernas decepadas, nem o maior dos masoquistas. Ninguém escolheria continuar com um transtorno bipolar, síndrome do pânico ou depressão. Essas coisas são ruins porque causam infelicidade, e todo mundo sabe que elas causam infelicidade. Aparecerão casos difíceis de saber o que deixa alguém feliz? Sim - e isso só mostra que na ética aparecem casos difíceis, não que o utilitarismo está errado. Mas isso não invalida a maioria dos casos, que são os casos que sabemos muito bem o que deixará os seres sencientes infelizes. A prova de que há muitos casos que sabemos o que é melhor para os animais está na própria colocação do texto: "o interesse fundamental dos animais à vida, liberdade e integridade [...] se violados, causam um dano irreparável".
(c3) Recordemos que em c1 vimos o sentido da exigência de universalidade (algo poder ser desejado sem fazer referência a indivíduos específicos). Ora, esse sentido garante que não haja aquilo que o texto tanto se preocupa, ou seja, ignorar normas éticas para garantir a felicidade. A felicidade do egoísta não é universalizável, porque ele só a pode desejar quando é ele que está agindo sobre os outros, e não os outros sobre ele. O utilitarismo pode ser acusado de várias coisas, menos de egoísmo – e isso é até admitido pelos maiores críticos do utilitarismo, como Tom Regan[3].
Apenas como exemplo, vamos pegar o cálculo utilitarista clássico, onde “B” é o individuo quem decide, sendo os indivíduos atingidos pela decisão, A, B, C e D. Na alternativa (1), A (prazer +5 e dor – 20, média –15), B  (+30 e –10, média +20), C  (+5 e –20, média –15), D (+5 e –20, média –15). Na alternativa 2, A (prazer +15 e dor – 10, média +5), B (+10 e –15, média –5), C (+20 e –25, média –5), D (+20 e –25, média –5). As consequências para B seriam bem melhores se ele escolhesse 1 (+20, ao invés de –5 de 2), mas a média total da alternativa 1 é –25 e da alternativa, 2 é –10. Portanto, o utilitarismo clássico diria aqui que o correto a fazer é a alternativa 2, mesmo que isso não seja o melhor para quem está decidindo. Podem ser feitas várias críticas ao cálculo clássico, mas não a de que é um cálculo egoísta.
Enfim, o erro do texto está em que primeiro diz que a felicidade não pode ser fundamento da ética porque a ética exige universalização; em seguida, dá um exemplo onde não se universaliza a felicidade (que poderia ser universalizada) e conclui então que a felicidade não pode ser fundamento da ética. Ora, se é para usar exemplos assim, poderíamos dizer o mesmo da liberdade. É possível dizer: "olha, a liberdade não pode ser fundamento da ética porque existem liberdades que são obtidas as custas da liberdade dos outros". Ora, a universalização vai dizer justamente que esse tipo de liberdade não é ético. Mas, se diz da liberdade, diz também da felicidade. Portanto, são duas metas válidas da ética, sim. E, além do mais, como vimos, o texto mesmo funda a liberdade na felicidade, por exemplo, quando diz que "quando violamos seus direitos fundamentais à vida, liberdade e integridade física e psíquica, estamos negando-lhes a autonomia para a busca de seu bem-estar, a busca da felicidade".
(d) O texto menciona que "não há direito quando não há contra quem reclamar o respeito ou a proteção de um direito. Eu não posso exigir de ninguém a minha felicidade, pois ninguém será capaz de me provê-la, nem tem este dever; mas posso exigir a minha liberdade, para dela dispor em busca da minha felicidade". Daí o texto conclui que a felicidade não pode ser fundamento da ética. Essa conclusão não segue das premissas. Tudo que as premissas dizem é que os direitos só fazem sentido quando há contra quem reclamar, mas quem disse que a ética se resume a direitos? Mesmo os defensores de direitos geralmente reconhecem deveres de beneficência, por exemplo, que não se transformam em direitos, mas continuam sendo deveres éticos. O próprio Regan dá o exemplo de que (segundo ele) alguém morrendo de fome não pode exigir "você, me ajude!", e que por isso não há direito à beneficência, apenas dever de beneficência. O próprio Kant divide a Metafísica dos Costumes em Doutrina do Direito e Doutrina da Virtude com base nessa distinção, centrada na diferença de que os deveres de direito devem ser positivados na forma de lei, e os deveres de virtude não. Ou seja, mesmo que não faça sentido existir uma lei (e portanto, o direito moral que daria origem à lei) que obrigue os agentes a garantirem a felicidade dos outros, a felicidade não deixa de ser uma meta válida da ética. A garantia da felicidade, mesmo que não fosse considerada um direito, poderia ser considerada um dever.
E, lembrando novamente, se o que o texto tem em mente é o utilitarismo, então precisa enxergar o conceito de "felicidade" num sentido amplo - envolvendo inclusive (e principalmente) alívio de sofrimentos terríveis. Podemos não saber o que deixa determinadas pessoas felizes, mas em muitos casos o sabemos, principalmente quando o alívio de sofrimentos terríveis está em jogo. Será mesmo que não haveria dever de salvar alguém de um incêndio apenas por que a vítima não pode apontar: "ei, é você que deve me salvar!"?
(e) Segundo o texto menciona, a "maior limitação da ética utilitarista" é que dá "margem a violações de direitos fundamentais em favor da maximização da felicidade ou bem-estar geral. Isso implica, por exemplo, que seja moralmente aceitável matar um indivíduo, se isso for considerado benéfico para o restante da comunidade".
Aqui o texto tem em mente uma única versão de utilitarismo, dentre as muitas existentes. Por exemplo, um utilitarista de regras poderia aceitar (e, geralmente, eles aceitam) a idéia de direitos fundamentais. Por que aceitam? Porque, no utiltarismo, temos que levar em conta a maximização da utilidade também a longo prazo. Garantir direitos fundamentais é uma das maneiras mais eficazes de se garantir a maximização da utilidade a longo prazo. Para pegar o exemplo que o texto dá, supondo que matar um indivíduo fosse aliviar um sofrimento muito maior por indivíduo no restante da sociedade (porque não são todas as formas de utilitarismo que aceitam gerar sofrimento para garantir benefício - no utilitarismo negativo, por exemplo, aliviar sofrimento tem prioridade sobre gerar benefício); mesmo assim, postular que os indivíduos possuem direitos fundamentais teria o efeito de forçar os agentes a procurarem formas de minimizar o mesmo mal por meios menos danosos (meios que não precisassem sacrificar um para salvar vários). Isso tenderia a maximizar a utilidade a longo prazo.
O que quero apontar com isso é que a idéia de direitos fundamentais é totalmente compatível com muitas formas de utilitarismo de regras. Alguns esquecem dessa implicação na crítica que fazem ao utilitarismo. Outro problema é associar utilitarismo com bem-estarismo. Se existem versões de utilitarismo que são bem-estaristas, existem versões que são abolicionistas. E o abolicionismo é compatível com o utilitarismo - pelo menos com o utilitarismo de regras que mencionei, porque é uma das melhores maneiras de maximizar a utilidade a longo prazo.
Então, não é porque uma (ou algumas) versão de utilitarismo admite coisas que intuitivamente todos consideramos como erradas que então devemos descartar o utilitarismo e optar por dizer que a ética deve se limitar à garantia da liberdade. Pode ser mais fácil teoricamente optar por isso, mas não é o melhor.
(f) Há um grande problema em limitar a ética aos direitos, ou, como o texto coloca, em "respeitar os interesses fundamentais do indivíduo como meio de este buscar, de modo autônomo, sua felicidade, ao mesmo tempo respeitando os mesmos interesses fundamentais de seus semelhantes". À primeira vista, parece um ideal totalmente nobre, limitar a ética a garantir direitos para que os indivíduos busquem sua felicidade de modo autônomo. Muitas visões de direitos que se amparam nesse tipo de construção, justamente por isso, afirmam que os habitantes dos países ricos não têm dever de ajudar os habitantes de países (ou, regiões dentro do mesmo país) de extrema pobreza, já que os moradores pobres podem "buscar de modo autônomo sua felicidade" - com o detalhe que não há meios para isso. Isso é muito semelhante com o discurso de dizer "deixemos os animais livres na natureza" - sabendo a vida na natureza o inferno que é[4].


Outros problemas que gostaria de apontar, dizem respeito a questões práticas:
(1) O texto menciona que "...se há um incêndio, a menos que os seres humanos por eles responsáveis consigam resgatá-los dessas situações calamitosas. Se o animal fosse livre, ele poderia migrar de uma região afetada por seca ou enchente, ou escapar de um incêndio em seu habitat". Essa premissa (de que ele poderia migrar para outra região) não necessariamente é verdadeira, e, mesmo que fosse, não é relevante. Supondo que acontece uma enchente e humanos que moram na região foram afetados e que poderíamos ajudá-los sem grande risco para nós. Ninguém aceitaria dizer que "ora, eles são livres e podem migrar para outra região; não fui eu que os domestiquei, então não tenho nada a ver com isso". Quando se trata de nós, aceitamos prontamente os deveres de beneficência. É claro que não ter liberdade corporal e ser vítima de uma enchente é realmente pior do que ser vítima de enchente tendo liberdade corporal - se em ambos os casos ninguém irá prestar ajuda. Agora, não é assim óbvio que é realmente pior um animal ser tutelado e passar por uma situação calamitosa do que ele enfrentar a mesma situação livre. Pode ser que os humanos que os tutelam tenham maiores condições técnicas de salvarem-no da situação calamitosa do que ele mesmo por suas próprias forças. Isso mostra que nem sempre deixar o animal buscar o seu próprio bem a partir de sua autonomia prática produz o melhor resultado para ele próprio.
E nem precisamos chegar nas situações calamitosas. Muitos animais desejam coisas para eles próprios e as buscam, mas isso não os fará bem algum. Pegue o exemplo de gazelas que gostam de passeare em determinadas regiões sem perceber que ali perto estão leões famintos. Então, não é verdade que fomentar a liberdade ou preferências sempre terminará em menor dano. Como bem o Cláudio Godoy apontou no comentário: "...será que animais em ambiente selvagem não ficam encurralados em incêndios florestais, avalanches terremotos, erupções vulcânicas, dentre outras dádivas 100% naturais?".
(2) O texto menciona que "Mamíferos e aves, via de regra, não têm autonomia prática assim que nascem. Logo, não são – nem podem ser – livres, pois não sobreviveriam sozinhos no meio ambiente". Isso é verdadeiro, mas o textoo esquece que a maioria dos adultos que conseguem sobreviver no mundo silvestre também possuem uma existência muito curta e, geralmente, com um montante de sofrimento extremamente maior do que o montante de felicidade[5]. Isso sem contar que os que conseguem chegar à puberdade, se deixados por si só, na natureza, são a extrema minoria. E, até mesmo para os adultos que conseguem sobreviver sozinhos no ambiente, não aceitaríamos a premissa de que "devemos deixá-los se virar" no caso de humanos. Pessoas que passam fome na África também sabem se virar sozinhos no ambiente, mas eles não têm recursos para tal. Um presidente americano poderia muito bem dar a mesma desculpa, que não tem nada com isso porque "eles já tem liberdade para sobreviverem no ambiente". Essa é exatamente a situação dos animais na natureza. Deixe-os em liberdade, mas vão encontrar escassez, parasitas, predação, doenças, congelamento, queimaduras – enfim, uma vida cujo montante de sofrimento ultrapassa de longe o montando de desfrute.
(3) A mesma crítica pode ser endereçada à seguinte colocação: "A adoção do princípio dos direitos animais pela nossa sociedade não permitiria – no melhor interesse desses animais – uma libertação no sentido estrito, pois, em função da interferência humana, não mais seriam capazes de sobreviver isolados na natureza". O texto assume que isso só se aplica aos animais domesticados. Quem disse que a maioria dos animais silvestres, por si só, consegue sobreviver na natureza? A maioria morre muito cedo, e geralmente com uma forma extremamente brutal, depois de sua vida ser intenso sofrimento- e não por culpa da interferência humana; a vida na natureza é assim brutal. E, mesmo para aqueles que conseguem sobreviver, não significa que terão uma qualidade de vida mínima.
(4) A seguinte frase, sobre animais domesticados, me chamou atenção também: "Também o direito à integridade teria de ser limitado, pois, sem a existência de predadores naturais, apenas por meio da esterilização poder-se-ia controlar sua população". Quer dizer então que, se existissem predadores naturais para esses animais, seria preferível deixá-los morrer nas garras dos predadores do que controlar sua população esterilizando-os? Ora, esterilizar traria um resultado bem menos danoso. Às vezes, alguns defensores de direitos parecem não estar preocupados realmente com o dano de suas decisões. Preocupam-se apenas se esse dano resulta ou não de algo artificial (criado por humanos). É por isso que surge a  "acusação que muitos bem-estaristas imputam aos abolicionistas e defensores dos direitos animais" de que certas posturas desse tipo não se preocupam com o bem-estar, como o próprio texto menciona.
(5) O texto dá o seguinte exemplo:  "...animal silvestre que seja encontrado doente ou ferido. Se considerarmos que nosso dever de proteger sua vida e integridade implica resgatá-lo e tratá-lo, este animal somente será tutelado enquanto se recupera de sua enfermidade ou ferimento. Tão logo este se encontre apto a voltar à natureza, ele deve ser libertado". Se é nosso dever proteger sua vida e integridade como é que a gente pode querer soltar ele na natureza, se naquele inferno ele vai ter raríssimas chances de garantir sua vida e integridade? É como você curar as queimaduras de alguém e jogá-lo de volta ao incêndio.
(6) Não é sempre verdade que, quanto ao bem-estar dos animais "...eles, melhor do que nós mesmos, sabem qual a melhor forma de alcançá-lo. Tentarmos interferir na sua liberdade – como demonstra o caso da domesticação – pode causar muito mais danos do que os riscos da liberdade na natureza". Em primeiro lugar, querendo ou não, os humanos possuem uma maior capacidade tecnológica, e isso nos proporciona mais facilidade em realizar o bem-estar (ainda que geralmente não se use a tecnologia para melhorar a vida dos animais). Nenhum animal não-humano sabe como aplicar uma anestesia ou fazer uma operação para retirar um câncer - mas um bom veterinário sabe. Então, não é sempre verdade que os animais estarão melhores se os deixarmos virarem-se sozinhos. Pode ser mais fácil imaginar que os animais não precisam de nossa ajuda - isso poupa um trabalhão para nós. Mas, infelizmente, não é verdade.
Em segundo lugar, se é verdade que a domesticação pode causar mais dano do que a vida na natureza, não é necessariamente que esse dano sempre será causado de fato. O contrário parece ser verdade. Podemos comparar até com o pior exemplo de domesticação, o caso da granja industrial. Na natureza existem sofrimentos pelo menos tão ruins quanto o de uma granja industrial[6]. E, se levarmos em conta a quantidade de indivíduos (mesmo se adotarmos a extimativa baixa de que apenas uma pequena porcentagem dos insetos seja senciente, como Oscar Horta aponta[7]) e estipularmos o sofrimento por indivíduo, a vida na natureza pode ser até muito pior. Alguém pode dizer: "estás defendendo a domesticação?". Não a domesticação em si, mas, se alguém estiver diante de uma escolha onde as duas opções sejam a domesticação e a vida na natureza, e a última realmente trouxer mais danos do que a primeira, sim, uma preocupação com os interesses dos animais mesmos penderia para o lado domesticação - porque é isso que o animal escolheria para ele caso tivesse ciência dos fatos relevantes.
(7) Outro problema é com essa afirmação: "...os animais domesticados...após milênios na condição de objetos, eles perderam a capacidade de conduzir suas próprias vidas, tornaram-se dependentes...". Sim, isso é verdade. Mas também é verdade para o caso dos animais silvestres. Pode até ser que os silvestres possuam um grau um pouco maior de autonomia prática, apesar disso também ser questionável - mas mesmo que não fosse, eles não possuem os meios para viverem uma vida livre de sofrimento intenso. Isso nos leva ao próximo ponto:
(8) O texto menciona que "...se levamos a sério o bem-estar animal, tudo que nos cabe é assegurar que eles tenham os meios para persegui-lo segundo seus próprios desígnios". Bom, então isso implica intervir nos danos naturais. Pois a vida na natureza não dá esses meios. Por causa da devastação provocada por humanos? Talvez, menos por isso - mais porque a vida na natureza já é cheia de sofrimento extremo mesmo.


Quanto à questão da intervenção na predação, eu gostaria de colocar:
(1) Nos comentários, o autor afirma que  "... a intervenção direta [...] muitas vezes incorre no [...] , o stalinismo: em nome da emancipação total, poderá acabar em mais destruição e mais assassinatos do que as vidas que propõe a preservar". Em seguida, acrescenta que o debate sobre a intervenção "... nada tem a ver com utilitarismo. Trata-se sim de considerar exatamente o efeito que ela teria sobre os INDIVÍDUOS animais, se interferir realmente iria causar menos dano do que a liberdade natural".
Como isso não tem a ver com utilitarismo? O comentário mesmo dá uma resposta utilitarista, já que se baseou na possibilidade da intervenção mal-planejada causar mais danos do que poderia evitar. É o utilitarismo que pesa as probabilidades de conseqüências e quantifica danos, nas decisões éticas. Não vejo problema algum nisso. Só que temos de estar preparados para, caso as probabilidades das consequências de intervir serem benéficas, aceitarmos a intervenção - o que eu, como consequencialista, aceito. Minhas razões do porque penso que deveríamos criar meios para que a probabilidade da intervenção seja benéfica estão aqui: http://lucianoccunha.blogspot.com/2010/08/sobre-danos-naturais.html
A preocupação mencionada no comentário, de causar mais dano do que benefício, só não preocupa o "deôntico-puro", que geralmente assumem dois tipos de posição quanto a essa questão (ou qualquer outra): ou intervimos (a despeito das conseqüências) ou não intervimos (a despeito das conseqüências). É por isso que eu me mantenho consequencialista. E, dos autores que conheço que escrevem sobre o tema da intervenção (Steve Sapontzis, David Pearce, Yves Bonnardel, Oscar Horta, Allan Darwst, dentre outros), não conheço nenhum "deôntico-puro"; aliás, a grande maioria deles é utilitarista. Portanto, que eu saiba, todos os autores que têm escrito sobre esse tema tem a mesma preocupação que o comentário traz, e não promovem nenhum stalinismo que a acusação coloca.
Todos esses utilitaristas também estão preocupados com os indivíduos. O utilitarismo não é uma tentativa de fazer sempre o que for melhor para a maioria. Do contrário, seria um relativismo moral (a maioria sempre vence). É exatamente o nível de sofrimento por indivíduo que conta. Se a idéia de maximização gera alguns problemas, então é a forma do cálculo que deve ser melhorada. Mas, a forma do cálculo ter problemas não tem nada a ver com o objeto do valor (a felicidade) ter problemas. Muitas propostas de revisão do processo do cálculo já foram feitas.
(2) Me preocupa esse pensamento: "... o mundo ainda nem vegano é [...] não é mais produtivo darmos o primeiro passo antes de tentarmos alimentar ilusões de engenharia ecológico-social?". O mundo sequer respeita os humanos. Nenhum defensor sério dos animais concordaria se alguém dissesse “você não deve ‘alimentar ilusões’ sobre abolicionismo animal”. Os humanos sequer pararam de se matar; mas nenhum defensor sério dos humanos concordaria se dissessem que, por isso, você não deve cumprir deveres positivos aos humanos, só porque a humanidade como um todo não cumpriu os deveres negativos ainda. Eu não sei de onde surge o salto para "o que a humanidade como um todo anda fazendo" para "o que eu devo fazer". Essa conclusão é especista. Se a humanidade como um todo não quer adotar o veganismo, isso não deveria permitir as pessoas jogarem fora suas obrigações positivas. E, se a humanidade como um todo nunca adotar o veganismo? Eu não posso tentar ajudar os animais por causa disso então? Ou isso só é concluído dessa maneira só no caso da predação e outros danos naturais, para evitar complicações nas teorias?
(3) Quando a questão da intervenção nos danos naturais é ridicularizada com afirmações do tipo "pode ser que um dia esse delírio tenha algum fundamento" ou  caracterizada como "especulação intelectual estéril", o que se perde com isso é um debate sério. Porque essa é a forma pior e mais desonesta de se tentar ganhar um debate. No debate ético, estamos em busca da verdade sobre o que devemos decidir; e não chegamos na verdade ridicularizando hipóteses das quais não concordamos. Se a intervenção é errada, isso deve ser mostrado com argumentos, deveriam ser apontados problemas nos argumentos pró-intervenção, etc. Ridicularizar dessa forma, para quem conhece os argumentos, soa como uma tentativa desesperada de contrariar, mesmo sem argumentos. Eu, sinceramente, penso que essa questão não é tão urgente para a maioria das pessoas porque elas possuem uma visão ainda muito romantizada do que é a vida na natureza. Alguém pode dizer "eu sei que ocorre predação, enchentes, incêndios, etc.". Mas, se soubessem que, na vida na natureza, o montante de sofrimento ultrapassa numa porcentagem extremamente absurda o montante de satisfação, talvez vissem com mais urgência essa questão. Do contrário, parece que o sofrimento dos animais não lhe importa, importa apenas garantir que sejam livres (e que se sofram e morram livres, igualzinho - ou até pior, dado que a morte na natureza é das mais violentas imagináveis - ao que ia acontecer a eles se continuassem escravos).


Por fim, eu gostaria de comentar algo sobre o conceito de liberdade utilizado no texto:
Uma das conclusões presente no texto é de que "assim, a liberdade, não é – contrariando o senso comum – meramente um conceito abstrato, filosófico, uma aspiração espiritual, disponível apenas aos seres racionais que podem entendê-la e sonhar com ela". Ora, aqui é cometida a falácia de se referir a dois conceitos diferentes com a mesma palavra. Durante todo o texto, liberdade é usado como sinônimo de liberdade física, como a capacidade de buscar os seus interesses a partir de suas próprias forças. Mas, não é esse o sentido que está envolvido na discussão referida na frase acima - que aliás, é um dos problemas mais difíceis da filosofia. O que está envolvido nesse problema é se realmente fazemos escolhas livres (se temos livre arbítrio) ou se somos determinados pelas leis causais. Esse problema é à parte da condição de liberdade corporal. Alguém pode ter liberdade de movimento do corpo e ainda assim (se o determinismo for verdadeiro) não ter liberdade no sentido metafísico.
Portanto, definir liberdade como liberdade corporal não resolve o problema metafísico do debate liberdade x determinismo.





[1] Por exemplo, Singer afirma que, para o utilitarismo hedonista, a morte seria um mal porque elimina a felicidade que a vítima sentiria se permanecesse viva. “Esta objeção ao assassinato vai aplicar-se a todo e qualquer ser com probabilidades de ter um futuro feliz...”. . SINGER, Peter. Ética Prática. 3 ed. Trad. Jefferson L. Camargo. São Paulo. Martins Fontes, 2002, p. 101.  
[2] Essa característica de algumas teorias de direitos (de estarem próximas ao utilitarismo, com a diferença que alguns interesses recebem uma proteção especial) é apontada por Mark Sagoff. Cf. SAGOFF, Mark. Animal Liberation, Evironmental Ethics: Bad Marriage, Quick Divorce. In: ZIMMERMANN, Michael et al... (eds.). Environmental Philosophy: From Animal Rights to Radical Ecology. Upper Saddle River NJ: Prentice Hall, 1993, pp. 84-94.


[3] Cf. Tom. The Case for Animal Rights. 2nd ed. Los Angeles: University of California Press, 2004, p. 201.
[4] Para uma análise da quantidade de sofrimento na Natureza (devido a causas naturais), ver DAWRST, Allan The Importance of Wild-Animal Suffering. Disponível em http://www.utilitarian-essays.com/suffering-nature.html. Ver  também DAWRST, Allan. How Many Animals are There? Disponível em http://www.utilitarian-essays.com/number-of-wild-animals.html.
[5] Ver os textos de Allan Dawrst citados anteriormente.
[6] Ver os artigos de Dawrst mencionados anteriormente.
[7] Segundo Horta, “…the numbers of animals killed to be eaten by humans also pale in comparison to the numbers of animals that live lives of suffering in the wild. This happens in particular, as Alan Dawrst has perspicaciously pointed out, because of the huge number of insects and other small animals existing on Earth, which amount to the overwhelming majority of the animals on our planet.[4] As Dawrst claims, this number is so high that it outweighs doubts regarding sentience of insects. Suppose that the odds that insects are sentient were 0.01 measured on a scale between 0 and 1 (this, in my view, is a radically conservative estimate, I would claim that the odds would be far more closer to 1, but let us just accept it for the sake of the argument). Now, there are an estimated 10^18 to 10^19 insects. This means that concern for insects in the world should count as much as concern for at least 10^16 animals that we knew could suffer”. Cf. http://www.pensataanimal.net/painel/138-devemos-intervir-na-predacao/350-oscar-horta

Luciano Carlos Cunha

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