tag:blogger.com,1999:blog-17435876679870899642023-11-15T10:42:56.328-08:00Desafiando o EspecismoLuciano Carlos Cunhahttp://www.blogger.com/profile/11543323145219198300noreply@blogger.comBlogger34125tag:blogger.com,1999:blog-1743587667987089964.post-52285803552872008602015-01-27T02:08:00.001-08:002015-01-27T02:09:32.764-08:00Novo endereço dos textos do "Especismo Não!"Devido a problemas com o servidor, desativei o endereço www.especismonao.net<br />
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Os textos que se encontravam no blog "Especismo Não!" podem ser todos encontrados agora no seguinte endereço:<br />
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<a href="http://www.olharanimal.org/pensata-animal/autores/luciano-carlos-cunha">http://www.olharanimal.org/pensata-animal/autores/luciano-carlos-cunha</a><br />
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Também estão disponíveis para download os meus artigos postados na minha página no academia.edu:<br />
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<a href="https://ufsc.academia.edu/LucianoCunha">https://ufsc.academia.edu/LucianoCunha</a>Luciano Carlos Cunhahttp://www.blogger.com/profile/11543323145219198300noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-1743587667987089964.post-57343488350951378932014-03-17T09:56:00.002-07:002015-01-27T02:11:15.215-08:00Acabamos de lançar o blog Especismo Não!<br />
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<span style="background-color: white; color: #444444; font-family: 'Open Sans', Helvetica, Arial, sans-serif; font-size: 14px; line-height: 24px;">O objetivo do blog é apresentar uma análise criteriosa dos argumentos que aparecem com frequência em debates, artigos, conversas ou pensamentos da própria pessoa quando o assunto são nossas decisões que atingem os animais não humanos, seja lá que conclusão o argumento em questão esteja a defender. Nossa meta a longo prazo é que a grande maioria dos argumentos em torno dessa questão esteja discutido no site. O blog será atualizado diariamente, sempre a cada dia com um a discussão de um argumento específico.</span><br />
<span style="background-color: white; color: #444444; font-family: 'Open Sans', Helvetica, Arial, sans-serif; font-size: 14px; line-height: 24px;"><br /></span>
<span style="color: #444444; font-family: Open Sans, Helvetica, Arial, sans-serif;"><span style="background-color: white; font-size: 14px; line-height: 24px;">No momento, já temos 32 artigos no blog.</span></span><br />
<span style="background-color: white; color: #444444; font-family: 'Open Sans', Helvetica, Arial, sans-serif; font-size: 14px; line-height: 24px;"><br /></span>
<span style="background-color: white; color: #444444; font-family: 'Open Sans', Helvetica, Arial, sans-serif; font-size: 14px; line-height: 24px;">acesse: </span><span style="color: #0000ee; font-family: Open Sans, Helvetica, Arial, sans-serif;"><span style="font-size: 14px; line-height: 24px;"><u>http://www.olharanimal.org/pensata-animal/autores/luciano-carlos-cunha</u></span></span>Luciano Carlos Cunhahttp://www.blogger.com/profile/11543323145219198300noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-1743587667987089964.post-45325138319648273272013-10-19T19:42:00.000-07:002013-10-19T19:42:00.062-07:00O DEBATE SOBRE A MORALIDADE DA EXPERIMENTAÇÃO ANIMAL: O QUE É RELEVANTE E O QUE NÃO É<br />
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A maioria das discussões em torno dos experimentos feitos com animais não humanos têm girado em torno da necessidade ou não necessidade dos mesmos. De um lado, os que usam os animais defendem ser necessário o uso em pelo menos alguns experimentos. Do outro, alguns ativistas respondem apontando os riscos de se extrapolar dados de uma espécie para outra e outros problemas técnicos com a experimentação. Eu acredito que o debate se centrar nessa questão é um resultado infeliz, pois dá a entender que ambos os lados do debate assumem a seguinte premissa: “se um determinado meio é necessário para se chegar a um determinado fim, então esse fim e esse meio estão automaticamente justificados”.<br />
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Quando percebemos esse ponto, vemos que essa premissa é altamente questionável. Vamos supor que o objetivo de pelo menos alguns experimentos seja o de curar doenças. Esse fim é justificável, até louvável. Mas, segue daí que qualquer meio para se chegar a um fim louvável é automaticamente justificado, desde que seja necessário para se chegar nesse fim? A maioria de nós, incluindo os que experimentam em animais, não concordaria com essa conclusão. Imagine que, para se curar uma determinada doença fosse necessário assassinar e torturar algumas crianças. A maioria de nós defenderia que é um erro fazer isso, e que os cientistas deveriam buscar descobrir outro meio de procurar curar a doença. Assim sendo, a discussão não deveria girar em torno da necessidade ou não da experimentação animal, já que podem existir razões que mostrem que, mesmo sendo necessária em alguns casos, ainda assim ela não se justifica (discuto melhor essas razões abaixo).<br />
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O que precisa ficar claro é que o ponto central do debate não deve ser o que está sendo até agora. A questão central é que os animais que são utilizados o são porque não pertencem à espécie humana. Quando se desfavorece alguém por não pertencer a determinada espécie, o nome disso é especismo (da mesma maneira que desfavorecer alguém que não pertence a determinada raça chama-se racismo). Então, o ponto central deveria ser perguntar por que se acredita que é correto fazer experimentos em animais não humanos (ou usar para outros fins, como comer) mas não é correto usar seres humanos. Para explorar melhor esse ponto, vou sugerir um experimento mental: suponha que ficasse provado que experimentar em humanos é tecnicamente mais eficaz e, além disso, necessário para se curar uma determinada doença. O que poderia explicar o erro de se usar humanos nesse caso e que ao mesmo tempo explique que não é um erro utilizar animais não humanos?<br />
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O que poderia justificar o especismo? Para a maioria, a diferença parece óbvia: “como alguém não poderia perceber a diferença moralmente relevante entre humanos e animais de outras espécies?”. Mas, e que diferença seria essa? Não pode ser o mero fato de uns serem humanos e outros não, porque isso não explica nada. Não pode ser o fato de humanos serem mais racionais do que outros animais, porque nem todos os humanos são racionais (recém nascidos, crianças muito pequenas, idosos senis, portadores de determinadas doenças mentais, comatosos: existem animais não humanos muito mais racionais do que estes humanos). Aliás, em se tratando de humanos não racionais, ao invés de os utilizarmos como comida ou modelo de testes, damos atenção primordial aos seus cuidados, já que são mais vulneráveis e mais dependentes de nós. Então, apontar que os não humanos são menos racionais só mostraria que os cuidados sobre eles deveriam ser muito maiores; tão grandes quanto aquele que geralmente temos para com um bebê.<br />
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E quanto a apontar que na natureza o mais forte subjulga o mais fraco; os animais comem uns aos outros; e cada animal favorece aos da sua própria espécie? Teria poder para justificar o especismo? Não, porque isso seria assumir a seguinte premissa: “se algo é natural, então é justificado”. O problema com essa premissa aparece logo que perguntamos o que se quer dizer com o termo “natural”. No sentido que é empregue nesse argumento, quer dizer que é algo que acontece sem intervenção deliberada humana, ou que segue os processos evolutivos inconscientes. Mas, então, por que isso seria relevante moralmente? No que apontar que algo simplesmente acontece sem intervenção humana ou planejamento racional seria relevante para nos dar razões para agir dessa ou daquela forma? Não parece contraditório buscar razões para agir justamente em processos que, desde Darwin, sabemos que não são processos racionais? É curioso que alguns cientistas, muitos dos quais aceitam a teoria da evolução, baseiem-se nessa premissa muito problemática. Uma coisa é “como as coisas são?”; outra é “como as coisas deveriam ser?”. Dizer que algo é da maneira que é não dá razão alguma para concluirmos que, então, esse algo é automaticamente bom ou correto.<br />
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A falha em todas essas tentativas de se justificar o especismo está em não se perceber que a principal razão para se respeitar seres humanos não se dá por estes serem humanos, nem por serem racionais, e nem porque na natureza cada animal privilegia os da sua espécie, e sim, simplesmente porque seres humanos são capazes de sofrer e desfrutar. Essa razão muito simples é o que melhor explica o dever de se respeitar alguém. Alguém precisa de respeito porque valoriza estar em um determinado estado e não em outro e é vulnerável. Para isso, é preciso ser senciente (capaz de sofrer e desfrutar). Todo ser senciente prefere desfrutar de experiências mentais positivas ao invés de negativas. Todos nós reconhecemos que sofrer e/ou ser privado de desfrutar de algo bom, é ser prejudicado. Ser capaz de sofrimento/desfrute é uma razão suficiente para se respeitar alguém, pois então esse alguém pode ser prejudicado ou beneficiado de acordo com o que decidirmos. Para haver possibilidade de alguém ser prejudicado, basta ser senciente, independentemente de espécie, de grau de racionalidade e do que acontece na natureza. A mesma razão que explica por que devemos respeitar humanos explica ao mesmo tempo porque devemos respeitar qualquer ser capaz de sentir, independentemente de espécie.<br />
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Outro resultado infeliz do debate é que por vezes centra-se a discussão em se saber se houve ou não maus tratos durante o experimento. O que isso parece indicar é que, então, ambos os lados do debate estão a aceitar a seguinte premissa: “se não houver maus tratos durante um experimento, então, ele é automaticamente justificado”. Essa premissa só faria sentido se sofrer fosse a única maneira de se prejudicar alguém. Mas, existe pelo menos outra maneira bem conhecida de se prejudicar alguém: assassiná-lo, quando ainda lhe resta algo de bom a ser desfrutado.<br />
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Alguém poderia objetar, dizendo que é isso que explica a diferença entre humanos e não humanos quanto ao erro em matar: os primeiros fazem planos para o futuro e entendem o que é a morte; os segundos não. Essa objeção tem dois erros. O primeiro erro, menor, é que existem humanos (bebês, idosos senis, portadores de determinadas doenças mentais, etc.) que também não entendem o que é a morte e também não fazem planos para o futuro. O segundo erro, maior, é confundir “ser prejudicado” com “saber que será prejudicado”. A morte, quando é um dano, é um dano não devido ao que ela faz estar presente, mas devido ao que ela priva. Ela priva alguém de desfrutar sensações boas no futuro. E isso é assim independentemente desse alguém saber o que é a morte, ter feito planos para o futuro, ou sofrer antes da morte. Assim sendo, todos os seres com possibilidade de desfrutarem algo de bom no futuro são danados ao morrer. Então, não é tão importante discutir se houveram ou não maus-tratos durante os experimentos, haja vista que existem fortes razões para se objetar aos experimentos mesmo quando não existem maus-tratos, já que os animais, de qualquer maneira, são mortos depois.<br />
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Por fim, um comentário sobre outro argumento muito freqüente nos debates. Os defensores da experimentação acusam os defensores dos animais de hipocrisia por se beneficiarem da exploração animal (usarem remédios, comer comida de origem animal, andar de ônibus, por exemplo). Disso, eles concluem que, então, a exploração animal está justificada. O problema é que essa conclusão não seguiria da premissa nem que a premissa fosse verdadeira. É verdade, a acusação de hipocrisia poderia ser verdadeira em alguns casos (por exemplo, parar de comer comida de origem animal é algo que se pode fazer facilmente). Contudo, outras coisas são muito mais difíceis de se fazer, haja vista que absolutamente quase tudo em nossa sociedade é feito à base de exploração animal.<br />
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Mas, a questão não é essa. Mesmo que todas as acusações de hipocrisia fossem verdadeiras, será que segue daí que, então, a prática que o suposto “hipócrita” está a criticar tem boas razões a seu favor? Obviamente que não. Uma questão é “qual o caráter do interlocutor?”, outra é “qual a coisa certa a se fazer?”. Imagine, por exemplo, que o tratamento de água fosse feito a base de trabalho infantil. Ninguém pode deixar de tomar água. Será que segue daí que então não existem razões contra o trabalho infantil e que alguém deve ser proibido de objetá-lo? E, supondo que o trabalho infantil fosse utilizado em um produto não necessário, como café. Supondo que quem estivesse a protestar tomasse café e que a acusação de hipocrisia fizesse sentido. Segue daí que não existem boas razões para se abolir o trabalho infantil? Obviamente que não. O interlocutor, no nosso exemplo fictício, apesar de hipócrita, estaria a fazer a coisa certa ao criticar a exploração. Acusar os defensores dos animais de hipocrisia com vistas a concluir que a experimentação animal se justifica é nada mais do que um caso da famosa falácia ad hominem. Aliás, parece que o fato de quase tudo em nossa sociedade ser feito à base de exploração animal é mais uma razão para aboli-la, pois então mostra que sofrimento e morte estão sendo impostos a um número gigante de seres sencientes.<br />
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Essas questões deveriam ser o ponto central do debate. As razões acima são as razões mais básicas para se rejeitar o especismo, e, com ele todas as práticas exploratórias sobre os não humanos, incluindo a experimentação animal. É a partir daí que o debate deveria se desenvolver. E é por não se estar discutindo os argumentos principais e se estar a perder tempo com argumentos que já assumem de antemão que o especismo está justificado que nosso entendimento das questões éticas que envolvem animais não humanos está, infelizmente, em um nível dos mais rasos.<br />
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Luciano Carlos Cunha (Mestre em Ética e Filosofia Política pela UFSC)<br />
<br />Luciano Carlos Cunhahttp://www.blogger.com/profile/11543323145219198300noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-1743587667987089964.post-76455739580757165832013-05-04T08:55:00.001-07:002013-05-04T08:58:56.108-07:00A favor dos animais, contra a naturezaNo link abaixo, se encontra um artigo de minha autoria, sobre o mesmo tema já tratado no artigo <a href="http://masalladelaespecie.files.wordpress.com/2011/01/luciano-carlos-cunha-sobre-danos-naturais.pdf" target="_blank">"Sobre Danos Naturais"</a>: a importância moral dos males que os animais não humanos padecem que não tem origem no seu uso enquanto recursos, mas sim, de fontes naturais (doenças, inanição, predação, deformidades, etc.). No artigo, intitulado "O Princípio da Beneficência e os Animais Não Humanos: Uma Discussão Sobre o Problema da Predação e Outros Danos Naturais", apresento o argumento central a favor de se considerar moralmente esses tipos de danos, e defendo que o grau de prioridade que um dano deveria receber em ser minimizado não deveria depender de qual sua fonte de origem, mas sim, do quanto afeta suas vítimas. No artigo também respondo a algumas das objeções comuns à perspectiva que defendo, objeções essas que geralmente são centradas na crença de que aquilo que é natural é sagrado, idéia que apresento razões para rejeitar.<br />
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É de se esperar, dada a veneração pelos processos naturais amplamente aceita pela maioria (pelo menos quando as vítimas são animais não humanos) e o grau altíssimo de especismo e desconsideração pelos animais não humanos presentes no pensamento da maioria das pessoas, que tal tema seja um tabu. Contudo, um fato curioso é que o lugar onde esse tabu parece ser maior ainda é exatamente dentro do movimento de direitos animais. Os que se intitulam defensores dos direitos animais não exitam em defender que devemos deixar a natureza seguir o seu curso e que é uma blasfêmia socorrer um animal silvestre que está a padecer de inanição, por exemplo. Deveres de beneficência, defendem eles,dizem respeito apenas a males que nós já fizemos no passado. Obviamente, eles não pensam assim quando as vítimas de danos naturais são seres humanos (nem que para alguns, isso se restrinja a eles próprios, como no caso dos egoístas), revelando especismo. Mas, enfim, existirão boas razões para se pensar que os deveres de beneficência com relação a animais não humanos se restrigiriam a casos onde o dano é fruto da exploração feita no passado? Penso que não, e o artigo no link abaixo, espero, ajudará a explicar por que os danos naturais são tão importantes moralmente quanto os danos causados pela exploração.<br />
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Link para o artigo: <a href="http://minerva.usc.es/bitstream/10347/7399/1/101-133.pdf">http://minerva.usc.es/bitstream/10347/7399/1/101-133.pdf</a>Luciano Carlos Cunhahttp://www.blogger.com/profile/11543323145219198300noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-1743587667987089964.post-61117275612156888472013-01-22T06:46:00.003-08:002013-01-22T06:46:30.499-08:00O Consequencialismo e a Deontologia na Ética AnimalDeixo o link para download (gentilmente postado nos sites <a href="http://www.masalladelaespecie.wordpress.com/">www.masalladelaespecie.wordpress.com</a> e <a href="http://www.criticanarede.com/">www.criticanarede.com</a>) da minha dissertação de mestrado: O Consequencialismo e a Deontologia na Ética Animal: Uma Análise Crítica Comparativa das Perspectivas de Peter Singer, Steve Sapontzis, Tom Regan e Gary Francione.<br />
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Resumo da dissertação: <br />
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A presente dissertação tem como objetivo comparar criticamente duas
abordagens distintas, uma centrada no consequencialismo e outra centrada
na deontologia, sobre o problema do estatuto moral dos animais não
humanos. Inicialmente, são apresentadas as críticas de Gary Francione e
Tom Regan, que propõem uma abordagem deontológica centrada na idéia de
direitos, à proposta de Peter Singer, consequencialista, centrada no
utilitarismo das preferências. A proposta de Singer é então apresentada,
e a plausibilidade das críticas é avaliada. Por fim, é apresentada a
análise de Steve Sapontzis, que tenta ver se é possível juntar, num
único sistema de raciocínio moral, as principais preocupações tanto das
formas consequencialistas quanto deontológicas da ética animal.<br />
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Abraços!<br />
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Luciano Carlos Cunha. <br />
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Links para download:<br />
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<a href="http://masalladelaespecie.files.wordpress.com/2011/01/luciano-carlos-cunha-consequencialismo-dentologia.pdf" target="_blank">Download</a><br />
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<a href="http://criticanarede.com/teses/consequencialismo.pdf" target="_blank">Download </a>Luciano Carlos Cunhahttp://www.blogger.com/profile/11543323145219198300noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-1743587667987089964.post-32508231290756299502013-01-18T10:41:00.006-08:002013-01-19T19:52:19.951-08:00IGUALDADE SENCIENTE - Parte 3 (final)VERDADE, RAZÃO, JUSTIFICATIVA EM ÉTICA E OS SERES SENCIENTES<br />
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Luciano Carlos Cunha <br />
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Parte 3 - Por que rejeitar o egoísmo; por que isso implica no dever de igual consideração para os seres sencientes e algumas implicações práticas.<br />
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Comecemos por lembrar a objeção cética que aponta para a regressão de princípios que visam sustentar uma conclusão moral: “uma razão sustenta uma conclusão, mas, se formos perguntar o que sustenta essa razão, e o que sustenta a outra mais básica que a dá sustentação, uma hora chegaremos a um sentimento que não está aberto à avaliação racional”. Por esse motivo, conclui o cético, alguém que não se sente motivado a levar os outros em consideração está justificado a ser um egoísta. O que quero apontar primeiramente é que, quando se trata do nosso próprio bem, se dá a mesma coisa, em termos de regressão de razões até chegarmos em um motivo que não pode ser justificado com base em outro. Por exemplo, supondo que alguém me pergunte por que eu coloquei o despertador para tocar às seis horas, e eu responda que era porque precisava, antes de ir trabalhar, passar numa farmácia. Se me perguntassem por que eu queria ir na farmácia, eu responderia que queria comprar um remédio. Se me perguntassem por que eu queria comprar um remédio, eu responderia que era para ficar curado de uma doença. Se me perguntassem por que eu queria ficar curado de uma doença, eu responderia que não queria sofrer e queria desfrutar felicidade. Se me perguntassem por que eu não queria sofrer e por que queria desfrutar felicidade, a resposta seria que sofrer é algo <i>ruim</i> e desfrutar felicidade é algo <i>bom</i>. Nesse ponto, a justificação teria que terminar. O sofrimento ser algo ruim e a felicidade ser algo bom não são justificados com base em outra coisa; são <i>intrinsecamente</i> (explicarei essa noção mais detalhadamente adiante) ruim e bom, respectivamente. Note que, ao chegar nesse ponto inicial de justificação, há uma sutil mas importante modificação na forma da justificação: o apelo não se dá mais ao “por que eu <i>quero</i> x”, mas sim, a algo que <i>é</i> ruim ou <i>é</i> bom, e que é <i>por isso</i>, (e não o contrário) que eu <i>quero</i> evitar ou buscar certas coisas. Quero evitar o sofrimento por que ele <i>é</i> ruim (isso é um julgamento de valor, não uma mera descrição de um fato); quero buscar o prazer porque ele <i>é</i> bom (isso é um julgamento de valor, não uma mera descrição de um fato), e não, que o sofrimento e o prazer se tornam, respectivamente, ruins e bons, porque eu quero evitá-lo e buscá-lo, respectivamente. Isso seria deixar tudo ao contrário. Por isso afirmei anteriormente que o desejo surge depois de um julgamento de valor.<br />
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Então, quando se trata de buscarmos nosso próprio bem individualmente também temos de nos basear num princípio baseado em um valor (o de que o sofrimento é intrinsecamente ruim e o prazer intrinsecamente bom) que não pode ser justificado com base em outro. Contudo, note um detalhe importante: ele não pode ser justificado com base em outro, mas isso não indica que aceitá-lo ou não seja uma questão de gosto pessoal e que escolhê-lo ou não seja uma questão não aberta à avaliação racional. Por exemplo, supondo que alguém fizesse exatamente o contrário: que buscasse tudo aquilo que lhe causa sofrimento e evitasse tudo aquilo que lhe causa felicidade (por pensar que o sofrimento é bom e a felicidade é ruim): ele deceparia seus próprios membros e atearia fogo no próprio corpo, por exemplo. Faria todo sentido dizer que alguém assim é um tolo, um irracional (e a irracionalidade aqui consiste em não perceber que é o sofrimento que é ruim e a felicidade que é boa, e não o contrário). Nesse ponto, poderia surgir uma objeção: mas, às vezes é racional escolher passar por um sofrimento, e às vezes é irracional buscar determinada satisfação. Por exemplo, supondo que eu tivesse que fazer uma operação extremamente dolorida, mas que fosse a única forma de salvar minha vida: após a dolorida recuperação, eu ainda teria muito a desfrutar pela frente. Seria racional escolher esse sofrimento. E, por exemplo, supondo que sei que, apesar do meu gosto por determinada comida, ela me causa problemas no fígado, seria irracional se eu buscasse a satisfação de comê-la (isso porque me impediria o desfrute no futuro e causaria sofrimento). Embora o que esses exemplos apontem esteja correto (no primeiro caso, é racional passar por tal sofrimento, e no segundo, é irracional buscar tal satisfação), eles não provam que o sofrimento possa ser algo bom <i>em si</i> e nem que a felicidade possa ser algo ruim <i>em si</i>. Pelo contrário, esses argumentos só fazem sentido se o sofrimento for algo ruim e a felicidade for algo bom. Note que o que se quer, nos dois exemplos, é evitar um sofrimento ainda maior e proporcionar oportunidade para a felicidade. Então, esses exemplos partem de um quadro geral de sofrimento e felicidade na vida de um indivíduo, e afirmam, corretamente, que não vale a pena provocar um sofrimento maior e impedir desfrute maior por causa de um desfrute pequeno, e que vale a pena passar um sofrimento menor com vistas a evitar o maior e a proporcionar desfrute. Tais exemplos são formas do que chamamos de raciocínio <i>prudencial</i> (em oposição ao raciocínio que visa apenas fomentar interesses momentâneos, sem se preocupar com o quadro geral de sofrimento/felicidade da própria pessoa ao longo do tempo). <br />
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Foi por esse motivo que caracterizei o sofrimento como <i>intrinsecamente</i> ruim e a felicidade como <i>intrinsecamente</i> boa. O que eu quis dizer é que o sofrimento não pode ser bom nele mesmo; a única maneira do sofrimento ser bom (em termos de raciocínio sobre o bem individual) é que seja um <i>instrumento</i> para a felicidade (ou alguma outra coisa que também tenha valor intrínseco positivo) ou para impedir um sofrimento ainda maior. A felicidade não pode ser ruim nela mesma; a única maneira dela ser ruim (em termos de raciocínio sobre o bem individual) é que seja um <i>instrumento</i> que impeça uma felicidade maior ou que cause sofrimento maior (ou que cause alguma outra coisa que tenha valor intrínseco negativo). Assim, em termos de raciocínio sobre o <i>bem individual</i> (sem levar em conta o impacto sobre outros indivíduos), o sofrimento só pode ser <i>instrumentalmente</i> bom, não <i>intrinsecamente</i> bom; e a felicidade só pode ser <i>instrumentalmente</i> ruim; e não, <i>intrinsecamente</i> ruim. Note que essas constatações apontam apenas para o valor intrínseco do sofrimento e da felicidade, mas não assumem que essas são as únicas coisas possíveis de serem boas ou ruins em si próprias. A lista fica em aberto, em termos de outras coisas possuírem valor intrínseco negativo ou positivo.<br />
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Como isso tudo mostra que o egoísmo é eticamente indefensável? Comecemos por notar que, embora o valor intrínseco negativo do sofrimento e o valor intrínseco positivo da felicidade não possam ser justificados com base em outra coisa mais básica, todos nós aceitamos que tais premissas são verdadeiras quando se trata de buscar o nosso próprio bem. Afinal de contas, não há nenhuma razão para duvidar da validade dessas premissas (na falta dessas razões contrárias, deve-se, então, considerar <i>racional</i> – e não apenas uma preferência aleatória não aberta à avaliação racional - buscar a felicidade e evitar sofrimento). Quando se trata de buscar o nosso próprio bem e evitar o nosso próprio mal, nenhum de nós exige que se ofereça uma justificativa para além dessa. Tais exigências só aparecem quando a questão é levar em consideração o bem dos outros. Nessa hora, a maioria de nós pede por uma justificativa para além de se apontar que o sofrer é algo ruim e que a felicidade é algo bom. Contudo, isso mostra que esse pedido é uma racionalização (ou seja, ninguém acredita sinceramente nele). Se acreditássemos, teríamos iguais dúvidas quando se trata de fomentar o nosso próprio bem, e, então, ninguém pensaria estar justificado em buscar o próprio prazer e evitar o próprio sofrimento. O que fiz, para explicar esse erro, foi apelar à regra de tratar casos relevantemente similares de maneira similar. Não faz sentido dizer que algo (no caso o sofrimento e a felicidade) não funciona como justificativa em um caso, e em outro caso, dizer que funciona. E, mesmo que alguém dissesse que não funciona nos dois casos (na busca do próprio bem e do bem dos outros), a menos que a pessoa sugerisse algum argumento que demonstrasse que o sofrimento e a felicidade não possuem valor em si (negativo e positivo, respectivamente), a pessoa em questão seria culpada de irracionalidade, como vimos anteriormente. Assim como o raciocínio prudencial parte da constatação que cada um dos instantes no quadro geral da vida de alguém não possui um <i>status</i> especial, o raciocínio ético parte da constatação de que cada um dos indivíduos não possui um <i>status</i> especial. O raciocínio prudencial depende da percepção de alguém como existindo ao longo do tempo; o raciocínio ético depende da percepção de alguém como existindo entre outros. Como vimos, a única maneira de justificar que o meu sofrimento/felicidade são razões para buscar o meu próprio bem, ao mesmo tempo que o sofrimento/felicidade dos outros não são razões para buscar o bem deles, seria apontar uma diferença moralmente relevante entre os dois tipos de casos. Essa diferença teria que mostrar que, apesar dessa característica comum (que é moralmente relevante; como vimos, não existem razões para duvidar de que o sofrimento é intrinsecamente ruim e a felicidade intrinsecamente boa), devemos, contudo, tratá-los de maneira diferente devido à outra característica moralmente relevante mais forte que anule a primeira.<br />
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Qualquer tentativa nesse sentido (de provar que somente o meu bem é que importa) teria que apelar a uma característica que possuo, para fundar a “diferença moralmente relevante”. Afinal de contas, seria circular responder que “somente o meu bem deve ser considerado porque eu sou eu”. Isso é óbvio, mas também é irrelevante. O que se quer saber é “o que há em determinado indivíduo que o torna mais especial?”. A única maneira de tentar algo nesse sentido seria apontar para uma característica que esse alguém possui, que não o fato de ele ser ele mesmo. Contudo, isso gera um problema, se o que se pretende é justificar o egoísmo. Como vimos, a principal característica da razão é sua generalidade. Quando apontamos uma característica que justifica um caso, automaticamente apontamos que a mesma característica justifica outros casos que a apresentem. Assim, por exemplo, se alguém aponta “eu sou mais especial porque todos os outros dependem de mim”, não oferece um argumento a favor do egoísmo. A regra geral a que apela é “é mais especial aquele do qual todos os outros dependem”. Ou seja, tal proponente teria que admitir que, se não fosse <i>ele</i> que ocupasse essa posição, mas <i>qualquer outro</i>, somente esse outro deveria ser considerado. A generalidade das razões gera um problema para a defesa desse tipo de egoísmo, pois toda característica que se aponte (com exceção de que “eu sou eu”, que, como vimos, é circular), cairá no mesmo tipo de impessoalidade, não fornecendo assim, razão alguma a favor do egoísmo.<br />
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Outra tentativa de justificar o egoísmo toma uma forma que chamo “universalizada” (em contraste à tentativa anterior, que chamo de egoísmo individual): ao invés de se tentar provar que um indivíduo específico é o único que tem valor (que todos deveriam considerar), tenta-se sugerir que <i>cada um</i> considere <i>apenas</i> o seu próprio bem (que cada um pense que é mais especial que os outros). Esse argumento também não funciona como justificativa. Como vimos, uma justificativa precisa ser racional. Faria sentido cada um considerar apenas si próprio somente se fosse razoável acreditar que cada um de nós é mais especial que os outros. Mas, é exatamente isso que é impossível de ser verdade: “cada um de nós individualmente” não pode ser mais especial que “cada um de nós individualmente” (se um é mais especial, é porque outros não o são). Isso mostra o seguinte: a possibilidade de se universalizar uma prescrição (no caso, “que cada um considere apenas os seus interesses”) não indica que tal prescrição seja racional. Nesse ponto, o egoísta poderia objetar, dizendo que não está a propor que <i>cada um</i> seja mais especial que <i>todos os outros objetivamente</i> (o que, como vimos, é impossível), mas, mais especial “<i>para si</i>”. O problema com essa tentativa é que ela é apenas uma outra forma de expressar a anterior. O que se quer dizer com “eu sou mais especial para mim”, ou “para mim, eu sou mais especial” ou “ele é mais especial para ele”, ou ainda “para ele, ele é mais especial” parecem coisas diferentes, mas, para fazerem sentido, dependem todas da validade de: “na minha opinião eu sou mais especial (objetivamente)” e “na opinião dele, ele é mais especial (objetivamente)”. Ambas as crenças não podem ser verdadeiras ao mesmo tempo (se um for mais especial, o outro não é). É por isso que afirmar que todos são mais especiais do que todos é uma irracionalidade, e o egoísmo não se justifica, mesmo na forma universalizada[6].<br />
<br />
A terceira tentativa de justificar o egoísmo é apontar que a diferença moralmente relevante entre um caso e outro é a <i>motivação</i>. O egoísta afirma que, em relação ao seu próprio bem, sente-se motivado a fomentá-lo; já com relação ao bem dos outros, não se sente. É isso, no entender do egoísta, que justifica que ele considere apenas o seu próprio bem. O problema com esse argumento é que, para essa motivação ser uma diferença moralmente relevante, ela precisa ser racional. Ou seja, precisa haver uma razão (geral) que sustente que é adequado que ele se sinta motivado a fomentar apenas o seu próprio bem. Que razões poderiam ser endereçadas quando a esse ponto? Apenas as razões oferecidas anteriormente pelas defesas do egoísmo individual e do egoísmo universal. Como vimos, tais argumentos são péssimos (um é auto-refutante e o outro é culpado de irracionalidade). Então, o agente em questão não tem razões que sustentem a motivação exclusiva que tem, de fomentar apenas o seu próprio bem. Sua motivação deveria ser outra. O principal erro dessa tentativa de justificar o egoísmo consiste em confundir “o que quero fazer” com “o que devo fazer[7]”. O que se quer saber é “tenho justificativa para fazer somente o que me sinto motivado a fazer?”, ou ainda, “tenho razões para me sentir motivado apenas dessa maneira?”. Responder que “sim, porque é somente isso que me sinto motivado a fazer” é circular.<br />
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A partir do que foi exposto acima, temos então, boas razões para rejeitar o egoísmo. Essa rejeição envolve reconhecer um dos pilares centrais da ética: a imparcialidade. A imparcialidade é a noção de que cada um dos indivíduos a quem devemos considerar moralmente possui igual valor – ou seja, o de que o bem de cada um importa em igual medida; ninguém possui um <i>status</i> especial por ser o indivíduo que é. Assim como o raciocínio prudencial surge do reconhecimento de que um estágio particular da vida de um indivíduo não possui <i>status</i> especial (ele é apenas mais um entre outros), o raciocínio ético surge do reconhecimento de que nenhum indivíduo particular possui um <i>status</i> especial (cada um é apenas mais um entre outros). A noção de imparcialidade não deve ser confundida com a idéia de que devemos dar <i>tratamento igual</i> aos atingidos pela decisão. O ideal de <i>igual consideração</i>, na maioria das vezes, irá requerer tratamento diferente[8]. Isso se dá porque geralmente os indivíduos se encontram em níveis diferentes de sofrimento/felicidade: alguns estão muito bem, outros estão vivendo um verdadeiro inferno. O reconhecimento de que o sofrimento é intrinsecamente ruim e a felicidade é intrinsecamente boa, juntamente com o reconhecimento de que ninguém está intitulado a um <i>status</i> especial conduz à conclusão de que, quanto pior alguém está, maior deve ser a prioridade de seu atendimento (em termos de elevar o seu nível de bem-estar). Note que isso não significa dizer que <i>os indivíduos</i> que se encontram na pior situação possuem um status especial: se fossem outros indivíduos ocupando a pior situação, a prioridade deveria ser deles (essa é a essência da idéia de imparcialidade: que as razões morais sejam <i>impessoais</i>). A meta é que os bens (no caso, o bem da felicidade) sejam distribuídos de maneira <i>eqüitativa</i>: ou seja, dar mais a quem tem menos, e menos a quem tem mais, até que os resultados finais sejam igualitários. Contudo, a meta não é apenas essa, pois, se fosse, então uma situação seria automaticamente boa, desde que os níveis de bem-estar fossem igualitários, mesmo que todos estivessem numa situação <i>igualmente</i> ruim. A meta não é apenas atingir uma situação igualitária de bem-estar entre os indivíduos: é também que esse bem-estar individual seja o maior possível. Essa posição também surge do reconhecimento de que o sofrimento possui valor intrínseco negativo, e a felicidade valor intrínseco positivo. Então, faz sentido pensar que, quanto mais felicidade melhor, e quanto menos sofrimento melhor. Note que isso não é dizer que, desde que uma decisão maximize a felicidade e diminua o sofrimento, então que ela é moralmente correta. Como vimos, a maneira como uns indivíduos estão, comparativamente a outros (e também comparativamente ao que poderiam estar) é importante. Essa última consideração vêm do reconhecimento de que nenhum indivíduo têm um <i>status</i> especial.<br />
<br />
Na explicação acima, parti da idéia de que, dos indivíduos a quem devemos considerar moralmente, nenhum possui <i>status</i> especial. Agora temos de perguntar: “a quem devemos considerar moralmente?”. Ou seja: “qual a característica moralmente relevante para se saber quem deve ser moralmente considerado?”. Que característica é necessária que apresente determinada entidade para que seja um dever moral levá-lo em consideração, respeitá-lo? <br />
<br />
Uma resposta bastante comum a essa pergunta é dizer: “devemos respeitar todos os seres humanos”. Freqüentemente, os que se dizem defensores da igualdade se posicionam contrariamente ao racismo e ao sexismo, elegendo como critério de consideração moral o pertencimento à espécie <i>Homo sapiens</i> (“somos todos humanos”, é o lema freqüentemente pronunciado por tais defensores”). Na seqüência, explicarei por que esse critério (o especismo) é igualmente ruim, enquanto critério de consideração moral, em comparação ao racismo e ao sexismo. Todos esses critérios se baseiam em características moralmente irrelevantes. <br />
<br />
Para conseguirmos saber o que é relevante para respeitar alguém, temos de perguntar, em primeiro lugar: “por que alguém precisaria de respeito?”. Uma maneira de chegar até à resposta é imaginar uma situação onde não faria sentido prático o dever de respeitar alguém. Do que dependeria essa situação? Por exemplo, imagine que existam seres que são <i>invulneráveis</i>. Por invulneráveis, eu quero dizer que é impossível prejudicá-los, seja lá de que maneira. Seja lá o que for que tentemos com nossas decisões, é impossível causar um sofrimento sequer (físico ou psicológico) aos seres do exemplo fictício. Também é impossível diminuir-lhes a felicidade que lhes aguarda: toda e qualquer decisão nossa não conseguirá alterar a quantidade de felicidade que eles têm a desfrutar pela frente. Imagine também que esses seres nunca podem ser enganados: eles nunca acreditariam numa mentira; então, não poderiam ser prejudicados desta maneira. E, de nenhuma outra; seja lá o que for que tentássemos fazer. Num caso como esse, falar que temos o dever de respeitar tais seres não teria nenhuma utilidade prática, pois, seja lá o que for que fizéssemos, não seria possível alterar o seu bem individual, nem para mais, nem para menos. Esse exemplo fictício é importante para encontrarmos aquilo que é relevante para saber se alguém deve ser considerado moralmente: alguém precisa ser respeitado porque é <i>vulnerável</i> (o seu bem-estar pode ser alterado para melhor ou para pior) às nossas decisões práticas (sejam essas decisões ações ou omissões, haja vista que ambos os tipos de movimento implicam em alteração do bem-estar).<br />
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Das considerações abaixo, vimos que, da parte de quem toma a decisão, existem duas maneiras básicas pelas quais é possível um indivíduo ser prejudicado: ou prejudicamos um indivíduo diminuindo ou cessando (ou, permitindo que algo ou alguém diminua) o seu nível de bem-estar (incluindo o bem-estar a ser desfrutado no futuro), ou prejudicamos não aumentando (ou, permitindo que algo ou alguém não aumente) o seu nível de bem-estar (incluindo o bem-estar a ser desfrutado no futuro). Da parte do indivíduo a ser considerado, existem duas maneiras básicas nas quais é possível de ele ser prejudicado: por <i>inflição</i> de sensação ruim (sofrimento físico ou psicológico) ou por <i>privação</i> de satisfação (impedimento do prazer e da felicidade, por exemplo[9]). O primeiro tipo de dano explica onde está a razão principal para ser um erro moral causar (por ação ou omissão) sofrimento. O segundo tipo de dano explica onde está a razão principal para ser um erro moral (por ação ou omissão) assassinar (o indivíduo é privado de todo e qualquer desfrute no futuro). <br />
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São essas razões que tornam errado desrespeitar seres humanos. E, ao mesmo tempo, são essas razões que explicam o que há de errado com o racismo e o sexismo: a raça e o gênero de alguém são características moralmente irrelevantes para saber quem deve ser respeitado porque são características que não têm influência alguma nas possibilidades de alguém ser prejudicado por inflição ou privação. O problema, para os especistas, é que o fato de alguém pertencer a uma determinada espécie biológica (no caso, à espécie <i>Homo sapiens</i>) também é uma característica igualmente irrelevante com relação às mesmas possibilidades de prejuízo. O motivo pelo qual é errado torturar um bebê humano não é que ele é um ser humano. O motivo é que ele é possível prejudicá-lo por inflição de sofrimento. Os motivos que tornam errado assassinar esse bebê também não tem a ver com o fato de ele ser humano. O motivo principal é que ele será impedido de todo e qualquer desfrute no futuro (será prejudicado, ainda que não tenha consciência do prejuízo, pois estará morto). Qual a característica moralmente relevante, então, que um indivíduo tem que apresentar, para ser considerado moralmente? Já que a idéia de respeito só faz sentido onde há vulnerabilidade, e já que a vulnerabilidade depende de alguém poder ser prejudicado (por inflição de sensação ruim ou privação de sensação boa), a única característica que faz sentido exigir é que o ser em questão seja capaz de sensações (sofrer e desfrutar), ou seja, que seja <i>senciente</i>. Note que essas características dão iguais razões para se concluir que é igualmente errado prejudicar (por inflição ou privação) <i>todo e qualquer ser senciente</i>, independentemente de espécie, e não apenas humanos. Isso mostra que eleger como critério de consideração moral o pertencimento à espécie humana é se basear num critério tão moralmente imbecil quanto a raça, gênero ou número de letras no nome de alguém: nenhuma dessas características influi na possibilidade de alguém ser prejudicado. É por isso que especismo, racismo e sexismo são moralmente injustificáveis. A senciência não é mais um critério arbitrário como os mencionados acima, pois influi diretamente na possibilidade de alguém ser prejudicado por inflição ou privação – por isso, é uma característica moralmente relevante para saber quem merece consideração moral[10]. As considerações acima mostram que temos não apenas fortes razões para considerar moralmente os seres sencientes de outras espécies, mas que temos também fortes razões para dá-los <i>igual consideração</i> (ou seja, não atribuir um <i>status</i> especial a membros da espécie humana).<br />
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Tendo entendido que o critério da espécie é tão arbitrário quanto o da raça, gênero ou número de letras no nome, alguns defensores da idéia de que os seres sencientes de outras espécies não merecem igual consideração apontam para uma objeção. Alegam que não estão a dizer que deve-se respeitar apenas os seres humanos porque estes pertencem à espécie humana (o que seria um argumento circular), mas sim, devido a uma característica moralmente relevante que apenas os humanos possuem: são dotados de razão. “Somos todos racionais”, é o <i>slogan</i> dessa tentativa de defender a igualdade somente entre humanos. Eu poderia apontar aqui que tal argumento não serviria nem para defender a superioridade humana, porque é falso que todos os humanos sejam dotados de razão. Afinal de contas, os bebês, os idosos senis e portadores de determinadas doenças mentais são muito menos racionais do que qualquer cão normal, por exemplo. Contudo, se eu respondesse ao argumento dessa maneira, não poderia me opor a alguém que defendesse a igualdade apenas entre seres racionais (digamos, se esse alguém resolvesse excluir da consideração os humanos destituídos de razão e os seres sencientes de outras espécies). Então, essa resposta não explica o que há de errado com o critério da posse da razão, enquanto critério para saber quem merece respeito. <br />
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O que explica o que há de errado com o esse critério é o seguinte: ele reside numa confusão entre o que é relevante para saber quem merece respeito (a possibilidade de ser prejudicado, que, como vimos, depende da senciência) com o que é relevante para saber quem tem o dever de respeitar os outros (a posse da razão). A posse da razão é um critério relevante para saber quem tem o dever de respeitar os outros porque não faz sentido responsabilizar alguém pelas escolhas que faz se esse alguém não consegue raciocinar sobre essas escolhas. É por esse motivo que não faz sentido responsabilizar crianças muito pequenas, bebês, idosos senis, portadores de determinadas doenças mentais e seres sencientes não humanos, por exemplo. Mas, com relação ao que é relevante para se saber se alguém deve ser respeitado (a possibilidade de alguém ser prejudicado), a posse da razão não é necessária. É possível alguém ser prejudicado, por inflição de sensação ruim ou privação de desfrute sem ser capaz de raciocinar. Aliás, geralmente se dá o contrário: quanto menos capaz de razão alguém é, maior sua vulnerabilidade (porque não sabe defender seus direitos sozinho, por exemplo), então, a conclusão que deveria se seguir disso é que precisa de uma proteção ainda maior, e não, que podemos fazer com eles o que bem entendermos. É por esse motivo que se oferece maior proteção aos bebês do que aos adultos, por exemplo. Só que, se reconhecemos isso, temos de reconhecer o mesmo no caso dos seres sencientes de outras espécies: o fato de serem menos racionais do que nós (que os impede de reivindicar seus direitos) é uma razão para dar-lhes maior proteção, devido à sua maior vulnerabilidade.<br />
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As considerações acima nos mostram que existem fortes razões para darmos igual consideração a qualquer ser senciente, independentemente da espécie, raça ou gênero que ele pertence. Vimos também que a maior vulnerabilidade dos seres sencientes que possuem menor capacidade racional é uma razão para lhes oferecer maior proteção. Antes disso, vimos também que a igual consideração requer que se dê prioridade aos indivíduos que estão na pior situação, comparativamente a outros. Quanto maior o número de indivíduos em um nível de bem-estar muito ruim uma situação apresenta, maior a urgência moral em acabar com essa situação[11]. Essas considerações apontam que a situação na qual passam agora os seres sencientes de outras espécies deveria ser vista como prioritária[12]. Essa conclusão está de acordo com a exigência de imparcialidade: se fossem outros indivíduos no lugar desses indivíduos, a prioridade deveria ser deles. Quem sabe o que eles passam nas granjas industriais, na produção de ovos, leite e carne, ou nos outros setores nos quais são utilizados (são mutilados, queimados vivos, não podem se mover, tem os ossos quebrados, etc.), além do fato de todos eles serem assassinados, prontamente precisa reconhecer que eles são, de todos os indivíduos sencientes, os que estão na pior situação. Quem se libertou da ilusão proporcionada pela visão idílica da vida na natureza também reconhece que a situação na qual os seres sencientes viventes na natureza passam, devido aos próprios processos naturais, não é menos pior do que a das granjas industriais (se levarmos em conta o número de indivíduo em situação de sofrimento extremo, pode ser até pior): a maioria só tem sofrimento extremo e nada de desfrute desde o momento que nasce até o momento que morre (a maioria morre de inanição, por parasitismo, ou é predado[13]). Quem ainda não conhece essas realidades precisa conhecer. Não tenho espaço aqui para descrever detalhadamente essas realidades, mas, boas descrições detalhadas podem ser encontradas em outros artigos ou vídeos. E, para quem acredita que, no segundo tipo de caso, não temos dever de abolir tais danos, por serem danos naturais, é preciso dar uma olhada mais de perto nessa idéia, para ver se ela se sustenta após alguns minutos de análise crítica. Afinal de contas, não pensamos que é errado para nós nos medicarmos se estivermos sofrendo de um câncer, igualmente natural. Abordo essa questão mais detalhadamente em outros dois artigos[14]. O reconhecimento de que existem algumas situações piores do que outras e alguns indivíduos numa situação muito pior do que a de outros mostra que a conclusão de que “quando se escolhe uma causa para lutar, todas são igualmente válidas” é moralmente errada. O que a imparcialidade requer é que se dê prioridade a quem está na pior situação, independentemente de quem estiver nessa pior situação. Não temos apenas o dever de não contribuir com essas situações; temos o dever de erradicá-las.<br />
<br />
Fora essas implicações, a conclusão que se segue é que, mesmo que fosse verdade que os seres sencientes de outras espécies valessem menos do que os humanos, ainda assim teríamos que mudar radicalmente nossos hábitos. Por exemplo, supondo que fosse errado causar danos aos seres sencientes de outras espécies apenas quando o interesse humano fosse fútil, ainda assim teríamos que abolir, por exemplo, o seu uso como comida. Como sabemos, a produção de ovos, leite e carnes provoca extremos de sofrimento e mortes. Como vimos, sofrimento e morte são danos graves para os seres sencientes, pois o primeiro inflige sensação muito ruim e o segundo impede totalmente o desfrute. O interesse humano em questão, que compete com esses interesses básicos (não sofrer e desfrutar) é um interesse fútil: o gosto por uma comida específica. Já que podemos viver com outro tipo de comida menos danosa (comida vegana), teríamos o dever de abolir o uso de animais como comida mesmo que estes valessem bem menos do que os humanos. Mas, a verdade, como vimos com a argumentação desenvolvida durante todo o artigo, é que temos fortes razões para acreditar que os seres sencientes de outras espécies possuem igual valor, o que gera em nós o dever moral de aumentar o seu bem-estar até que eles estejam tão bem quanto possível (e, se possível, cada vez mais). Então, as implicações de tudo isso são muito mais radicais do que abolir o seu uso enquanto recursos. Isso é só o começo, o mínimo que qualquer pessoa moralmente decente faria. A igual consideração vai muito mais longe do que isso.<br />
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Notas:<br />
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[6] Essa argumentação contra o egoísmo pode ser encontrada mais detalhada em NAGEL, Thomas. <i>The Possibility of Altruism</i>. New Jersey: Princeton University Press, 1970, capítulos IX - XIV. Também pode ser encontrada em MURCHO, Desidério. Como não Compreender a Moral. In: <i>Crítica na Rede</i>. 01/12/2009b. Disponível em: <a href="http://criticanarede.com/html/pensamentomoral.html">http://criticanarede.com/html/pensamentomoral.html</a><br />
<br />
[7] Essa confusão é criticada em MURCHO, Desidério. Ética e Direitos Humanos. In: <i>Crítica na Rede</i>. 27/11/2009a. <br />
Disponível em: <a href="http://criticanarede.com/html/valoresrelativos.html">http://criticanarede.com/html/valoresrelativos.html</a><br />
<br />
[8] Cf. SINGER, Peter. <i>Ética Prática</i>. 3 ed. Trad. Jefferson L. Camargo. São Paulo. Martins Fontes, 2002, p. 32.<br />
<br />
[9] Essas duas modalidades básicas de dano são melhor desenvolvidas em REGAN, T., <i>The Case for Animal Rights</i>, 2nd ed, Los Angeles: University of California Press, 2004, pp. 87-103.<br />
<br />
[10] Para uma defesa do critério da senciência, ver HORTA, Oscar. Por qué la Capacidad de Sufrir y Disfrutar es lo Importante. In: <i>Ética Más Allá de la Espécie: La Consideración Moral de los Animales no Humanos</i>, 2009. <a href="http://masalladelaespecie.wordpress.com/2009/11/20/la-capacidad-de-sufrir-y-disfrutar/">http://masalladelaespecie.wordpress.com/2009/11/20/la-capacidad-de-sufrir-y-disfrutar/</a><br />
<br />
[11] Para uma análise da questão da prioridade, ver HORTA, Oscar. Questions of Priority and Interspecies Comparisons of Happiness. In: <i>Ética mas Allá de la Espécie: La Consideración Moral de los Animales no Humanos</i>. 2010. <a href="http://masalladelaespecie.files.wordpress.com/2010/05/questions_priority_interspecies.pdf">http://masalladelaespecie.files.wordpress.com/2010/05</a><a href="http://www.blogger.com/blogger.g?blogID=1743587667987089964">/questions_priority_interspecies.pdf</a>.; Id. Igualitarismo, igualatión a la baja, antropocentrismo y valor de la vida. In: <i>Revista de Filosofía da Universidad Complutense de Madrid</i>. Vol. 35 Núm. 1 (2010), pp. 133-152, ISSN: 0034-8244.<br />
<br />
[12] Os dados da FAO (2010) apontam que entre 55.000 e 60.000 milhões de mamíferos e aves são mortos por ano mundialmente. Cf. FAO – Food and Agriculture Organization of the United Nations (2010): “Livestock Primary”, FAO Statistical Database, <a href="http://faostat.fao.org/site/569/default.aspx#ancor">http://faostat.fao.org/site/569/default.aspx#ancor</a> [visitado o 26 de outubro de 2010]. Nesse tipo de cálculo, não é computado o número de peixes, que são a imensa maioria dos animais mortos por humanos. Segundo Mood e Brooke (p. 9), o número de peixes capturados poderia oscilar entre 0,97 e 2,74 trilhões. Cf. Mood, Alison e Brooke, Phil (2010): “Estimating the Number of Fish Caught in Global Fishing Each Year”, Fishcount.org.uk, <a href="http://www.fishcount.org.uk/published/std/fishcountstudy.pdf">http://www.fishcount.org.uk/published/std/fishcountstudy.pdf</a> [visitado o 18 de outubro de 2010].<br />
<br />
[13] Para um crítica à visão idílica da natureza, ver HORTA, Oscar. Debunking the Idyllic View of Natural Processes: Population Dynamics and Suffering in the Wild. In: <i>Télos</i>, vol. 17, 2010, 73–88, Allan Dawrst nos lembra que o número de animais utilizados por humanos some frente ao número de animais padecendo de danos naturais. Cf. DAWRST, Alan, “How Many Animals are There?”, <i>Essays on Reducing Suffering</i>, 2009a; Id, “The predominance of wild-animal suffering over happiness: An open problem”. <i>Essays on Reducing Suffering</i>, 2009b, <a href="http://www.utilitarian-essays.com/wild-animals.pdf">http://www.utilitarian-essays.com/wild-animals.pdf</a>.<br />
<br />
[14] Cf. CUNHA. Luciano C., O Princípio da Beneficência e os Animais Não Humanos: Uma Discussão Sobre o Problema da Predação e Outros Danos Naturais. In: <i>Agora: Papeles de Filosofia</i>, Vol. 30, N. 2, 2001. ISSN 0211-6642. Cf. CUNHA, Luciano C., Sobre Danos Naturais. In: <i>Ética mas Allá de la Espécie: La Consideración Moral de los Animales no Humanos</i>, 2011. <a href="http://masalladelaespecie.files.wordpress.com/2011/01/luciano-carlos-cunha-sobre-danos-naturais.pdf">http://masalladelaespecie.files.wordpress.com/2011/01/luciano-carlos-cunha-sobre-danos-naturais.pdf</a><br />
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<br />Luciano Carlos Cunhahttp://www.blogger.com/profile/11543323145219198300noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-1743587667987089964.post-6613070874312557912013-01-17T01:32:00.001-08:002013-01-17T02:07:43.999-08:00IGUALDADE SENCIENTE - parte 2<h3 class="post-title entry-title" itemprop="name">
VERDADE, RAZÃO, JUSTIFICATIVA EM ÉTICA E OS SERES SENCIENTES</h3>
Luciano Carlos Cunha [1]<br />
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PARTE 2: Como a pretensão de objetividade é inescapável em qualquer juízo moral e o papel da razão em avaliar esses juízos.<br />
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Antes de iniciar, gostaria de esclarecer o que entendo pelos termos “ética” e “moral”, com vistas a evitar confusões de ambigüidade muito comuns. Muitas vezes, os termos ética e moral são utilizados como sinônimos; outras vezes não. No que se segue, utilizarei os dois termos como sinônimos, porque, segundo entendo, a confusão consiste não na questão sobre se esses termos são sinônimos ou não, mas o que se quer referir com cada um deles: a <i>crenças</i> ou à <i>verdade</i>. Muitas vezes, a palavra ética é utilizada para <i>descrever as crenças</i> de alguém sobre as decisões práticas (o que alguém acredita que não se <i>deve</i> e o que se <i>deve</i> fazer; o que é <i>opcional</i> fazer, etc.). Por exemplo, isso acontece quando se diz: “a ética de fulano permite fazer x”; ou seja, como significando a mesma coisa que “fulano <i>acredita</i> que é correto fazer x”. Contudo, às vezes a palavra “moral” também é utilizada nesse mesmo sentido: “a moral de fulano permite fazer x”; ou seja, como significando que “fulano acredita que é correto fazer x”. Chamarei esse uso de <i>sentido descritivo</i> (descreve aquilo que as pessoas acreditam – as crenças - sobre ética/moral) dos termos “ética” e “moral”. O outro sentido comum em que se utiliza essas palavras não é descritivo (não descreve o que as pessoas ou sociedades acreditam que se deve ou não fazer), mas <i>avaliativo</i>: se está a fazer um juízo de valor sobre o que se deve ou não fazer; o que é opcional, etc. Esse é o sentido primário, <i>valorativo</i>, dos termos ética/moral. O outro sentido é só uma descrição sobre o que as pessoas acreditam que seja a verdade em ética/moral (ou seja, o que elas acreditam que seja a resposta correta para o sentido valorativo). Um sentido refere-se à verdade; o outro refere-se ao que as pessoas acreditam que seja a verdade. Por exemplo, quando se fala, no sentido valorativo: “fazer x é imoral (ou, anti-ético)”; se está dizendo a mesma coisa que “não deve-se fazer x”; “existem boas razões para não se fazer x”. Quando se fala “x é ético (ou, moral)”, está a se dizer “deve-se fazer x”; “existem boas razões para fazer x”. Inclusive quando se fala “tudo é moralmente (ou eticamente) opcional”, se está a exprimir o que se pensa ser a verdade sobre ética/moral: que todas as decisões são igualmente válidas. Para evitar a confusão entre os sentidos de descrição de crença e de julgamento sobre a verdade dos termos ética/moral, utilizarei um “(c)” para o primeiro (crenças) e “(v)” para o segundo (verdade). Fazendo essa distinção, o aparente paradoxo de afirmações do tipo “a ética/moral de fulano não é ética/moral” desaparece, pois o que se está a dizer é que “a ética/moral(c) de fulano - ou seja, o que fulano acredita ser ético/moral(v) – não é ética/moral(v)”. Tudo o que se quis dizer com essa afirmação é que alguém está enganado ao pensar que determinada coisa é certa, errada, opcional, etc. <br />
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O que se quer descobrir no raciocínio moral(v)? É importante perceber que o raciocínio moral é um tipo de raciocínio valorativo. O que se quer descobrir é o que devemos fazer, o que não devemos fazer, e o que tanto faz se fizermos ou não. Separarei essas questões em duas categorias: (1) <i>moralmente obrigatório</i>: inclui o que não se deve fazer (um dever <i>negativo</i>); e o que deve-se fazer (um dever <i>positivo</i>) e; (2) <i>moralmente</i> <i>opcional</i>: tanto faz se fizermos ou não. Com relação à primeira categoria, diz-se que algo é um dever negativo se existirem melhores razões para não fazê-lo (fazê-lo é um mal e não fazê-lo é um bem) e diz-se que algo é um dever positivo se existirem razões para fazê-lo (fazê-lo é um bem e não fazê-lo é um mal). Com relação ao moralmente opcional, fazê-lo ou não fazê-lo é igualmente neutro. Note que cada uma dessas razões, se existirem, dependem do conceito de valor (note a referência a algo ser um bem e ser um mal). Atentando para essa particularidade, é possível perceber que algo ser um dever negativo, dever positivo ou moralmente opcional dependerá não somente do valor embutido em cada uma das situações, mas da comparação entre as <i>opções de decisão</i> disponíveis para o agente. Se o agente tem, diante de si, várias opções e todas são igualmente boas (ou todas são igualmente ruins), escolher qualquer uma delas é igualmente opcional. Se o agente tem, diante de si, várias opções e <i>algumas</i> delas são <i>igualmente</i> as melhores, comparativamente às outras, escolher <i>alguma das melhores</i> é igualmente opcional; escolher <i>qualquer outra</i> é um dever negativo. Se só há uma opção melhor do que as outras, escolhê-la é um dever positivo. <br />
<br />
Como veremos na seqüência, são essas <i>razões objetivas</i> (que dependem do valor) que tornam uma decisão moralmente obrigatória e outras moralmente opcionais que os perspectivistas morais negam a existência. Antes de oferecer os argumentos centrais contra o perspectivismo moral, cabe salientar o que o raciocínio moral <i>não é:</i> <i>descritivo</i>. O que se quer descobrir não é o que as pessoas <i>acreditam que seja </i>(remete crenças) moralmente obrigatório e moralmente opcional. O que se quer descobrir é se existem decisões que <i>são</i> (remete à verdade) moralmente obrigatórias e moralmente opcionais, e como diferenciá-las. <br />
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Devido ao domínio da moralidade ser essencialmente normativo, qualquer argumento com vistas a provar que a ética é perspectivada (relativa, subjetiva) que se baseie na confusão entre os domínios normativo e descritivo está fadado ao fracasso. E, não são poucos os argumentos que padecem dessa confusão. Muitas vezes, quando se fala “não existe verdade em ética”, o que se quer dizer, na realidade, é: que as crenças das pessoas (ou das sociedades como um todo) divergem sobre o que é certo e errado fazer. O fato de haver divergência sobre certo e errado não mostra que todas as visões morais são igualmente plausíveis, assim como as divergências sobre qualquer outro assunto não mostram que as visões em questão são igualmente plausíveis. Se alguém replicar, alegando que “em ética, a coisa é diferente”, precisa oferecer outro argumento para explicar por que com a ética é diferente; apontar que há discordância não mostra o que há de diferente com a ética, haja vista haver discordância em qualquer assunto. O erro desse argumento é fazer uma constatação descritiva (“as crenças sobre o que é certo divergem”) e pensar que essa constatação sustenta um salto lógico para uma conclusão normativa (“todas essas crenças são igualmente corretas”). Esse é o erro conhecido como falácia naturalista (saltar de uma premissa descritiva para uma conclusão de valor). Supondo que o perspectivista se revele, no fundo um cético moral, e afirme que o que quer dizer, na verdade, é que ninguém tem conhecimento total sobre o que é certo e errado, ou que certas decisões são muito difíceis de se encontrar a resposta. Contudo, o fato de ninguém ter conhecimento total sobre o que é certo e errado não prova que não há verdade moral (aliás, tal afirmação depende da existência de verdade moral); o fato de que certas questões serem difíceis de responder não mostra que não existe uma resposta objetiva sobre elas (mostra apenas que talvez não tenhamos chegado a essa resposta ainda). Nenhuma dessas alegações serve como base para sustentar a tese contra a objetividade da ética, da mesma maneira que a presença dos mesmos problemas (discordância de posições, questões difíceis, ninguém ter todo o conhecimento sobre a área, etc.) não depõe contra a objetividade da matemática ou das ciências empíricas. Aliás: a verdade nesses domínios (e também na ética, como pretendo mostrar) independe de quaisquer crenças. Assim como haver grande discordância sobre um assunto não prova que não existe verdade sobre esse assunto, o fato de todos concordarem com uma conclusão não prova que ela é verdadeira. A verdade tem de ser buscada em outro lugar, que não no fato de haver discordância ou concordância, pois, como mencionei antes, a verdade não é estatística nem consensual (porque a verdade é independente das crenças).<br />
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Outro exemplo de argumento que visa sustentar o perspectivismo moral (relativismo ou subjetivismo) que padece da confusão entre o domínio normativo e descritivo são os conhecidos exemplos de <i>falácia genética</i>. A falácia genética consiste em confundir a explicação sobre o surgimento de algo (no caso, sobre o surgimento de uma crença, uma determinada conclusão, uma teoria, etc.) com sua justificação ou “des” justificação. Ou seja, é comum se tentar mostrar que uma determinada conclusão é justificada ou injustificada explicando como é que as pessoas que nela acreditam chegaram até ela. No caso específico, os relativistas morais comumente afirmam: “você só tem os valores que têm porque nasceu na sociedade em que nasceu; tivesse nascido em outra, acreditaria em coisas diferentes”. Por exemplo, diriam que eu acredito no valor da igualdade porque nasci numa sociedade que possui valores igualitários, mas que acreditaria no valor das castas se tivesse nascido numa sociedade de castas. A partir disso, defendem a conclusão de que a verdade objetiva em ética não existe. Esse argumento não funciona porque mesmo que fosse verdade o que ele afirma em termos de descrição (que eu teria outros valores se tivesse nascido em outro tipo de sociedade, com outros valores), isso não prova que todos esses valores são igualmente plausíveis. Supondo que seja verdade que, se eu tivesse nascido numa sociedade de castas, eu defenderia as castas como moralmente corretas. Essa constatação não serve para sustentar a tese de que, então, defender a igualdade ou as castas é igualmente plausível. Isso porque considerações sobre o que eu <i>acredito</i> ou o que eu <i>acreditaria</i> são apenas <i>descrições</i> sobre minhas <i>crenças</i>, e não, fundamentações sobre juízos de valor. O domínio descritivo não possui poder para tirar conclusão nenhuma sobre questões normativas. Eu me perguntaria, após ouvir esse argumento: “e agora, devo defender a igualdade, as castas ou é tudo moralmente opcional?”. Dizer que eu defenderia uma coisa se tivesse nascido numa sociedade x e outra se tivesse nascido na y não ajuda em nada a responder essa pergunta. Não oferece nenhuma razão para se pensar que a igualdade é melhor do que as castas, nem que as castas são melhores do que a igualdade, e nem mesmo que ambas são igualmente plausíveis. A resposta para essa pergunta (saber se uma opção é melhor do que a outra, o que tornaria escolher uma um dever positivo e rejeitar a outra um dever negativo; ou se ambas são igualmente boas, o que tornaria a escolha moralmente opcional) tem de vir do próprio domínio normativo, não do descritivo. Quando pensamos moralmente, não queremos descobrir o que <i>faríamos</i>, nem o que faz com que tenhamos os valores que temos, e sim, o que <i>devemos</i> fazer, que valores <i>devemos</i> ter (mesmo quando se responde “qualquer um que se queira”, a resposta surge de crenças sobre o domínio normativo, não do descritivo). <br />
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Existem outros argumentos em defesa do perspectivismo moral (relativismo, subjetivismo) que também são culpados de falácia genética, mas não envolvem suposições sobre que valores alguém teria se tivesse nascido em outra sociedade. Por exemplo: (1) “o altruísmo não vale nada; você é altruísta porque se sente feliz com isso ou porque tira vantagem disso”. Mesmo que o agente só fosse altruísta porque se sente feliz com isso ou porque tira vantagem disso (ou seja, mesmo que isso explique a motivação que dá origem ao altruísmo naquela pessoa), isso não mostra que o altruísmo não vale nada (não mostra que não há justificativa para o altruísmo). Ou ainda, (2) “O surgimento da moralidade se deu por motivos mesquinhos (‘eu não bato em você, e você não me bate’); logo, só temos razões para respeitar alguém se ele tiver poder de nos ameaçar”. Mesmo que fosse verdade que o surgimento da moralidade se deu com esse tipo de motivação (explicou a origem de algo), isso não mostra que, então isso foi certo naquela época e é certo agora (não justifica esse algo).<br />
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Tendo desfeito essas confusões, precisamos olhar agora para a reivindicação envolvida no perspectivismo moral: que não é possível um critério objetivo (razões), para dizer que um valor é melhor do que outro. Existem dois tipos principais de perspectivismo moral. Um deles é o <i>relativismo</i> moral. O relativismo moral afirma que não existem julgamentos de valor objetivamente válidos, mas, apenas, válidos dentro de uma sociedade. O outro é o <i>subjetivismo</i> moral. O subjetivismo moral afirma que não existem julgamentos de valor objetivamente válidos, mas, válidos apenas para cada pessoa individualmente.<br />
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Endereçarei agora o que considero as principais objeções a esse tipo de perspectiva. O primeiro problema com esse tipo de perspectiva é que, tanto o relativismo quanto o subjetivismo moral só fazem sentido sob um pano de fundo <i>objetivo no domínio ético</i> (e não apenas, como uma reivindicação objetiva <i>sobre</i> o domínio ético). Ou seja, o que quero dizer é que essas posições contém embutidas nelas reivindicações <i>morais</i> (reivindicações sobre o que se deve ou não fazer, o que é opcional, etc.) ocultas que pretendem ser <i>objetivamente válidas</i>. Isso acontece não por um “defeito” dessas teses (ainda que, devido ao tipo de tese que são, isso é <i>também</i> um defeito), mas porque é impossível não fazê-lo. Analogamente ao que foi mencionado sobre as idéias de verdade e razão (onde é impossível nos situarmos em um ponto “de fora”, onde seja possível pensar alguma coisa sem pressupor a validade das idéias de verdade e razão), defendo que é impossível falar algo sobre moralidade sem, ao mesmo tempo, fazer um juízo sobre o que é moralmente obrigatório ou moralmente opcional (ainda que o juízo, no final das contas, afirme que <i>tudo</i> é moralmente opcional, como discutiremos na seqüência). Isso porque, também não é possível nos situarmos em um ponto neutro, “de fora” quando falamos sobre que decisão tomar. <br />
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O que quis mencionar com a alegação acima é que as visões perspectivistas da ética (relativismo e subjetivismo) sugerem (ao mesmo tempo que negam), ainda que de maneira oculta, um critério objetivo para se decidir questões morais. Quando, por exemplo, o relativismo diz que “a ética é relativa à cada sociedade”, na verdade sub-entende o seguinte: “Quer saber o que deves fazer? Pergunte o que a sociedade em que você está acredita que deve ser feito”. Note que isso é a sugestão de um critério objetivo para decidir (um critério que não pretende ser, ele mesmo, uma mera construção social). O relativismo moral incorpora, de maneira oculta, as noções de moralmente opcional e moralmente obrigatório. Por exemplo, de acordo com o relativismo moral, é moralmente obrigatório concordar com os valores da sociedade na qual se está. Já quando, por exemplo, o subjetivismo diz “a ética é relativa às crenças e cada um”, o que se quer dizer, na verdade, é “qualquer decisão é igualmente plausível”, ou “Queres saber o que deves fazer? Faça qualquer coisa que quiseres”, ou ainda “Queres saber o que deves fazer? Faça qualquer coisa que achas que deve ser feito”, ou, em outras palavras, que “todas as decisões são moralmente opcionais”. Os dois tipos de visões sugerem, então, critérios objetivos para se responder as questões morais: uma sugere como critério as crenças das diferentes sociedades (relativismo moral); o outro sugere como critério as crenças dos diferentes indivíduos (subjetivismo moral).<br />
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Vimos que o relativismo incorpora as noções de moralmente obrigatório e moralmente opcional (tanto é, que torna errado discordar dos valores da sociedade na qual alguém se encontra). Já o subjetivismo afirma que <i>todas</i> as decisões são moralmente opcionais (segundo o subjetivismo, então, não é errado discordar dos valores da sociedade... embora também, segundo essa mesma visão, não seja errado a sociedade fuzilar quem discorda dos valores dela). Temos de perguntar, com relação ao relativismo, o seguinte: “por que sugerir como critério objetivo para saber o que devemos fazer as crenças sobre o que devemos fazer da sociedade em que estamos?”. Por que se basear nisso e não em qualquer outra coisa? Basear-se nas crenças da sociedade para obter a resposta correta sobre ética só faria sentido se os que constróem os valores das sociedades tivessem todo conhecimento moral do mundo. Mas, é exatamente isso que o relativismo nega. Eleger como critério de decisão sobre o que é certo e errado as crenças da sociedade só faria sentido se a sociedade jamais se enganasse (e se existirem verdades morais às quais os que constróem os valores das sociedades, e somente eles, tivessem acesso direto – que, ironicamente, é isso que o relativismo nega que exista). Mas, faz sentido discordar das decisões práticas da sociedade, não faz? Aliás, é essa a conclusão que se seguiria logicamente, se fosse verdade que todos os valores são meras construções sociais, desprovidas de razões a seu favor. <br />
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Alguém poderia pensar que isso nos conduziria ao subjetivismo moral. Porém, com relação ao subjetivismo, o mesmo tipo de problema é pior ainda. Faz sentido fazer a mesma pergunta: “por que escolher como critério para descobrir o que devemos fazer as crenças sobre o que cada um acha que devemos fazer?”. Ora, tal critério só estaria correto se todas essas crenças fossem <i>igualmente</i> plausíveis. Mas, o que é pior, isso gera um problema para o subjetivismo: se absolutamente <i>tudo</i> (todas as nossas decisões possíveis) é moralmente opcional, então também é moralmente opcional tratar aquilo que é moralmente opcional como moralmente obrigatório ou tratá-lo como moralmente opcional. Assim, por exemplo, de acordo com o subjetivismo, escolher que cor de camiseta utilizar é moralmente opcional, mas, também colocar uma bomba em alguém ou estuprar também é. Note que, de acordo com o subjetivismo, se alguém tratar a escolha pela cor da camiseta como moralmente obrigatório (digamos, alguém resolve fuzilar todos que não usarem roupa lilás), então que isso também é moralmente opcional e a pessoa não comete nada de mal ao fazer isso. Então, se também é moralmente opcional afirmar que algumas coisas são moralmente opcionais e outras moralmente obrigatórias, que sentido tem em se dizer que tudo é moralmente opcional? O subjetivista teria de dizer que aqueles que negam que nem tudo é moralmente opcional estão igualmente certos. O subjetivista teria de dizer que aqueles que afirmam que “é falso que é tudo muito subjetivo em ética” estão, com relação às decisões morais que tomam, tão certos quanto os que aceitam o subjetivismo. Assim, na melhor das hipóteses, o subjetivismo é uma posição “nula”, que não oferece nenhuma razão a seu favor. Isso porque a idéia de algo moralmente opcional só faz sentido em comparação ao moralmente obrigatório. Dizer que fazer x é moralmente opcional automaticamente implica em dizer que qualquer agente têm obrigação moral de permitir que se faça x e de não obrigar a se fazer x. É por isso que não tem sentido prático afirmar que “<i>tudo</i> é moralmente opcional”.<br />
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O subjetivista poderia objetar, nesse ponto, que defende que todas as decisões morais são igualmente plausíveis justamente por não haver um critério objetivo que possa nos dizer quais são melhores que quais. É sobre esses critérios que vou passar a falar agora. Comecemos por notar que o subjetivismo elege como critério para cada um descobrir o que <i>deve</i> fazer as próprias <i>crenças</i> de cada um <i>sobre o que deve-se fazer</i>. Há alguma coisa muito errada nisso tudo. E o erro é que o subjetivismo não leva em conta as <i>razões pelas quais</i> as pessoas acreditam que devem fazer algumas coisas, que não devem fazer outras, que outras são moralmente opcionais, etc (não faz sentido que a razão seja a própria crença da pessoa, pois, dessa maneira, não haveria motivo para a pessoa possuir tal crença). O subjetivismo não leva em conta, por exemplo, a diferença básica que faz com que escolher qual cor de roupa vestir seja igualmente opcional e que seja um dever não estuprar: não existirem razões para se preferir esta ou aquela cor, mas o sofrimento e outros danos para a vítima serem uma boa razão para se pensar que estuprar é um mal. Nesse ponto, ressurgiria a objeção perspectivista, da mesma maneira que surgiu com relação aos princípios básicos da razão. Ou seja, alegaria-se que, mesmo que fôssemos oferecer razões para sustentar uma conclusão moral, teríamos de apelar a um princípio moral mais básico e menos controverso. Só que, se alguém perguntasse o que sustenta esse princípio, teríamos de justificá-lo com base em outro ainda mais básico e menos controverso, e assim por diante. Segundo a objeção perspectivista, se fizéssemos essa pergunta, no final das contas descobriríamos que o princípio básico que sustenta todas as outras conclusões é um mero sentimento de aprovação diante de algumas coisas e de desaprovação diante de outras. Esse sentimento, segundo essa perspectiva, não estaria aberto à avaliação racional. E, já que existem sentimentos básicos de fundação moral conflitantes, não há como dizer qual deles está correto (e, mesmo que houvesse concordância quanto a esse sentimento, não haveria como dizer que alguém <i>deve</i> ter esse sentimento, para quem não o tivesse); assim conclui o argumento perspectivista. Penso que esse argumento, que tem origem no pensamento do filósofo David Hume, é o melhor argumento em defesa do perspectivismo. Contudo, mesmo esse argumento tem sérios problemas. O maior deles é inverter a relação das coisas: não é que as pessoas têm certos sentimentos aleatórios de aprovação ou desaprovação moral diante de algumas coisas e depois consideram essas coisas moralmente certas ou erradas, respectivamente; mas, ao invés, que temos os sentimentos morais que temos diante de determinadas coisas porque já fizemos anteriormente um julgamento moral sobre elas, com base em outras razões que são independentes dos sentimentos. Ou seja, temos os sentimentos morais que temos porque concluímos que algumas são justificáveis (possuem boas razões a seu favor) e outras não. E, o que quero apontar na seqüência, é que essas razões não dependem dos sentimentos dos agentes. Embora seja verdadeiro que, como toda justificação, a justificação moral precisa ter início em princípios que não podem ser justificados com base em outros (porque eles são os mais básicos possíveis), nem por isso deve-se pensar que esses princípios são mera particularidade de quem os professa, como um gosto pessoal por uma determinada cor, por exemplo. Devemos aceitar tais princípios como racionais simplesmente por não haver nenhuma boa razão para duvidar de sua validade, como pretendo mostrar a seguir.<br />
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Gostaria de começar mostrando como é que geralmente se raciocina sobre questões morais. Essa forma de raciocínio está implícita mesmo quando pensamos intuitivamente (de maneira não formalizada) sobre uma questão moral. Supondo que alguém defenda a seguinte conclusão moral: “Comer carne é errado”. O argumento que sustenta essa conclusão poderia ser algo como o seguinte: (1) É errado causar morte e sofrimento desnecessariamente (premissa de valor); (2) Comer carne causa morte e sofrimento desnecessariamente (premissa factual); (3) Logo, comer carne é errado. Como os raciocínios morais são aplicações de princípios morais (a premissa de valor, no caso) a casos reais, o raciocínio moral sempre dependerá, em algum grau, de constatações sobre os fatos (a premissa factual). Assim, mesmo que fosse verdade que todo princípio de valor fosse igualmente válido (e é isso que pretendo negar na seqüência), ainda assim haveriam outras duas maneiras de alguém cometer um erro moral (em termos objetivos): ou alguém faz uma análise factual ruim (ou seja, a premissa factual na qual se baseia é falsa), ou, mesmo que se faça uma boa análise factual, ainda assim alguém poderia cometer um erro de lógica na hora de derivar a conclusão. Um exemplo do primeiro tipo de erro (factual), seria o seguinte argumento: (1) É errado causar dano a seres sencientes (premissa de valor); (2) Tijolos são seres sencientes; (3) Logo, é errado quebrar tijolos. Nesse caso, a conclusão é falsa porque a segunda premissa (factual) é falsa, e não devido ao princípio de valor que parte (como defenderei mais adiante, esse princípio está correto), e nem devido ao tipo de inferência que se fez (se as duas premissas fossem verdadeiras, então a conclusão seria verdadeira). Já um exemplo do segundo tipo de erro (de lógica), seria o seguinte argumento: (1) É errado causar dano a seres vivos; (2) Animais e plantas estão vivos; (3) Logo, é correto comer animais e plantas. Nesse caso, o erro é de lógica porque, mesmo que, com certeza, as duas primeiras premissas <i>fossem</i> verdadeiras (tanto a de valor quanto a factual), elas não suportam a conclusão (na verdade, as premissas sugerem o contrário da conclusão, pois a conclusão lógica seria a de que, então, é <i>errado</i>, e não, correto, comer esses seres).<br />
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Defenderei agora que também é possível cometermos um erro na primeira premissa (premissa de valor moral). Para entender como isso é possível, é preciso entender outras duas características importantes do raciocínio moral: <i>coerência</i> e <i>relevância</i>. Falarei primeiro da coerência, embora ela seja menos importante, e ela sozinha não consiga mostrar se há erro ou não com a premissa de valor (e nem com cada decisão específica). O que me refiro por coerência, em termos de pensamento moral, é que um agente siga a exigência de <i>tratar casos relevantemente similares de maneira similar</i>. A idéia é que um agente aplique um princípio moral não apenas a um caso específico (afinal de contas, se ele é um princípio, não ajudaria muito se só servisse para um caso específico), mas, a vários casos que mantenham entre si, as mesmas características que o princípio indica que sejam moralmente relevantes. Assim, uma maneira de errar (objetivamente!) em ética é por tratar de maneira diferente casos que são similares em tudo o que for relevante para saber como devemos tratá-los, ou vice-versa (tratar de maneira similar casos que possuem diferenças moralmente relevantes). Minha ressalva quanto à importância da exigência de coerência, em termos de descobrir qual a decisão correta, é que, se tal exigência sozinha tivesse esse poder, então a moralidade se trataria apenas de escolher aleatoriamente um princípio qualquer e, desde que se julgasse os outros casos coerentemente de acordo com ele (de acordo com o que ele <i>diz que é</i> relevante), então estaria garantido que as decisões estariam todas justificadas. Mas, a coisa não é assim. Faz sentido criticar alguém por aplicar um critério, mesmo que a aplicação seja coerente. Faz sentido porque o critério mesmo pode ser imbecil (pode ser basear numa característica irrelevante para o que está em jogo, pensando ser relevante). Só faz sentido cobrar coerência a um bom princípio. A exigência de coerência não possui o poder de mostrar o que é moralmente relevante e o que não é. Então, ela sozinha não consegue avaliar um princípio de valor (embora seja importante no sentido de exigir que se aplique coerentemente um <i>bom </i>critério).<br />
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Por exemplo, supondo que eu sou um médico e preciso escolher qual dos meus pacientes deve receber prioridade no atendimento. Supondo que o critério que eu escolha para construir o princípio moral que vou seguir é esse: pacientes com exatamente seis letras no primeiro nome recebem atendimento prioritário; com mais de seis letras recebem atendimento depois, e com menos de seis letras são largados para morrer. Suponha que eu seguisse coerentemente esse critério: que realmente desse prioridade a todo e qualquer paciente com exatamente seis letras no nome, e realmente atendesse depois os que têm mais letras no nome, e que realmente deixasse para morrer todos os que têm menos de seis letras. Minha decisão foi moralmente correta só porque foi coerente com o princípio que adotei para guiar a decisão? Não, exatamente porque escolhi um mau critério. E, é possível explicar o motivo pelo qual esse é um critério ruim: ele se baseia numa característica (o número de letras no nome) que é irrelevante para o dilema moral em questão. “Como saber o que conta como uma característica moralmente relevante e o que não conta?”, perguntaria o perspectivista. A resposta depende da seguinte pergunta: “<i>o que há</i> naquela situação específica que faz com que ela seja um problema moral?”. Na questão da prioridade no atendimento, por exemplo, poderíamos listar o dano causado pela morte, pelo sofrimento, a falta de recursos para atender a todos ao mesmo tempo, a maior ou menor vulnerabilidade de uns ou de outros, etc. Com certeza, o número de letras no nome não seria uma dessas características que tornam aquela questão um dilema moral. Portanto, alguém que seguisse um princípio moral baseado numa característica assim teria escolhido o princípio errado, objetivamente errado. Note que eu até poderia acertar, por sorte, em algum dos casos, mesmo tendo escolhido um critério imbecil (por exemplo, supondo que alguém que tivesse exatamente seis letras no nome fosse, por coincidência, também alguém cuja vulnerabilidade fosse maior e que necessitasse dos medicamentos antes de qualquer um dos outros, para poder sobreviver). <br />
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Alguém poderia, nesse ponto, retrucar que tal raciocínio é de pouca importância prática porque quase ninguém segue um princípio baseado no número das letras do nome das pessoas atingidas pela sua decisão. Contudo, como pretendo mostrar na seqüência, a grande maioria das pessoas segue princípios morais, senão ainda piores, pelo menos igualmente ridículos, baseados nas características mais moralmente irrelevantes possíveis. A conclusão do raciocínio acima é que só faz sentido ser coerente com um princípio que se baseia numa característica moralmente relevante. Coerência por coerência não prova nem que em <i>algum</i> dos casos se tirou a conclusão correta. A insistência do apelo à coerência, por parte de alguns filósofos, talvez tenha levado algumas pessoas a pensarem que, em ética, tudo se resume à coerência. Quando se fala, por exemplo, “se você acha que é certo matar animais porque eles não são racionais, então tem que achar certo matar bebês, porque também não são racionais”, o que se pretende é mostrar ao interlocutor que, já que a falta de racionalidade dos bebês <i>não torna</i> certo matá-los, a falta de racionalidade nos animais não humanos não pode tornar certo matar estes. Não se quer dizer que, se a pessoa resolver sair assassinando animais não humanos <i>e também</i> bebês humanos porque eles não são racionais, então que ela está moralmente correta em todos esses casos, só porque foi coerente. Pelo contrário, como pretendo mostrar, se ela fizer isso, ela erra em todos os casos. Pensar que a moralidade se resume à coerência é esquecer do principal: só faz sentido ser coerente com um bom critério (ou seja, um que se baseie numa característica relevante). Da mesma maneira, quando se pergunta “mas, aceitarias que fizessem isso contigo?”, o que se quer é levar o interlocutor a pensar que, se quando ele é a vítima ele reconhece que fazer determinada coisa <i>é errada</i> (independentemente de se quem o faz é coerente ou não), e não há nenhuma característica moralmente relevante que o distinga de outras vítimas, então, que ele precisa reconhecer que é errado fazer a mesma coisa com os outros. O que <i>não</i> se quer dizer é que, se a pessoa em questão aceitar que façam alguma atrocidade com ela, então que ela está moralmente correta ao fazer atrocidades com os outros. A coerência é um critério secundário, que só faz sentido à luz de princípios que se baseiem em características moralmente relevantes. Mesmo assim, atentando para a coerência é possível atentar para outra forma possível de se errar moralmente: tratar de maneira diferente dois ou mais casos que são similares em tudo aquilo que for moralmente relevante (ou, tratar de maneira similar dois ou mais casos que apresentam diferenças moralmente relevantes). Só que, isso tudo só faz sentido à luz da exigência de relevância.<br />
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Nesse ponto, alguém poderia perguntar: “por que você defende que as exigências de relevância e coerência geram razões que todos deveriam aceitar, e não são um mero sentimento seu de aprovação em relação a essas exigências?”. A resposta é que é irracional duvidar da validade desses critérios, e que isso não depende de sentimento nenhum (apenas de entendimento). Por exemplo, não faria sentido dizer “esses dois casos são similares em tudo o que for relevante para saber como devemos tratá-los, mas, mesmo assim, penso que devemos tratá-lo de maneira diferente um do outro”. Muito menos faria sentido dizer o seguinte: “Para descobrir como devemos tratar um caso, devemos pegar apenas o que for <i>irrelevante</i> para saber como devemos tratá-lo, e descartar tudo o que for de <i>relevante</i> para saber como devemos tratá-lo”. É por esse motivo que rejeitar esses critérios é ser irracional. Então, é falso que não existem <i>razões</i> (critérios que todos deveriam aceitar, sob pena de irracionalidade, independentemente de sentimentos), quando a questão é a moralidade. Note que dizer que relevância e coerência são essenciais ao bom raciocínio moral não quer dizer que <i>eu sei</i> exatamente quais são as características moralmente relevantes de cada caso e o que tornam dois casos relevantemente similares. Se alguém, por exemplo, objetar a minha análise anterior, alegando que levei em conta uma característica que não deveria (ou que faltou alguma que deveria ter levado em conta), não está a rejeitar a exigência de relevância: pelo contrário, está a dizer que me baseei em algo irrelevante (ou, que havia algo de relevante que não levei em conta). Tais críticas só fazem sentido se a exigência de relevância fizer. Portanto, não podem ser críticas contra a exigência de relevância.<br />
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Alguém poderia afirmar, mesmo aceitando a validade as exigências de relevância e coerência, que elas não nos dizem muita coisa sobre a moralidade, pois não oferecem nenhuma resposta “pronta” para nenhuma questão moral específica. É verdade que elas não oferecerão respostas prontas, pois são apenas o pilar inicial do raciocínio moral (o trabalho duro vêm em identificar o que há de relevante em cada situação), mas, é falso que elas não nos dizem muita coisa sobre a moralidade (pois, assim como se parte dos princípios básicos da matemática para desenvolver cálculos mais complexos, o mesmo acontece com a ética). Falarei agora de um segundo passo do raciocínio moral, que segue das exigências de relevância e coerência. Falei anteriormente da <i>generalidade</i> das razões. Quando se fala em razões no âmbito moral, essa generalidade tem formas específicas. As duas formas centrais dizem respeito à generalidade quanto aos <i>agentes</i> (os que tomam as decisões morais), e quanto aos <i>pacientes</i> (os que recebem o efeito da decisão). Note que essas duas categorias dizem respeito a <i>condições</i>, e não a indivíduos específicos: um mesmo indivíduo pode estar na condição de agente e de paciente, em diferentes momentos, e até ao mesmo tempo (como, por exemplo, quando é atingido por sua própria decisão). Quanto aos agentes, a generalidade das razões irá nos mostrar que, se eu tenho motivos para reconhecer que determinada decisão é moralmente obrigatória (ou, que é moralmente opcional), esses motivos não dependem de ser <i>eu</i> quem está pensando sobre elas (dependem, ao invés, de características moralmente relevantes da situação). Isso mostra que, se for moralmente obrigatório (ou moralmente opcional) eu fazer (ou deixar de fazer) determinada coisa, o é não apenas quando for eu que esteja tomando a decisão, mas <i>qualquer agente</i>. É isso que se quer dizer com generalidade: não se está a falar de justificativas para indivíduos específicos. Daí ser um erro o pensamento muito comum, de que a moralidade é uma coisa pessoal. A única maneira de justificar que um determinado agente não precisa cumprir um determinado dever moral, é dizer que característica moralmente relevante há no seu caso que o torna uma exceção (que faz dele um caso relevantemente diferente). Mas, note que essa justificativa também precisa ser geral: se a característica x for uma boa razão para dispensar A de cumprir determinado dever, é igualmente uma boa razão para dispensar qualquer outro agente que apresente a característica x (e não apenas A). Se, por sua vez, alguém alega que o agente B, apesar de apresentar a característica x, contudo, deveria cumprir o dever em questão, porque apresenta a característica y, então isso implica que (se o raciocínio estiver correto, ou seja, se a característica y realmente tiver o poder de anular x), não apenas B, mas qualquer outro agente que apresente as características x e y está dispensado de cumprir tal dever. A principal característica de uma razão é sua generalidade. Toda vez que se aponta uma exceção a uma regra, têm-se de apoiar em outra regra, também geral, que explique a exceção. Um erro muito comum é se pensar que o fato de um agente não acreditar que possui determinado dever o dispensa do cumprimento desse dever. Pensar assim é um erro porque qualquer razão que explique a existência de um dever não depende das crenças dos agentes para existir (e sim, de características da situação): como vimos, a verdade não depende da existência de crenças.<br />
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Já quanto aos pacientes da decisão, a generalidade das razões possui uma aplicação análoga. Se, por exemplo, é a característica x que torna errado matar o paciente A, então é errado matar todo e qualquer paciente que apresentar a característica x. Novamente, se apesar do paciente B apresentar a característica x, não for errado matá-lo porque ele apresenta também a característica y, então isso implica que não é errado matar todo e qualquer paciente que apresentar as características x e y, e assim por diante. Contudo, observe um ponto importante: nada nesse processo garante que escolheremos de certeza as características moralmente relevantes. Para garantir que a escolha esteja correta, não há outro remédio a não ser verificar sempre e sempre os mesmos raciocínios. Nesse ponto, os céticos morais (da maneira como uso o termo, me refiro àquelas pessoas que admitem que há verdade em ética, mas desconfiam do poder da razão em descobrir tais verdades), têm razão em apontar que o raciocínio ético não oferecerá demonstrações fechadas (imunes a críticas e novas revisões). Contudo, entre o extremo de se ter um método de raciocínio impecável e o outro de se descartar completamente a razão em um âmbito da vida, é melhor adotar um método de raciocínio qualquer, ainda que não seja perfeito. O raciocínio ético, mesmo da maneira que está desenvolvido até agora, permite sempre aprimoramento em seu próprio método. O raciocínio ético, embora não dê respostas fechadas, coloca o ônus da prova sobre o perspectivismo e ceticismo moral, em provar que tudo o que sai desse raciocínio é mera ilusão. E, quanto a não dar respostas imunes à novas críticas e revisões, o raciocínio ético não é exceção a outros tipos de raciocínio; não é, por isso, menos objetivo.<br />
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Essa moldura inicial do raciocínio ético pode parecer, à primeira vista, como tendo pouco poder de nos ajudar nos casos práticos. Mas, tal percepção inicial é ilusória. Na verdade, tal moldura é a única ferramenta disponível atualmente que pode nos ajudar a descobrir qual a decisão correta nos casos práticos (descobrir a verdade em ética). Por exemplo, ela já consegue mostrar por que o egoísmo é injustificável, e, tendo mostrado isso, podemos deduzir muitas outras implicações. Por “egoísmo” me refiro à teoria moral (ou seja, uma que visa dizer que decisões são justificáveis) e a prática que é conseqüência dela, embasada no seguinte pensamento: a possibilidade de diminuição ou aumento do meu bem-estar (necessidades, interesses, preferências, sofrimento, prazer, etc.) me oferecem uma razão para agir, fomentando o bem-estar, ao mesmo tempo em que o bem-estar de outros indivíduos (suas necessidades, interesses, preferências, sofrimento, prazer, etc.) não me oferecem (a menos que isso seja vantajoso para mim). Na seqüência, explicarei como a moldura inicial que expus do raciocínio ético consegue mostrar que o egoísmo é injustificável.<br />
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Luciano Carlos Cunhahttp://www.blogger.com/profile/11543323145219198300noreply@blogger.com9tag:blogger.com,1999:blog-1743587667987089964.post-9401294641779834832013-01-15T03:20:00.001-08:002013-01-15T03:20:16.434-08:00IGUALDADE SENCIENTE - parte 1VERDADE, RAZÃO, JUSTIFICATIVA EM ÉTICA E OS SERES SENCIENTES<br />
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Luciano Carlos Cunha [1]<br />
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PARTE 1: Algumas distinções importantes para uma raciocínio fazer sentido em qualquer área do pensamento<br />
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<br />Um dos maiores impedimentos ao bom raciocínio é a ambigüidade com o uso dos termos. É comum a utilização de uma mesma palavra para se referir a duas ou mais idéias diferentes sem perceber, ou seja, acreditando-se estar a falar da mesma idéia. O contrário também é freqüente: por se utilizar duas palavras diferentes, não se percebe que, muitas vezes, está a se falar da mesma idéia. É possível que essas duas confusões apareçam em conjunto também. <br /><br />Muito se fala que “a verdade é uma mera construção social” e que, “em ética, é tudo muito relativo”. Na base dessas alegações muitas vezes (ainda que nem sempre) se encontra algum problema de ambigüidade. O que dá a aparência de plausibilidade nessas teses, muitas vezes, é a ambigüidade com o que se quer dizer com os termos “verdade” e “ética”. Eliminadas as ambigüidades, essas teses se revelam muito mais implausíveis do que inicialmente pareciam. Para evitarmos o problema de ambigüidade, e para entendermos a ambigüidade muitas vezes presente nessas alegações, começarei definindo o que quero dizer com os termos “verdade”, “crença”, “conhecimento”, “justificação” e “razão”. Somente na segunda metade do artigo é que trataremos da ética, mais especificamente. <br />
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Uma das características principais da verdade é que ela <i>não é estatística</i> nem <i>consensual</i>. Suponha, por exemplo, que houve um assassinato, e o indivíduo A matou o indivíduo B. Existem dois suspeitos: A e C. Quando se pergunta “qual é a verdade sobre quem matou B?”, a verdade é que foi A e não C. A verdade sobre esse acontecimento não mudaria nem mesmo se a <i>maioria</i> das pessoas pensasse que foi C, e nem mesmo se <i>todo mundo</i> pensasse que foi C. Se a maioria (ou mesmo, todos) pensasse que foi C, poderia até <i>parecer</i> verdade que foi C quem matou B, mas a verdade, é que foi A. É só devido a verdade não ser estatística nem consensual que é possível da maioria (ou, inclusive, todos nós) estarmos enganados a respeito de determinada coisa. E, muito importante: a verdade é independente de qualquer crença (ou seja, é independente daquilo que acreditamos ser verdadeiro). Certamente há uma verdade sobre que planeta surgiu primeiro, e haveria tal verdade mesmo que não existissem crenças com relação à resposta verdadeira para essa pergunta (ou seja, mesmo que ninguém nunca tivesse feito essa pergunta, e mesmo que nunca tivessem existido seres capazes de ter crenças).<br />
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Como espero ter ficado claro do que expus acima, estou a utilizar a palavra “crença” num sentido geral, para se referir a qualquer coisa que pensamos ser verdadeira, sobre qualquer assunto, quer tenhamos justificativa para acreditar assim ou não (não estou a me referir somente a crenças no sentido religioso da palavra). Muito do que se faz quando se diz “essa é a <i>sua</i> verdade”, “cada pessoa tem uma verdade”, é confundir a idéia de verdade com a idéia de crença. O que se quer dizer com essas afirmações, na verdade, é: “essa é a sua crença” (ou seja, é isso que você acredita que seja verdadeiro) e “cada pessoa tem uma crença diferente” (no sentido de dizer que as pessoas tem crenças divergentes sobre qual a verdade em determinado assunto). O problema é que geralmente essas afirmações são feitas como pretendendo montar um argumento com o objetivo de dizer que a posição do interlocutor não é tão plausível. E é exatamente isso que esse argumento não consegue fazer: constatar que existem crenças divergentes sobre um determinado assunto não mostra que todas essas crenças são igualmente verdadeiras (aliás, se elas discordam entre si, é impossível que sejam todas verdadeiras). Usar as palavras “verdade” e “crença” como se fossem sinônimos tem o efeito nefasto de tornar confuso qualquer raciocínio. Uma crença é aquilo que alguém acredita ser verdadeiro. <br />
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Crença não é a mesma coisa que verdade. Uma crença ou é verdadeira ou é falsa. Por exemplo, com relação ao exemplo anterior, se eu dissesse “foi A quem matou B”, isso é uma crença (uma crença verdadeira, visto que, no exemplo, foi mesmo A quem matou B). Se, por outro lado, eu dissesse “foi C quem matou B”, isso também é uma crença (mas, uma crença falsa). Daí podemos tirar uma conclusão importante: o fato de existir uma crença não indica que seja verdadeira (ou falsa). Daí a inutilidade para um debate alguém afirmar “essa é a sua verdade” (no sentido de “essa é sua crença”) ou “cada pessoa tem uma verdade” (no sentido de “cada pessoa tem uma crença diferente”). Geralmente, quando se faz essas afirmações em um debate, o que se quer é dizer que a posição do interlocutor não é plausível (ou, que todas as posições são igualmente plausíveis; o que é impossível se elas forem posições contrárias). Só que, como vimos, se o fato de existir uma crença não indica que ela seja verdadeira, tampouco indica que seja falsa. Indicar que algo é uma crença não contribui em nada para o debate. A resposta para se saber se é uma crença verdadeira ou falsa precisa ser procurada em outro lugar. É só quando entendemos a distinção entre verdade e crença que é possível perceber que somos <i>falíveis </i>(isto é, é possível de estarmos enganados em ter as crenças que temos). Se verdade e crença fossem a mesma coisa, ou se uma dependesse da outra, ninguém se enganaria nunca.<br />
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Tendo distinguido verdade e crença, é necessário distinguir esses dois conceitos do conceito de <i>conhecimento</i>. Para existir conhecimento, não é suficiente que uma crença seja verdadeira. Para entender por que, considere esse exemplo: eu gostaria de saber se 3+21 é 24 ou 23. Supondo que alguém responda: “24” (que é a resposta correta, ou seja, é a <i>verdade</i> sobre essa pergunta). Não podemos deduzir, do fato da crença da pessoa estar correta, que ela tem <i>conhecimento</i> sobre a resposta correta. Isso porque ela pode ter simplesmente “chutado” a resposta, e, portanto, não saber <i>o que</i> torna essa crença verdadeira (e, nem saber se a crença é verdadeira ou não). Assim, na idéia de conhecimento está envolvida a idéia de <i>justificação</i>. Justificação remete a explicar <i>por que</i> uma crença é verdadeira (é a busca por algo que permita testar se a crença é verdadeira ou não). <br />
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<br />Existem duas maneiras básicas de se cometer um erro de justificação. A primeira é escolher um método ruim de justificação. No exemplo anterior, vimos que chutar a resposta é, obviamente, um método ruim (é um método que não tem poder nenhum de explicar o que faz com que uma resposta seja correta). Outros métodos igualmente ruins seriam: “3+21 é 24 porque meu irmão me disse”; “porque a maioria acha que é”; “porque joguei os dados (ou, os búzios, ou as cartas) e deu 24”; “porque todos os especialistas no assunto concordam que é 24”. Os métodos do apelo à autoridade do irmão ou da maioria são ruins porque é possível que o seu irmão esteja enganado, bem como a maioria esteja. O método dos dados, búzios ou cartas é igual ao do “chute”: se acertar, é por pura sorte; não têm o poder de explicar nada. E, nem mesmo é um bom método o apelo ao fato das autoridades no assunto não discordarem da resposta porque, além de também ser possível das autoridades se enganarem, se elas acreditam em alguma coisa, é devido a alguma razão (e não, o inverso, que o fato delas acreditarem em algo transforma isso numa razão). Tais pessoas são vistas como autoridades no assunto porque sabem muito do <i>método adequado</i> para justificar crenças no assunto em questão. É uma demonstração a partir desse método que alguém quer, quando pede para uma justificativa em determinado assunto.<br />
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A segunda maneira básica de cometer um erro de justificação é adotar o método adequado de justificação, mas cometer um erro em algum dos passos do processo de justificação. No nosso exemplo anterior, a única resposta plausível, em termos de justificação, tem de vir do próprio raciocínio matemático (alguém fazer o cálculo, passo a passo, por exemplo). Nenhum outro método (histórico, biológico, político, psicológico, ético, físico, etc.) tem o poder de mostrar que uma crença matemática é justificada ou injustificada (em outra parte do artigo farei uma afirmação similar com relação à justificação em ética ter de vir do próprio raciocínio ético). Por exemplo, alguém poderia oferecer uma explicação sobre os motivos psicológicos que levam alguém a acreditar que 21+3 é 24, apontando que tal pessoa têm uma admiração muito grande pelo seu irmão, e que acredita em tudo o que ele diz. Mesmo que essas explicações sejam verdadeiras em termos de explicar como alguém sustenta as crenças que sustenta, não têm o poder de mostrar que a crença “21+3=24” é verdadeira ou que é falsa. Tal resposta só pode vir do próprio raciocínio matemático. Mas, mesmo quando adotamos o método correto de justificação, ainda assim nosso raciocínio não está seguramente isento de erros. Podemos, por distração ou outro motivo qualquer, cometer um erro no processo de justificação, e, devido à isso, chegar à conclusão errada. Note que o perigo aqui é exatamente o inverso de escolher um método ruim de justificação: escolhendo um método ruim, alguém pode chegar <i>por sorte</i> numa conclusão correta (a conclusão é sustentada pelos motivos errados); escolhendo o método adequado, se cometermos algum deslize no processo desse método, corremos o risco de partir das razões corretas e chegarmos na conclusão errada. Contudo, mesmo assim, é preferível a escolha pelo método adequado: a probabilidade de chegarmos na conclusão correta é infinitamente maior do que se contarmos com a sorte, além de se ter a vantagem de se conseguir explicar<i> o que</i> torna aquela crença verdadeira. Outro fator importante mostra a inutilidade de se escolher o método inadequado de justificação, mesmo que a resposta esteja, por sorte, correta: alguém que escolhe um método assim não tem como saber se a resposta está correta. Saber que a resposta obtida pelo método ruim, por sorte, estava correta, só pode ser constatado a partir do método adequado. É por esse motivo que um método ruim de justificação, mesmo que, por sorte chegue na resposta correta algumas vezes, nunca possibilita conhecimento. A escolha do método adequado de justificação tem ainda outra vantagem: permite que outras pessoas investiguem o passo-a-passo do nosso raciocínio, e encontre o ponto em que erramos, permitindo, assim, a correção do raciocínio. <br />
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Do que foi exposto acima, podemos concluir que um bom método de justificação precisa conter nele a possibilidade de que qualquer um que o compreenda possa verificar o processo de justificação e conferir se ele está correto. Assim, um bom método de justificação precisa apelar a padrões comuns para qualquer um que consiga compreender as noções em questão. É nesse ponto que chegamos à idéia de razão. A principal característica da razão é a <i>generalidade</i>. Por “generalidade”, o que se quer dizer é que, se algo provê uma razão para acreditar que uma conclusão é verdadeira, essas razões não podem ter como objetivo servir de justificativa apenas para mim ou para minha comunidade, por exemplo[2]. Quando se oferece uma razão para acreditar em algo, o objetivo é que tal argumento sirva como justificativa para qualquer um que faça os passos do processo de justificação no meu lugar. Nesse ponto, é muito importante fazermos uma distinção, para que não aconteça uma confusão comum: entre <i>demonstrar</i> e <i>convencer</i>. O que se quer dizer com “sirva como justificativa para qualquer um” não é que todo mundo <i>aceitaria</i> a conclusão, mas que todo mundo <i>deveria</i> aceitar (mesmo os que não a aceitassem não conseguiriam explicar o que há de errado com ela). A diferença toda reside em apontar o que há de errado com o raciocínio ou não. Se alguém, por exemplo, afirma “esse argumento não me convenceu” não refuta o argumento, <i>a menos que</i> ofereça razões explicando o que há de errado com o argumento. Essas razões, por sua vez, precisam também ser gerais: elas precisam ser inteligíveis para qualquer um (e não apenas para ele ou para a comunidade dele). Se elas, por sua vez, parecem não funcionar para explicar o erro com o raciocínio que não convenceu, também quem pensa que elas não funcionam precisa explicar o que há de errado com elas, e assim por diante. Novamente, essa explicação precisa ser geral. Assim, nem o fato de a maioria (ou até mesmo todo mundo) ter se convencido por um argumento mostra que ele é bom (porque essas pessoas podem não ter percebido os erros no argumento), e nem o fato de ninguém ter se convencido por um argumento mostra que ele é ruim (porque as pessoas em questão podem não estar querendo dar ouvidos à razão). Convencer ou não convencer não diz nada sobre se um raciocínio é sólido ou não. A resposta para isso só pode vir dos próprios métodos de justificativa racionais. É claro, esperamos que um bom raciocínio também convença as pessoas de algo, mas ele deve convencer porque é bom, e não, que se torna bom porque convence.<br />
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O que foi mencionado no parágrafo anterior pode parecer circular para algumas pessoas. “O próprio processo de raciocínio justifica a crença de que a razão conduz à verdade?”, perguntariam. Antes de entrar nesse tópico, gostaria de apontar que algumas noções (como a de verdade e a de razão) são inescapáveis, no sentido de que é impossível nos situarmos em um ponto neutro onde possamos pensar alguma coisa sem pressupor essas noções. Peguemos um exemplo com a idéia de verdade. Muitas vezes, quando se afirma “não existe verdade”, o que se quer dizer com o termo “verdade” é outra coisa. O que se quer dizer, geralmente, é que existem crenças divergentes e que é difícil saber quais delas são corretas (quais são verdadeiras); ou ainda, que em determinados assuntos não há como saber quem está certo, e assim por diante. Note que tudo isso se refere à impossibilidade de <i>conhecimento</i> (impossibilidade de se justificar crenças), em determinado assunto, e não à <i>verdade</i>. Pelo menos, entender essa alegação desse modo é a única maneira de não tornar auto-refutante a afirmação “não existe verdade” (vamos chamá-la de proposição A). Pois, se tal afirmação refere-se mesmo à verdade, ela se auto-anula. Se não existe verdade, como essa afirmação pretende ser verdadeira? Se essa afirmação for verdadeira (se não existir verdade), então ela é falsa (porque então, existe uma afirmação verdadeira). Se, por outro lado, afirma-se que nem mesmo essa afirmação é verdadeira (ela confirma sua própria tese), então o que se está a afirmar é que: “é verdadeiro que a proposição A é também não verdadeira (ou, que é ‘muito subjetiva’)” (vamos chamar essa segunda afirmação de proposição B). Nesse caso, teria-se de dizer que alguém que acredita que a afirmação “não existe verdade” é verdadeira em termos objetivos está enganado (ou seja, possui uma crença <i>objetivamente</i> falsa), o que também é auto-refutante. Além de que, se é afirmado que “nem mesmo a afirmação ‘não existe verdade’ é verdadeira”, então não se oferece nenhuma razão para se acreditar nessa afirmação. Se, novamente, o perspectivista diz que até mesmo a proposição B é subjetiva, então, dá um outro passo atrás e faz outra afirmação objetiva: “é verdadeiro que a proposição B também é ‘muito subjetiva’, e quem pensa o contrário está objetivamente enganado” (vamos chamar essa terceira afirmação de proposição C), e assim, infinitamente, se tentar novamente perspectivar essa afirmação. Isso mostra que, para expressarmos uma proposição, é necessário nos apoiarmos em um ponto de vista objetivo, e isso inclui também toda tentativa de perspectivar algo. Toda vez que se tenta perspectivar algo, se dá um passo atrás em busca de um ponto de apoio objetivo para que a perspectivação faça sentido. É por isso que o perspectivismo <i>total</i> é auto-refutante. Note que, seja lá qual a forma que se exponha o perspectivismo total (como verdade ou como também subjetivo), ele é sempre auto-refutante, porque pressupõe a idéia de verdade, ao mesmo tempo que pretende negá-la. Ele a pressupõe tanto se pretende ser uma afirmação verdadeira quanto se pretende ser não-verdadeira (nesse caso, teria-se de dizer que alguém que acredita que ela é verdadeira está objetivamente errado).<br />
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O mesmo acontece em alegações do tipo “a verdade é uma mera construção social” ou “a verdade nada mais é do que aquilo que os que detém o poder querem que seja”. Geralmente, essa máxima é tão facilmente aceita porque se está a pensar em outra coisa, que não a verdade, com o uso do termo “verdade”. O que se quer referir, na maioria das vezes, não é nada com relação à verdade em si, mas a <i>aquilo que é passado como</i> verdade. Se a pessoa que aceita tal máxima assume que é isso mesmo que quer dizer (que se está utilizando a palavra “verdade” num sentido muito peculiar, para significar as crenças dos que detém o poder), então sua afirmação não nega, nem um pouco, a existência de verdades objetivas. Aliás, essa afirmação pretende ser verdadeira em termos objetivos. Ou seja, pretende afirmar que a frase “aquilo que é passado como verdadeiro nada mais é do que as crenças dos poderosos” é verdadeira. Se o perspectivista com relação à verdade (aquele que diz que a verdade é uma mera construção), por sua vez, objeta afirmando que não queria se referir ao que é passado como verdadeiro, mas exatamente à verdade em si, então torna o seu argumento auto-refutante. Isso porque tal crítica só faz sentido se houver valor de verdade sobre essa questão (ou seja, que as afirmações feitas sobre essa questão sejam, ou verdadeiras, ou falsas). Tal crítica se baseia na afirmação de que a verdade é uma mera construção cultural, quando pretende ser verdadeira em termos objetivos, e não, meramente uma construção cultural que só é verdadeira dentro de determinada comunidade (não confundir com “<i>só é vista como verdadeira</i> dentro de determinada comunidade”, como será explicado no parágrafo a seguir). Por isso, é auto-refutante.<br />
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Nesse ponto, é possível que surja outra confusão. O perspectivista poderia afirmar que está mesmo a dizer que, inclusive o seu próprio argumento só é verdadeiro dentro de uma determinada comunidade, e que não pretende que seu argumento tenha validade para qualquer outro indivíduo. Ao fazer essa objeção, o perspectivista confunde os domínios <i>descritivo</i> e <i>normativo</i> do pensamento. Segundo entendo essa objeção, o que o perspectivista quer dizer é que nada garante que outros indivíduos de outras comunidades <i>aceitarão</i> o seu argumento, e que nada garante que outros indivíduos <i>considerarão</i> o argumento como válido. Note que todas essas observações são descrições sobre o que as pessoas fariam (domínio <i>descritivo</i>). Mas, não é esse sentido que está envolvido quando se critica a negação total da verdade como auto-refutante. Quando se diz que o perspectivista, com a pretensão de negar toda a verdade, ao mesmo tempo pretende que essa afirmação seja verdadeira em termos objetivos, não se quer dizer que o perspectivista acha ingenuamente que todos <i>aceitarão</i> o argumento (domínio descritivo); mas, ao invés, que precisa acreditar, para que seu argumento faça sentido, que todos <i>deveriam</i> (que têm boas razões para) aceitar o argumento (um pensamento que pertence ao domínio <i>normativo</i>). <br />
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Outra confusão possível seria o perspectivista alegar que o que está a dizer é que a <i>noção</i> de verdade é uma construção cultural. Ou seja, com isso, querer dizer que a <i>idéia</i> de que existem coisas verdadeiras e coisas falsas (e não, a verdade em si) só pode acontecer dentro de uma cultura. Mesmo se isso for verdade, não monta um argumento para se concluir que, então, a verdade é uma <i>mera</i> construção cultural. Quando se retrata a verdade como <i>mera</i> construção cultural, o que geralmente se pretende é desacreditar o argumento do interlocutor, afirmando que ninguém tem motivos para acreditar nele. Ora, mesmo se for verdade que a idéia de que existem coisas verdadeiras e coisas falsas é produto da cultura, isso não diz nada quanto ao <i>status</i> dessa idéia (não prova que ela é uma idéia falsa; aliás, se provasse, também seria auto-refutante, pois tal prova dependeria da existência de verdade). Assim, quem afirma que a verdade é uma mera construção cultural não quer que a afirmação “a verdade é uma mera construção cultural” seja uma mera construção cultural; quer que seja <i>verdadeira</i>, ponto. Se o perspectivista negar esse ponto, e afirmar que essa afirmação também <i>é</i> uma mera construção cultural, que ninguém tem razões para valorizar, então não precisamos dar ouvidos a ela. E, mesmo que essa saída fosse tentada, não se escaparia da pretensão de que aquilo que se afirma seja verdadeiro em termos objetivos: o perspectivista está, agora, a afirmar que sua frase também é uma mera construção social (uma afirmação que pretende ser objetivamente verdadeira, ou seja, quem pensar que ela não é também uma mera construção social estaria objetivamente enganado). Essa nova afirmação de segundo nível, sobre o que havia afirmado anteriormente, pretende ser verdadeira em termos objetivos, o que faz com que se auto-anule. A conclusão é que toda vez que se tenta perspectivar (relativizar, subjetivizar) algo, tem-se que apoiar num ponto de apoio exterior, que pretende ser verdadeiro em termos objetivos. Daí ser auto-refutante qualquer tentativa de negar a verdade <i>em geral</i>.<br />
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O exemplo acima visa mostrar que a noção de verdade é inescapável. Não há como fazer nenhum raciocínio sem ela. Com isso não se quer dizer que a pessoa em questão não está aberta para a possibilidade de estar errada. A pessoa pretende que aquilo que falou seja verdadeiro, mas pode reconhecer que, como ela é falível, talvez tenha cometido um erro no processo de justificação. Uma coisa é dizer “há uma verdade sobre essa questão”, outra é dizer “eu, com certeza, sei qual é a verdade”. É por isso que não faz sentido acusar alguém que afirma que existe verdade em determinado assunto, por esse motivo, de não estar aberta para a possibilidade de ter se enganado. A própria possibilidade de alguém estar enganado depende de existir uma verdade sobre tal assunto. São os que negam a existência de verdade que tem que admitir que, se fosse assim, então, ninguém se engana nunca, e ninguém precisa estar aberto a revisar suas crenças (nem mesmo os que discordam da negação da verdade, o que torna o argumento de que não existe verdade auto-refutante). <br />
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Com o exemplo a seguir, pretendo mostrar que, assim como a idéia de verdade é inescapável em qualquer afirmação ou negação, também não temos como fugir da razão. Mencionei acima que a escolha da razão como método de justificação poderia parecer circular. Supondo que alguém ofereça um argumento mais detalhado do que esse, para afirmar que a razão não é confiável (digamos que a pessoa esteja defendendo, ao invés, que confiemos em nossas intuições ou no que as autoridades dizem – o que chamarei de irracionalidade): “se você fundamenta a razão numa intuição, comete contradição; se você fundamenta a razão na própria razão, cai num círculo vicioso”. Existem dois problemas graves com esse argumento. O primeiro, é que, se alguém fundamenta a tentativa de dizer que a razão não é confiável na razão (ou seja, se oferece um <i>argumento</i> para dizer que qualquer apelo à razão não é válido, como foi feito acima), comete contradição; já, ao invés, se fundamenta tal tentativa na intuição (ou em qualquer outra coisa que não seja a razão), cai num círculo vicioso (usa a intuição para justificar a intuição, por exemplo). O segundo problema, é que faz sentido acusar de contradição o apelo a razão para justificar a irracionalidade, assim como faz sentido acusar de circularidade o apelo à própria irracionalidade para justificar a irracionalidade (mesmo que tais acusações sejam circulares). Agora, não faz sentido acusar de <i>contradição</i> o fundamentar a razão na intuição e de <i>circularidade</i> o fundamentar a razão na razão, pois <i>não contradição</i> e <i>não circularidade</i> são dois princípios básicos da razão, e só faz sentido apelar a eles se a razão também fizer. Não faz sentido dizer que essas regras nunca são válidas, a não ser quando o perspectivista quer montar sua objeção contra elas. Por esse motivo, qualquer argumento com vistas a rejeitar por completo a confiança na razão é auto-refutante[3].<br />
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O exemplo acima mostra que algumas tentativas comuns de eliminar a confiança na razão estão fadadas ao fracasso. Por exemplo, é comum o argumento de que “a razão é apenas uma ferramenta que nos foi útil em termos evolutivos; não faz sentido pensar que seus princípios básicos revelam a verdade”; ou ainda, que “a razão é um mero produto cultural, e nunca pode revelar verdades universais”. O problema com tais argumentos é que, se a razão nunca for confiável, então não podemos confiar nem nesses argumentos, e nem nas teorias das quais eles partem para serem construídos (por exemplo, das descobertas da biologia e da sociologia). Para esses argumentos fazerem o mínimo de sentido, a razão precisa ser confiável (precisa não apenas ser algo do qual não se pode escapar, mas também algo com poder de revelar a verdade!). Se a razão nunca for confiável, nenhum argumento o é, nem o que afirma isso. Por isso, qualquer tentativa de negar a razão por completo é sempre auto-refutante. Qualquer tentativa de provar que a razão nunca é confiável precisa estar amparada em um argumento, para fazer sentido. Só que argumentos só fazem sentido se a razão fizer (argumentos são produto da razão). É por isso que a razão é algo do qual não se pode escapar. Não há um ponto “de fora” onde seja possível nos situarmos para tentar provar qualquer coisa, que não tenha que estar amparado em um argumento. Mas, além de ser inescapável, a razão possui o poder de nos direcionar rumo à verdade; pois, se não for assim, nenhum argumento, nenhuma dúvida faz sentido, nem mesmo os argumentos utilizados para negar a validade da razão e as dúvidas quanto ao poder da razão em nos conduzir rumo à verdade. Muito importante: estamos a falar aqui de dúvidas com relação à razão como um todo (todo e qualquer raciocínio), e não dúvidas com relação à validade de um raciocínio específico.<br />
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A acusação da circularidade de se fundamentar a razão na razão remete ao seguinte: quando queremos justificar uma conclusão, apelamos a outros princípios mais gerais e menos controverso, para dar base à conclusão. Se perguntarmos pelo que sustenta o princípio geral que sustentou a primeira conclusão, temos de apelar a outro ainda mais básico e geral, e ainda menos controverso, e assim por diante. O que acontece é que não é possível fazer isso de maneira infinita, pois, se fosse assim, nunca chegaríamos a nenhuma conclusão. Alguns princípios de raciocínio precisam ser dados como verdadeiros, mesmo que não se possa prová-los com base em outros mais básicos (porque eles são os mais básicos possíveis, até onde se sabe). Isso não quer dizer que aceitar esses princípios seja como jogar os dados para provar que os dados são guias confiáveis. A diferença toda reside em que é impossível pensar qualquer coisa que faça sentido sem a aceitação de que esses princípios são verdadeiros (por exemplo, o princípio da não contradição e outros princípios básicos da lógica). Vimos que esses princípios são aceitos como verdadeiros mesmo nos argumentos que pretendem negar a validade da razão como um todo (o que os torna auto-refutantes). Além disso, não há um bom motivo para duvidarmos de sua validade (haja vista que qualquer crítica sobre eles precisa, para fazer o mínimo de sentido, pressupô-los como válidos). Além disso, a circularidade da justificação desses princípios básicos não é dogmática. Como vimos, a razão é auto-corretiva e qualquer um que entenda determinada questão tem acesso aos processos de justificação e à possibilidade de fazer a correção de um raciocínio que se descobre estar errado. No apelo a autoridade, revelação ou intuições, não há nada disso; apenas dogmas. A razão é auto-corretiva porque sempre é possível criticar e avaliar todo e qualquer princípio, mas sempre com base em outros. É possível criticar e aprimorar cada um deles, mas um de cada vez, sempre se apoiando em outro menos controverso (a filosofia tem feito isso desde a antigüidade). O que não é possível é criticar todos com base em nenhum[4]. É por isso que negações totais da razão (diferentemente de críticas a raciocínio específicos ou até princípios de raciocínio específicos) são auto-refutantes.<br />
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Com as distinções feitas anteriormente, entre verdade e conhecimento, podemos reparar em duas posições diferentes, que muitas vezes são confundidas, com relação a esses conceitos: <i>perspectivismo</i> e <i>ceticismo</i>. Nesse ponto, estou a falar do que chamo de perspectivismo e ceticismo <i>totais</i> (e não, sobre assuntos específicos, como a ética, por exemplo). O perspectivismo total nega a existência de verdade em geral. Duas formas de perspectivismo são bem conhecidas: relativismo e subjetivismo. O <i>relativismo geral</i> diz que tudo o que há são diferentes crenças de diferentes sociedades, mas que não existe verdade objetiva. O <i>subjetivismo geral</i> faz a mesma afirmação, só que não com relação a sociedades, e sim, com relação às crenças dos diferentes indivíduos. Como vimos, tais posições são auto-refutantes, porque pretendem ser verdadeiras (e verdadeiras de maneira objetiva, independentemente do que a sociedade ou os indivíduos acham). Um relativista ou subjetivista gerais, por exemplo, acha que está <i>enganado</i> (<i>objetivamente</i> enganado, e não apenas, <i>enganado para o</i> perspectivista) aquele que pensa que existe verdade objetiva.<br />
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Já o <i>ceticismo geral </i>reconhece a existência da verdade. Contudo, nega a possibilidade de conhecimento. O ceticismo geral é um ceticismo diante da razão. O cético geral não acredita que possamos chegar a algum conhecimento através da razão, justamente por sermos falíveis. Portanto, nunca poderemos <i>ter certeza absoluta</i> de que nossas conclusões são verdadeiras (certeza absoluta de não termos cometido um erro na justificação, por exemplo). Note que o ceticismo, diferentemente do perspectivismo, assume a existência da verdade. Portanto, o ceticismo geral não é auto-refutante <i>por assumir a existência da verdade</i> (já que ele não visa negar a existência da verdade). Contudo, ele é auto-refutante se assumir que “com certeza, não podemos confiar na razão”, já que o ceticismo total nega que seja possível certeza sobre qualquer coisa. Então, na melhor das hipóteses, o ceticismo total oferece uma razão para duvidar dele: se temos de sempre ter dúvida, devido à nossa falibilidade, então temos de ter dúvida sobre o ceticismo total e sobre nossa falibilidade também. Talvez seja possível termos certeza absoluta de alguma coisa.<br />
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Outra distinção importante é entre: (1) perspectivismo e ceticismo totais e (2) perspectivismo e ceticismo em <i>domínios específicos</i> (como na ética, por exemplo). As formas de ceticismo e perspectivismo específicos não são automaticamente auto-refutantes. Contudo, isso não indica também que estejam necessariamente corretas. A resposta para isso precisa ser descoberta raciocinando-se sobre cada área em questão. O perspectivismo específico assume que existe verdade <i>em geral</i>, mas nega que exista verdade objetiva com relação a uma determinada área do pensamento (enquanto que assume que existe em outras). Essa forma de perspectivismo não é automaticamente auto-refutante: faz uma afirmação que pretende ser verdadeira, mas não nega a verdade em geral (nega apenas em um domínio específico do pensamento). Já o que estou a chamar de ceticismo específico, apesar de reconhecer que há verdade objetiva (tanto em geral quanto na área específica na qual é cético com relação à possibilidade de conhecer a verdade), reconhece que é possível ter <i>conhecimento</i> em algumas áreas, mas não em outras. Essas formas de perspectivismo e ceticismo não são auto-refutantes porque pretendem ser verdadeiras, mas não negam que exista verdade. Se alguém fala “tudo é muito relativo”, faz sentido perguntar “isso também?”, o que sugere que a afirmação é auto-refutante. Mas, se alguém fala “em ética, é tudo muito relativo”, isso não é automaticamente auto-refutante, já que o que a pessoa quer dizer não é que não existe verdade, mas sim, que “a verdade é que, em ética, é tudo muito relativo”. Contudo, como mencionei, o fato de um argumento não ser auto-refutante não indica que a crença que ele visa sustentar é verdadeira. Pode ser que o argumento seja ruim por outros motivos, e pode ser que a crença em questão seja falsa, apesar de não ser auto-refutante.<br />
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No restante do artigo, argumentarei contra o <i>perspectivismo</i> e <i>ceticismo</i> especificamente com relação à ética. As duas posições se diferenciam no seguinte: o perspectivismo ético (seja na forma do relativismo, seja na forma do subjetivismo) nega que haja verdade objetiva em ética (já que negam a existência de verdade objetiva em ética, negam também a possibilidade de um raciocínio em ética, com vistas a descobrir essas verdades objetivas); já o que estou a chamar de ceticismo ético diz respeito à posição que acredita haver verdade objetiva em ética, mas que defende que somos demasiadamente falíveis para conseguir descobri-las (lança dúvidas sobre a capacidade da própria razão e da nossa habilidade com a razão, em descobrir verdades morais). <br />
<br />
Para entendermos o perspectivismo ético, é interessante olharmos para um exemplo. Como mencionei antes, negações da verdade em domínios específicos são diferentes de negações da verdade em geral. É possível que alguém negue que exista verdade objetiva em um domínio e aceite que exista em outro. Por exemplo, é possível que alguém acredite que exista verdade objetiva com relação aos fatos físicos, mas não com relação às perguntas “qual a decisão correta?” e “qual a cor mais bonita?”. Peguemos por ora os dois exemplos menos controversos (o dos fatos físicos e o da beleza das cores). A maioria de nós aceita que existem verdades objetivas sobre os fatos físicos. Por exemplo, certamente há uma verdade sobre quem foi Jack o estripador, mesmo que nenhum de nós saiba quem foi. Concordamos que há uma verdade sobre a idade do planeta Terra, sobre o motivo do desaparecimento dos dinossauros, e se sobre Luciano Cunha assaltou ou não geladeira ontem a noite. Em contrapartida, a maioria de nós concorda que não existe verdade objetiva com relação à beleza das cores. Se encontrarmos duas pessoas discutindo sobre qual a cor mais bonita, lilás ou verde, pensaremos que essas pessoas estão iludidas; estão pensando que há valor de verdade sobre uma questão cuja única verdade é que não existem razões para acreditar que uma cor é melhor do que outra; tudo se resume, nesse caso, a gosto pessoal. Tendo entendido essa diferença, podemos entender o perspectivismo com relação à ética: no entender dos que defendem o perspectivismo com relação à ética, esta seria como o gosto por cores, e não como reportar fatos. Diferentemente de acessar fatos físicos (onde é possível investigar se o que se fala é verdadeiro ou falso), tudo o que podemos fazer em ética, no entender dos perspectivistas, é reportar algo sobre nós (nossos gostos pessoais ou exprimir sentimentos, por exemplo). Não há, no entender dos perspectivistas, verdade objetiva sobre as questões éticas, e todo mundo está igualmente certo (não temos <i>razões</i> – o que pressupõe generalidade, como vimos - para preferir essa ou aquela posição).<br />
<br />
Um dos argumentos utilizados para sustentar a tese do perspectivismo moral é o <i>factualismo</i>. O factualismo basicamente diz o seguinte: <i>toda</i> afirmação que possui valor de verdade (isto é, que pode ser verdadeira ou falsa, em termos objetivos) precisa de fatos físicos correspondentes; já um domínio de pensamento onde não existam fatos físicos a que apelar para verificar as alegações é meramente subjetivo (expressão de gosto pessoal, por exemplo). Assim, por exemplo, quando digo “Há um cachorro debaixo da minha cama”, essa afirmação possui valor de verdade porque há um fato físico correspondente a essa afirmação, que se pode verificar com os cinco sentidos para avaliar se o que falei foi verdadeiro ou falso. Já quando digo “estuprar é errado”, o perspectivista dirá que minha afirmação não é verdadeira nem falsa, porque não há um fato físico correspondente a “estuprar é errado”. O problema com o factualismo é que ele também é auto-refutante. Note que o factualismo diz que <i>toda</i> afirmação que possui valor de verdade precisa de um fato físico correspondente que a torne verdadeira. Temos de perguntar: há um fato físico correspondente à afirmação “toda afirmação que é verdadeira precisa de um fato físico correspondente que a torne verdadeira”? Certamente não. Essa tese (o factualismo) é uma tese filosófica, não empírica. Então, se ela fosse verdadeira (se tudo que é verdade precisasse de fatos físicos correspondentes), seria falsa (porque não há um fato físico correspondente ao factualismo). Se, por outro lado, o factualista afirmar que, nesse caso, não precisa de um fato físico para o factualismo ser verdadeiro, então o factualismo é falso (pois então é falso que sempre se precisa de fatos correspondentes para tornar algo verdadeiro[5]). <br />
<br />
O argumento a favor do factualismo é auto-refutante. Contudo, isso não prova que a conclusão que ele pretende sustentar (a de que não existe verdade objetiva em ética) é falsa. Isso porque é possível existirem outros argumentos melhores a favor do perspectivismo moral. É possível que uma conclusão esteja correta, e o argumento que visa sustentá-la seja ruim. É possível que, por outros motivos, não haja verdade em ética, mesmo que o factualismo seja falso. Quando pretendemos provar que uma posição está errada (como eu pretendo, com relação ao perspectivismo com relação à ética), não apenas temos de mostrar que os argumentos oferecidos em seu favor são ruins; temos também de oferecer um argumento explicando por que ela está errada. É isso que pretendo fazer a seguir (no próxima parte).<br />
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Notas:<br />
<br />
[1] Mestre em Ética e Filosofia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). O autor agradece à Marina S. O. Serralheiro pelas críticas e revisões.<br />
<br />
[2] Cf. NAGEL, Thomas. A Última Palavra. Trad. Carlos Felipe Moisés. São Paulo: UNESP, 2001, p. 13.<br /><br />
[3]MURCHO, Desidério. Zen e a Arte da Manutenção da Filosofia. In: Crítica na Rede. 14/07/2009. Disponível em: http://criticanarede.com/zen.html<br /><br />
[4]Cf. MURCHO, Ibid.<br />
<br />
[5]A argumentação contra o factualismo pode ser encontrada em MURCHO, Desidério. Ética e Direitos Humanos. In: Crítica na Rede. 27/11/2009a. Disponível em: http://criticanarede.com/html/valoresrelativos.html Luciano Carlos Cunhahttp://www.blogger.com/profile/11543323145219198300noreply@blogger.com3tag:blogger.com,1999:blog-1743587667987089964.post-86714770497922674422012-12-30T06:12:00.003-08:002012-12-30T06:32:36.262-08:00Não ao veganismo especista - uma resposta à "Mabel"Em resposta ao meu FAQ sobre anti-especismo, que também foi publicado no site <a href="http://www.olharanimal.net/luciano-cunha/1669-esclarecendo-confusoes-frequentes-um-faq-sobre-anti-especismo" target="_blank">Olhar Animal</a>, alguém que assina como Mabel Nobrega enviou o seguinte comentário, no próprio site:<br />
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# Mabel Nobrega 28-12-2012 14:06 escreve:<br />
<br />
"Interessante o fato de uma pessoa extremamente arrogante e soberba ter escrito sobre igualdade. Imagino que ele tenha se valido do ditado "faca o que eu digo, mas nao faca o que faco." No minimo, pode se dizer que tudo que vem do L. Cunha quanto a respeito e igualdade eh hipocrisia, afinal ele se julga o detentor de toda a verdade e qualquer pessoa que nao concorde com a sua opiniao e tachada por ele de imbecil, como o fez no grupo aberto do facebook Garimpando Opcoes Veganas".<br />
<br />
Eis minha resposta:<br />
<br />
Se você pensa que defender a igualdade e o respeito implica em se calar diante das injustiças, e não julgar e avaliar as crenças e opiniões (e também os argumentos que visam sustentar essas crenças e opiniões) das outras pessoas, então não faz a menor idéia do que são as noções de igualdade e respeito. O compromisso com a igualdade e o respeito implica um dever de nos pronunciarmos diante das injustiças. Um compromisso com a verdade implica em um dever de explicarmos o que há de errado com determinadas idéias, e de mostrar por que determinados argumentos são ruins. O respeito pelas pessoas não implica que temos de respeitar qualquer idéia que elas acreditem (por mais estúpida que essa idéia possa ser, como no caso do especismo, racismo e sexismo). Demonstramos respeito por uma pessoa mostrando o por que de determinadas idéias que ela sustenta estarem muito erradas. E, demonstramos o devido respeito por essas crenças submetendo-as a escrutínio crítico e as rejeitando se elas se mostrarem implausíveis (e, combatendo-as, se elas também forem moralmente hediondas, como é o caso do especismo, racismo e sexismo).<br />
<br />
Não faz o menor sentido acusar alguém que oferece argumentos para sustentar a sua posição de pensar que é "dono da verdade". Isso só pode vir de uma confusão gigante sobre o propósito do debate racional. Alguém que oferece argumentos os está submetendo-o a escrutínio crítico. Se alguém faz isso, é porque quer que seus argumentos sejam analisados por outras pessoas, para ver se eles realmente sustentam a conclusão que visam sustentar, e se realmente provam que a conclusão é verdadeira ou não. A maioria das pessoas possui uma idéia tão distorcida do que é um debate racional, que tendem a ver tudo ao contrário. Quando alguém, ao invés de oferecer argumentos, apenas apela a intuições, ou apenas faz exclamações do tipo "isso é mesmo um absurdo!", "que coisa horrível", sem dar base alguma para sustentar suas exclamações, então é visto como alguém tolerante e "aberto a rever suas concepções". Nada poderia estar mais longe da verdade. <br />
<br />
Note que a questão aqui não é dizer que alguém se acha "dono da verdade" porque não está aberto a avaliar os seus argumentos. A questão é que geralmente, só por alguém oferecer um argumento e pretender que as conclusões a que ele conduz sejam verdadeiras, só por isso, alguém já é classificado como pensando ser "dono da verdade". Em contrapartida, geralmente esse mesmo tipo de pessoa enxerga alguém que fala "é tudo muito relativo!" como sendo tolerante e aberto a pensar com seriedade no assunto. Isso só pode vir de um entendimento grotesco do que são argumentos. Para começar, não só quem escancara que está a oferecer argumentos pretende que suas conclusões sejam verdadeiras: todo mundo faz a mesma coisa, toda vez que afirma ou nega algo, (mesmo quando se esforça ao máximo para esconder os argumentos, e esconder a pretensão de que sua afirmação ou negação tenha validade objetiva). Por exemplo, você pretende que o que afirmou sobre mim seja verdadeiro. Então, se é para classificar como se achando "dona da verdade" toda pessoa que pretenda que os seus argumentos sejam sólidos e que as conclusões que chega são verdadeiras, então tem-se que se classificar todo mundo assim. <br />
<br />
É claro, é muito mais fácil pensar que "tudo é muito relativo mesmo", "a verdade é relativa", e que ninguém erra nunca. Só que, ao contrário de quem oferece argumentos visando sustentar uma conclusão, é quem defende esse tipo de perspectiva que pode ser legitimamente acusado de não estar aberto a rever suas concepções. Afinal de contas, se "a verdade é relativa a opinião de cada um", para que então rever suas concepções, não é mesmo? Só que, o primeiro problema é que, então, alguém que pensa assim não tem razões para criticar o adversário pelo que ele defende (nem pela maneira que ele se comporta, já que, segundo essa visão, ele não está errado, já que ninguém errada nunca, pois é tudo "muito relativo"). O segundo problema é que essa afirmação pretende ser ela mesma verdeira em termos objetivos, e não, relativa. Isso a torna auto-refutante. <br />
<br />
Assim, todo mundo, o tempo todo, está a fazer afirmações e argumentos cuja pretensão é de validade universal. É impossível pensar alguma coisa com sentido e que ao mesmo tempo consiga fugir dessas condições. Mesmo quando dizemos "esse assunto em particular é muito subjetivo", queremos que essa sentença seja verdadeira em termos objetivos (e não "verdadeira para mim"). A diferença toda, entre as pessoas, reside no fato de que algumas escancaram que estão a fazer reivindicações objetivas e a utilizar argumentos cuja pretensão é de validade universal, e outras pessoas mascaram esse ponto para que suas posições sejam vistas como tolerantes e como não discordando de ninguém. Então, é esse tipo de pessoa que pode legitimamente ser acusada de desonestidade intelectual, e não, quem oferece argumentos para sustentar suas conclusões. <br />
<br />
A questão é que a maioria das pessoas, incluindo você, não faz a mínima idéia do que seja um debate racional. Vêem a argumentação como um jogo de manipulações, e não como tentativas de chegar à verdade. Talvez, porque elas próprias só utilizem argumentos dessa maneira. O que acontece é que as pessoas estão tão acostumadas a esse jogo manipulatório nos debates, e tão arraigadas em sua crença no relativismo (que surge geralmente para não terem que assumir que, muitas vezes, elas estão totalmente erradas), e a só participarem de debates onde cada um tenta berrar mais alto do seu lado "isso é um absurdo!", sem discutir argumento nenhum, que então vêem alguém oferecendo argumentos como se achando "dono da verdade". É claro, quem pensa que ninguém se engana nunca, que é tudo muito relativo, que respeitar as pessoas é respeitar suas idéias, por mais implausíveis que sejam, não suporta o fato de descobrir que está errado. Enquanto o outro lado faz igual, e apenas grita "isso é um absurdo!", sem oferecer argumento nenhum, as pessoas se sentem confortáveis com suas crenças, e falam falsamente que o interlocutor é uma pessoa "respeitável para se debater", só porque o interlocutor não demonstrou que sua crença estava errada (é claro, ele apenas ficou a exclamar, igual a você, que "é tudo muito absurdo!": não colocou você e suas crenças contra a parede). <br />
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Agora, o que gente assim não suporta é ter que dar de cara com o fato de que os argumentos que ofereceu eram muito ruins (quando existiram!) e as crenças que sustentavam eram totalmente implausíveis. São pessoas assim, que realmente se acham os verdadeiros "donos da verdade", porque não suportam ter que dar de cara com um argumento que prova que estão errados; por isso gostam de dizer que tudo é muito relativo e é só uma questão de opinião, e que o interlocutor só é respeitoso enquanto ficar a exprimir exclamações sem uma argumentação. Ou seja, quem pensa assim se acha democrático, mas o seu respeito pelo ideal democrático vai apenas até o momento onde o interlocutor oferece um argumento para mostrar que se está errando. Quando o interlocutor faz isso, então ele é um "arrogante", "prepotente", "dono da verdade". "Como o Luciano é prepotente! Além de dar um argumento que visa mostrar que estou errada, além de tudo, ele pretende que o argumento seja sólido e a conclusão seja verdadeira! Quanta prepotência!"<br />
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Nesse momento, essas pessoas vão atacar quem ofereceu a demonstração de que o argumento era ruim (porque não suportam saber que estão erradas). É como mandar assassinar um mensageiro que veio dar uma notícia ruim. Nesse momento, só surgem argumentos <i>ad hominem</i> (que foi o que aconteceu naquele debate e o que você está a fazer agora). Nenhum dos argumentos que ofereci foram discutidos. Tudo o que se fez foi afirmar que sou arrogante, prepotente, hipócrita porque ofereci um argumento para mostrar que vocês estão errados. Sinto muito, mas, como todo mundo sabe, isso não prova que o que falei estava errado. É por isso que o argumento <i>ad hominem</i> é uma falácia: mesmo que fosse verdade que sou tudo aquilo de que me acusam (prepotente, arrogante, hipócrita), isso não tem poder algum de mostrar que aquilo que defendo está errado.Você está a fazer a mesma coisa agora: não mencionou nenhum argumento do texto que você comenta (talvez por que não tenha tido nem a mínima decência de ler aquilo que comenta), apenas dirige ataques à minha pessoa, e à forma com que falo. O uso dessa tática é muito comum: quando não se consegue provar que as idéias que o adversário defende estão erradas, ao invés da saída humilde de se admitir que o interlocutor tem razão, a pessoa prepotente parte para os ataques pessoais. Para se ter uma idéia do nível do debate no facebook que você menciona, ele teve pérolas do tipo: "olha, os argumentos que você endereçou são bons, mas eles caem por terra porque você é pedante, arrogante, egocêntrico, etc.". Se isso não for um exemplo escancarado de <i>falácia ad hominem</i>, eu não sei mais o que pode ser.<br />
<br />
Sobre a falácia ad hominem, escrevi esse artigo: <br />
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<a href="http://www.anda.jor.br/03/01/2011/explicando-por-que-o-egoismo-nao-e-etico" target="_blank">http://www.anda.jor.br/10/12/2012/o-uso-de-estrategias-ad-hominem-para-continuar-a-se-desrespeita r-os-animais-nao-humanos</a><br />
<br />
Sobre o que acusações de hipocrisia não tem o poder de provar, escrevi esse artigo:<br />
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<a href="http://www.anda.jor.br/15/12/2012/igualdade-animal-e-nao-veganismo-individual">http://www.anda.jor.br/15/12/2012/igualdade-animal-e-nao-veganismo-individual</a><br />
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Um conselho: se pretendem mostrar que estou errado no que defendo, é bom começar tentando avaliar os argumentos que ofereço e tentar procurar erros neles. Daí então, faz todo sentido me mostrar que há algo de errado com eles, e que as conclusões que cheguei são falsas. Até agora, só vi ataques à minha pessoa e à forma com que escrevo. Isso só vai me fazer acreditar que vocês não conseguem mostrar que estou errado, e por isso apelam à tática <i>ad hominem</i>, porque não suportam descobrir que estão errados em alguma coisa, já que se acham "donos da verdade". Enquanto utilizarem da tática <i>ad hominem</i>, só vão é fazer eu pensar que estou certo, que fazem assim porque não conseguiram encontrar nenhum erro com os argumentos, e estão "embirradinhos" porque não suportam o fato de saber que estão errados em alguma coisa. "Vejam que blasfêmia! O Luciano ali demonstrou que eu, a "dona da verdade" estou errada em alguma coisa! Mas, é muita petulância mesmo!".<br />
<br />
Quem já leu qualquer artigo que escrevo (inclusive, alguns deles, artigos que são respostas a debates) sabe que o que faço são avaliar os argumentos. Até agora, em muitas questões, eu e meus críticos discordamos muitas vezes radicalmente (como é o caso do artigo que você está a comentar). O debate, nesses casos, contudo, ocorre normalmente, como deveria ser. É totalmente falsa a afirmação de que acuso alguém de ser imbecil por discordar das minhas idéias. Quem leu meus artigos (inclusive este que você está a comentar) sabe que, muitas vezes, agradeço ao interlocutor por ter me apontado um erro de argumentação e por ter mostrado que eu estava errado no ponto em questão. Além do próprio artigo que estamos a comentar, um ótimo exemplo de debate saudável onde os interlocutores discordaram radicalmente de mim, e o clima foi totalmente respeitoso, pode ser visto <a href="http://www.anda.jor.br/03/01/2011/explicando-por-que-o-egoismo-nao-e-etico" target="_blank">aqui</a>. No debate que você menciona, do facebook, eu não acusei ninguém de ser imbecil por discordar de mim. Isso é uma manipulação grosseira. Eu afirmei, ao invés, que determinadas<i> idéias </i>são pura imbecilidade, porque não possuem nenhum bom argumento a seu favor, e, depois de poucos momentos de reflexão crítica, já se revelam tolices, preconceitos irracionais.<br />
<br />
Para quem não sabe do debate no facebook que você menciona, e pode ter uma idéia errada do que você está a apontar, a imbecilidade da qual falo diz respeito a uma interlocutora no debate ter afirmado que estuprar e assassinar não são questões morais (questões que exigem uma justificativa quando estamos a decidir), que são apenas questões jurídicas (ou seja, coisas que deveríamos deixar de fazer apenas porque existem leis proibindo-as). No entender da interlocutora, a única regra moral seria jamais mentir. Torno a repetir: pensar assim é uma imbecilidade, porque, se estuprar e assassinar não são questões morais (questões que exigem uma justificativa sobre como decidir), a despeito do dano gravíssimo que causam às suas vítimas, então, é muito difícil imaginar como é que qualquer outra coisa poderia ser uma questão moral. Para começar, como é que mentir (que causa um dano muito menor do que estuprar e assassinar), seria uma questão moral, em primeiro lugar? Aliás, se nem estuprar nem assassinar são questões que merecem reflexão moral (se são o tipo de decisão moralmente neutra, como pentear o cabelo para o lado ou para trás), por que haveriam de existir leis proibindo essas coisas então?<br />
<br />
No referido debate no facebook, muitas pessoas que comentavam me acusando das mesmas coisas (arrogante, pedante, etc.) sequer leram o que escrevi antes. A prova disso é que muitas pessoas falavam exatamente os mesmos argumentos que eu já havia respondido anteriormente. Algumas dessas pessoas até orgulharam-se de não ter lido o que escrevi, e de nunca terem lido nada sobre o tema. Isso revela o quão preparadas elas estão para entrar num debate ou escrever sobre determinado tema, e revela também muito da sua "boa intenção" por trás de debater (xingar o interlocutor sem ter lido o que ele fala). E, então, quando a gente apenas posta novamente o link para onde está a resposta já oferecida anteriormente para o argumento que ele torna a repetir, somos considerados arrogantes. É claro, alguém assim deve ser achar tão especial que quer que o interlocutor repita somente para ele, escrevendo tudo novamente o que já havia falado, porque ele é muito especial para se dar ao trabalho de ler aquilo que já foi respondido anteriormente (e, que ele nem vai ler se for escrito novamente, já que o seu objetivo não é refletir sobre o tema, mas, xingar o interlocutor).<br />
<br />
E, para quem não sabe do debate em questão (que era um debate em uma comunidade onde só haviam veganos), uma das idéias que defendi que causou repulsa foi a idéia de que o especismo, racismo e sexismo são preconceitos igualmente deploráveis, e que os animais devem ter direitos. Isso mesmo: muitos veganos tem uma repulsa moral pela idéia de que existe a obrigação de respeitar os animais (que envolverá, por exemplo, proibir legalmente o seu uso, assim como a escravidão humana é proibida legalmente). Descobrir que muitos veganos pensam assim não deveria causar espanto. Isso porque, alguém ser vegano não significa que esse alguém deixou de ser especista.Vejamos por que:<br />
<br />
O especismo não é caracterizado pelo uso dos animais. Isso é só uma conseqüência do especismo. É possível que alguém seja especista e não utilize os animais (seja vegano). O especismo se caracteriza pela idéia de que seres humanos estão justificados em tratar membros de outras espécies como inferiores. Assim, os especistas acham, por exemplo, que está certo, que humanos tem direito moral de utilizar os animais não humanos. Então, alguém que não faz uso dos animais (é vegano), mas acha correto que outras pessoas o façam, é especista. Geralmente, esse tipo de vegano defende com unhas e dentes o direito de outras pessoas, que não ele, fazerem uso dos animais, se quiserem. Enxergam a questão assim: humanos tem direito de explorar os outros animais, mas quem não quiser fazer, não tem problema (é moralmente opcional), assim como quem quiser jogar pingue pongue tem esse direito, mas, quem não quiser fazer, não tem problema. Isso porque, não reconhece nem direitos morais, muito menos igualdade, para os animais. É vegano por questão de gosto, não por questão de justiça. Então, mentalmente, é tão especista quanto quem usa os animais. Esse tipo de tolice surge da confusão em não se saber distingüir uma questão de ética, justiça, de uma questão de gosto pessoal.<br />
<br />
O especismo, por ser uma idéia imbecil (carece de qualquer justificativa a seu favor) é uma idéia que qualquer um tem o dever de combater. E, vou combater o especismo, venha de onde vier, seja de gente que usa os animais, seja de veganos. Luciano Carlos Cunhahttp://www.blogger.com/profile/11543323145219198300noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-1743587667987089964.post-63286656676225342662012-12-19T08:06:00.002-08:002012-12-19T08:06:37.649-08:00FAQ sobre anti-especismoElaborei, como resposta às objeções levantadas pelo Dr. Carlos Eduardo Nazareth Nigro à perspectiva anti-especista, um FAQ sobre o tema.<br />
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Eis aqui o índice das respostas:<br />
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<b style="background-color: white; color: #222222; font-family: Arial, Tahoma, Helvetica, FreeSans, sans-serif; font-size: 13px; line-height: 18px;"><a href="http://lucianoccunha.blogspot.com.br/2012/12/esclarecendo-confusoes-frequentes-um.html" target="_blank">Parte 1 – A crença de que um indivíduo possui maior valor moral por ser mais racional</a></b><br />
<b style="background-color: white; color: #222222; font-family: Arial, Tahoma, Helvetica, FreeSans, sans-serif; font-size: 13px; line-height: 18px;"><br /></b>
<b style="background-color: white; color: #222222; font-family: Arial, Tahoma, Helvetica, FreeSans, sans-serif; font-size: 13px; line-height: 18px;"><a href="http://lucianoccunha.blogspot.com.br/2012/12/parte-2-crenca-de-que-um-individuo.html" target="_blank">Parte 2 – A crença de que um indivíduo possui maior valor moral por ser membro da espécie humana</a></b><br />
<b style="background-color: white; color: #222222; font-family: Arial, Tahoma, Helvetica, FreeSans, sans-serif; font-size: 13px; line-height: 18px;"><br /></b>
<b style="background-color: white; color: #222222; font-family: Arial, Tahoma, Helvetica, FreeSans, sans-serif; font-size: 13px; line-height: 18px;"><a href="http://lucianoccunha.blogspot.com.br/2012/12/parte-3-irrelevancia-das-intuicoes-29-o.html" target="_blank">Parte 3 – A (ir)relevância das intuições</a></b><br />
<br />
<b style="background-color: white; color: #222222; font-family: Arial, Tahoma, Helvetica, FreeSans, sans-serif; font-size: 13px; line-height: 18px;"><a href="http://lucianoccunha.blogspot.com.br/2012/12/parte-4-ideia-de-que-animais-nao.html" target="_blank">Parte 4 – A idéia de que animais não possuem valores e a defesa do bem-estarismo</a></b><br />
<b style="background-color: white; color: #222222; font-family: Arial, Tahoma, Helvetica, FreeSans, sans-serif; font-size: 13px; line-height: 18px;"><br /></b>
<b style="background-color: white; color: #222222; font-family: Arial, Tahoma, Helvetica, FreeSans, sans-serif; font-size: 13px; line-height: 18px;"><a href="http://lucianoccunha.blogspot.com.br/2012/12/parte-5-o-argumento-da-casa-em-chamas.html" target="_blank">Parte 5 – O argumento da casa em chamas</a></b><br />
<b style="background-color: white; color: #222222; font-family: Arial, Tahoma, Helvetica, FreeSans, sans-serif; font-size: 13px; line-height: 18px;"><br /></b>
<b style="background-color: white; color: #222222; font-family: Arial, Tahoma, Helvetica, FreeSans, sans-serif; font-size: 13px; line-height: 18px;"><a href="http://lucianoccunha.blogspot.com.br/2012/12/parte-6-crenca-no-senso-de-proporcao.html" target="_blank">Parte 6 – A crença no “senso de proporção”</a></b><br />
<b style="background-color: white; color: #222222; font-family: Arial, Tahoma, Helvetica, FreeSans, sans-serif; font-size: 13px; line-height: 18px;"><br /></b>
<b style="background-color: white; color: #222222; font-family: Arial, Tahoma, Helvetica, FreeSans, sans-serif; font-size: 13px; line-height: 18px;"><a href="http://lucianoccunha.blogspot.com.br/2012/12/parte-7-sobre-o-egoismo-e-suas.html" target="_blank">Parte 7 – Sobre o egoísmo e suas derivações</a></b><br />
<b style="background-color: white; color: #222222; font-family: Arial, Tahoma, Helvetica, FreeSans, sans-serif; font-size: 13px; line-height: 18px;"><br /></b>
<b style="background-color: white; color: #222222; font-family: Arial, Tahoma, Helvetica, FreeSans, sans-serif; font-size: 13px; line-height: 18px;"><a href="http://lucianoccunha.blogspot.com.br/2012/12/parte-8-o-racismo-por-tras-de.html" target="_blank">Parte 8 – O racismo por trás de argumentos que pretendem ser anti-racistas</a></b><br />
<b style="background-color: white; color: #222222; font-family: Arial, Tahoma, Helvetica, FreeSans, sans-serif; font-size: 13px; line-height: 18px;"><br /></b>
<b style="background-color: white; color: #222222; font-family: Arial, Tahoma, Helvetica, FreeSans, sans-serif; font-size: 13px; line-height: 18px;"><a href="http://lucianoccunha.blogspot.com.br/2012/12/parte-9-argumentos-de-ladeira.html" target="_blank">Parte 9 – Argumentos de ladeira escorregadia</a></b><br />
<b style="background-color: white; color: #222222; font-family: Arial, Tahoma, Helvetica, FreeSans, sans-serif; font-size: 13px; line-height: 18px;"><br /></b>
<b style="background-color: white; color: #222222; font-family: Arial, Tahoma, Helvetica, FreeSans, sans-serif; font-size: 13px; line-height: 18px;"><a href="http://lucianoccunha.blogspot.com.br/2012/12/parte-10-confusao-entre-igualdade.html" target="_blank">Parte 10 – Confusão entre igualdade senciente e ambientalismo</a></b><br />
<br />Luciano Carlos Cunhahttp://www.blogger.com/profile/11543323145219198300noreply@blogger.com4tag:blogger.com,1999:blog-1743587667987089964.post-31210050558749492462012-12-19T07:51:00.002-08:002012-12-20T06:05:55.448-08:00<br />
<b>Parte 10 – Confusão entre igualdade senciente e ambientalismo</b><br />
<br />
<i>#185 – O erro em se pensar que rejeitar o especismo implica em aceitar o ambientalismo</i><br />
<br />
Por fim, Nigro confunde a proposta dos que defendem a igual consideração entre os seres sencientes com a proposta da ecologia profunda. Nigro escreve:<br />
<br />
<i>“Não é possível da defesa da valorização de cada pessoa humana, única e especial, derivar para a homofobia, o machismo e o racismo. Mas deriva mesmo para o especismo porque todas as pessoas são muito mais importantes do que os indivíduos das outras espécies - não tente concluir desta frase que eu defendo a extinção de todas as espécies. [...] O indivíduo necessariamente desaparece por trás da animalidade e da coletividade. O que resta é o discurso ecológico, o endeusamento da Terra e da sociedade. São conseqüências dessa dissolução do indivíduo como alguém único e especial: o totalitarismo, o eugenismo, o infanticídio e, em breve, manipulações genéticas e clonagem”.</i><br />
<br />
<i>#186 – Especismo, racismo e sexismo são injustificáveis devido à mesma razão</i><br />
<br />
Com relação à primeira parte do comentário, Nigro, mais uma vez, parece não ter percebido o que os filósofos defensores da igual consideração estão a denunciar: que a espécie biológica é um critério tão moralmente arbitrário e moralmente irrelevante quanto são a raça, gênero ou opção sexual. Como a discussão desse argumento já aparece detalhadamente em partes anteriores do artigo (#3 até #28), me limitarei à segunda.<br />
<br />
<i>#187 – Ambigüidade com o termo eugenia</i><br />
<br />
O primeiro problema é que novamente Nigro coloca sob o mesmo grupo questões morais totalmente distintas: totalitarismo, eugenismo, infanticídio, manipulações genéticas e clonagem. Não é objetivo do presente artigo discutir a moralidade de cada uma dessas questões. Na sessão anterior (#177 até #180), falei algo sobre o que torna o infanticídio uma questão moral, e em que condições ele é justificável e em que condições não é. Quanto às outras questões, me limitarei a apontar que o debate contemporâneo sobre eugenia, manipulações genéticas e clonagem – diferentemente do totalitarismo - em nada tem a ver com o totalitarismo e a “dissolução do indivíduo”, como Nigro aponta. O termo “eugenia” sofre do mesmo mal do termo “eutanásia” (que já foi discutido anteriormente): é associado a práticas nazistas que em nada se assemelham ao que se discute no debate contemporâneo. Enquanto que os nazistas enxergavam a “melhoria da espécie humana” como significando torná-la composta somente por indivíduos da raça ariana, o que se refere pelo termo “eugenia” no debate filosófico nada tem a ver com isso. Considere esse exemplo: supondo que se descubra, no futuro, que a causa de vários tipos de câncer e outras doenças é genética. Supondo que se descubra também que é possível eliminar essas doenças de uma vez por todas: basta uma modificação nos genes. Assim, ninguém mais nasceria vulnerável ao câncer e outras doenças. Eu não entendo como é que alguém ser invulnerável ao câncer pode significar a “dissolução do indivíduo”. Quer dizer agora que, para alguém ser um indivíduo, ele precisa ser tão vulnerável a doenças quanto a natureza o fez?<br />
<br />
<i>#188 – Diferença entre valor do indivíduo e qualidade da vida do indivíduo/ o defensor dos indivíduos contrário a melhorar a situação dos indivíduos</i><br />
<br />
Nigro e muitas outras pessoas que se colocam a discutir questões como eutanásia e manipulações genéticas cometem uma confusão básica (devido ao preconceito que possuem): não distinguem entre o <i>valor do indivíduo</i> e a <i>qualidade da vida</i> desse indivíduo. Os nazistas também igualavam as duas coisas: pensavam que se uma raça fosse “superior” (no sentido em que tivesse mais habilidades, fosse menos vulnerável a doenças, etc.), então que os membros dessa raça também valiam mais, enquanto indivíduos. Como já discutimos anteriormente, isso é um erro moral básico: aqueles que são mais fortes e habilidosos devem ter apenas mais deveres, e não, mais direitos (muito menos o direito de desconsiderar os interesses dos mais fracos). Para a mentalidade nazista, a constatação de alguém possuir algum problema genético é uma premissa para se inferir a conclusão de que esse alguém não merece respeito. Os que se negam a reconhecer que existem problemas que são genéticos, apesar de se colocarem como defensores da igualdade, partem da mesma premissa moral errada da qual partem os nazistas: de que o fato de alguém ter um problema genético é uma razão para considerá-lo como inferior (por isso, tentam negar a constatação factual de que existem problemas genéticos). Novamente, a discordância entre essas pessoas e os nazistas não é entre princípios morais (como vimos em #158 até #168), é entre os fatos. Ambos acreditam que, se alguém tem um problema genético, então que merece ser considerado como inferior. Os nazistas, partindo dessa premissa moral errada constatam o fato de que existem sim, doenças genéticas, e inferem daí a conclusão que se segue da premissa (de que essas pessoas não merecem consideração). Os que criticam a conclusão dos nazistas, mas partem da mesma premissa moral errada, têm que negar os fatos, para não admitir que a premissa está errada (e, para não admitir a conclusão que se segue logicamente dela). Por isso, negam que existam doenças genéticas. A situação é ridícula, pois são essas pessoas que se intitulam “defensores dos indivíduos” que, por partirem dessa premissa envolta numa confusão moral sem tamanho, são contra a práticas que podem melhorar e muito a vida dos indivíduos. Por outro lado, os que são rotulados por essas pessoas de desconsiderarem o indivíduo por aprovarem determinadas manipulações genéticas, defendem tais manipulações justamente pensando em melhorar a qualidade de vida (conclusão que surge da aceitação de que, quanto pior é a situação de alguém, maior consideração ela precisa) dos indivíduos atingidos pela decisão. É ridículo ver alguém que se intitula “defensor dos indivíduos” ser contra uma modificação genética que poderá curar o câncer, por exemplo, ao mesmo tempo que é a favor de matar animais não humanos sencientes (portanto, indivíduos) para qualquer fim, seja um fim importante, seja um fim banal. A situação é tão absurda, pois envolve uma confusão enorme. E dessa confusão resulta a conclusão de que, por exemplo, para dar igual consideração a alguém que não tem uma perna, tem-se que pensar que é errado lhe fornecer uma prótese; para dar igual consideração a alguém que tem neurofibromatose (a chamada “doença do homem-elefante”), então que não podemos lhe arranjar uma operação que torne menos pior sua condição, e que nem mesmo devamos procurar uma cura. Essa conclusão é imbecil. A negação em aceitar que sim, tais pessoas têm uma doença, só surge daquela premissa moral errada: de que, se alguém tiver mesmo uma doença, então que ela não merece consideração, ou que merece uma consideração menor. A conclusão moralmente correta é a contrária: quando alguém tem uma doença, ela merece prioridade; quanto pior a doença, maior a prioridade. É somente devido a existir um mundo cheio de analfabetos morais que é possível acontecer situações ridículas como essas: defesas da igual consideração entre os indivíduos são vistas como manobras nazistas; manobras que partem da mesma premissa moral que os nazistas são colocadas como defesa da igualdade pelos próprios auto-intitulados defensores da igualdade.<br />
<br />
<i>#189 – Veneração pelos processos naturais: desvalorização do indivíduo</i><br />
<br />
Outra possível raiz da confusão de Nigro talvez seja a veneração pelos processos naturais. Modificar aquilo que é natural (mesmo quando o que é natural resulta em algo terrível para os indivíduos, como a doença da neurofibromatose, a síndrome da dor crônica, a síndrome do pânico, a depressão e a síndrome de arlequim, por exemplo) é, para essas pessoas, ser arrogante e “brincar de deus”. É claro, essas mesmas pessoas buscam tratamento quando ficam doentes. Mas, como mencionei anteriormente, o fato de elas serem hipócritas não prova que elas estão erradas. O que prova que elas estão erradas é outra coisa, que pretendo discutir agora. Dessa discussão, podemos entender melhor por que a comparação entre os defensores da igualdade senciente (centrada nos indivíduos) e o ambientalismo holista, tal como presente na ecologia profunda [13] (centrado na desvalorização dos indivíduos e na valorização do todo) é, além de errada, espantosa: uma corrente é o oposto da outra, em termos éticos. Dessa discussão, gostaria de mostrar que é o pensamento de Nigro (ainda que o autor não perceba e não tenha má intenção), de ser contra modificar a natureza mesmo quando isso for altamente benéfico para os indivíduos (e altamente prejudicial caso não o fizermos) que têm semelhanças com a postura presente nos regimes totalitários e no ambientalismo holista: a desvalorização do indivíduo.<br />
<br />
<i>#190 – Diferença básica entre igualdade senciente e ambientalismo holista quanto ao que possui valor em si e valor instrumental</i><br />
<br />
Comecemos por notar que, se alguém é contra modificar um processo natural, mesmo que esse processo natural seja um inferno para os indivíduos atingidos por ele, então é porque esse alguém acredita que tais processos possuem valor moral (ou seja, que devam ser objeto do respeito). De outra forma, não faria sentido pensar que é errado modificar tais processos. E mais, alguém que pensa assim precisa acreditar que o valor moral de tais processos não é pequeno: é grande a ponto de anular o valor dos indivíduos. Reconhecer o valor dos indivíduos, pelo contrário, nos conduz à conclusão de que temos de aliviar o seu sofrimento, garantir que ele não sofra dano por privação, aumentar o seu desfrute, etc. Mencionei a veneração pelos processos naturais com vistas a agrupar essa visão e outras semelhantes de um lado, e a visão do respeito pelos indivíduos de outro. Outra visão semelhante à veneração pelos processos naturais (e que surge dela) é a visão do ambientalismo holista. No ambientalismo holista (tal como presente, por exemplo, na ecologia profunda), entidades como ecossistemas, espécies, a Terra, enfim, “o todo” têm valor. E, nessa visão, o valor dessas entidades é alto: não apenas supera o valor dos indivíduos em caso de conflitos de decisão para sabermos quem devemos preservar, como também os indivíduos só possuem valor à medida que forem instrumentos para manutenção do valor dessas entidades. É por esse motivo que se diz que, em visões totalitaristas (ou seja, que vêem valor apenas no todo, como por exemplo, a ecologia profunda), os indivíduos possuem <i>valor instrumental</i>. Nesse tipo de visão, o “todo”; seja esse “todo” um ecossistema particular, a Terra inteira, as espécies (não os indivíduos membros das espécies) ou os processos naturais em geral; é que possui valor em si. Já a visão que defende igual consideração para todos os seres sencientes é centrada no oposto: o “todo” (os processos naturais, os ecossistemas, a Terra inteira) possui valor instrumental para os indivíduos sencientes (e apenas quando tais coisas beneficiam os seres sencientes); já os seres sencientes possuem valor em si.<br />
<br />
<i>#191 – Pensar que igualar animais humanos e não humanos terminará no ambientalismo só pode vir da própria visão ambientalista da negação do valor do indivíduo quanto a animais não humanos</i><br />
<br />
Estando claro agora que as duas visões são opostas, é possível perceber a enorme confusão que Nigro fez. A defesa da igual consideração para todos os seres sencientes jamais terminará num raciocínio do tipo do ambientalismo holista. Defender que todo ser senciente merece igual consideração é se basear no valor do indivíduo. É defender que cada indivíduo senciente merece estar o melhor que for possível. O detalhe curioso é que, se Nigro conclui da defesa da igual consideração para todos os seres sencientes, que o “indivíduo necessariamente desaparece por trás da animalidade e da coletividade [...] o que resta é o discurso ecológico, o endeusamento da Terra e da sociedade” é porque se baseia na mesma visão ecológica que está a criticar: que os animais não humanos só tem valor instrumental (enquanto membros de espécies, ou partes de um ecossistema, ou quanto à sua utilidade para humanos, etc.). É por esse motivo que Nigro teme que se iguale animais não humanos a animais humanos em termos de <i>status </i>moral: ele pensa que, então, todos possuirão apenas valor instrumental para a manutenção do todo (mas, ele só pensa assim porque assume que o valor dos animais não humanos é instrumental). É só por desvalorizar completamente os animais não humanos <i>enquanto indivíduos</i> que Nigro pode chegar a uma conclusão absurda como essa. Como discutimos detalhadamente na sessão anterior (#169 até #184): a proposta dos defensores dos animais é elevar o status destes enquanto indivíduos, retirá-los da categoria de coisas (sejam coisas para usar como recurso ou coisas para a manutenção da espécie, do “Todo”, do ecossistema, etc.), e não, colocar os humanos nesse mesmo tipo de categoria de coisas.<br />
<br />
<i>#192 – A noção de indivíduo está atrelada à noção de senciência</i><br />
<br />
Infelizmente, (assim como também o fazem inclusive, por mais estranho que isso possa parecer, muitos ativistas dos direitos animais), Nigro confunde ética animal com ambientalismo. Não é possível defender a igual consideração para todos os seres sencientes e ao mesmo tempo negar o valor do indivíduo. Isso porque a noção de senciência está intimiamente atrelada à noção de indivíduo: não existe ser senciente que não seja, ao mesmo tempo, um indivíduo; e não existe indivíduo que não seja senciente. Isso porque, para alguém ser um indivíduo, precisa possuir uma mente, pois é a mente que faz a distinção entre sujeito e objeto. Para isso, é necessário a capacidade de sentir. Toda sensação precisa de um indivíduo que a sinta. É por isso que defender os seres sencientes é a mesma coisa que defender os indivíduos.<br />
<br />
<i>#193 – Resumo das diferenças principais entre visões centradas no indivíduo e visões totalitárias</i><br />
<br />
Voltemos então à divisão que fiz anteriormente. De um lado, temos a visão da igual consideração para todos os seres sencientes, que é centrada no valor do indivíduo, e que entidades não-sencientes possuem valor instrumental para os seres sencientes (ou seja, possuem valor apenas quando beneficiarem os seres sencientes). Do outro temos visões totalitárias, dentre elas a visão da ecologia profunda: são centradas no valor do “todo” (seja esse “todo” comunidades, sociedades, espécies, a Terra, ecossistemas, etc.), e os indivíduos possuem valor instrumental (ou seja, possuem valor apenas quando beneficiarem o “todo”). Uma diferença marcante, que às vezes é perdida de vista com relação aos dois tipos de visão, é que elas podem ser resumidas numa divisão assim: (1) Seres sencientes (indivíduos) possuem valor em si; entidades não sencientes possuem valor apenas instrumental; (2) Entidades não sencientes possuem valor em si; seres sencientes (indivíduos) possuem valor apenas instrumental.<br />
<br />
<i>#194 - Ambientalismo coerente (não especista) e incoerente (especista): porque é injustificável seja lá de qual forma apareça</i><br />
<br />
Vale a pena ressaltar, contudo, uma observação correta que está implícita no argumento de Nigro: que, para alguém ser coerente com o tipo de ambientalismo holista presente na ecologia profunda, alguém tem que rejeitar por completo o valor de seres humanos, enquanto indivíduos. Isso porque, como vimos, a visão moral embutida na ecologia profunda é que os indivíduos possuem valor apenas instrumental. Contudo, raramente encontramos uma postura ambientalista coerente. Uma das raras exceções é a visão de Penti Linkola [14] : ele rejeita o valor de quaisquer indivíduos, quer sejam humanos, quer sejam não humanos. Note que não estou a afirmar que, devido à sua visão ser coerente, então que está correta. Já expliquei anteriormente (#14 e #15) por que pensar assim é um erro: por que é possível alguém aplicar coerentemente um mau critério. Como explicarei a seguir (#197), a idéia de que indivíduos não possuem valor é um mau critério. O que é importante agora é notar que a maioria dos ambientalistas é incoerente quanto a esse ponto: eles rejeitam o valor de indivíduos apenas quando os indivíduos em questão são membros de outras espécies, e não, quando são humanos. Então, todas essas visões incoerentes de ambientalismo são necessariamente especistas, portanto injustificáveis moralmente. E são injustificáveis porque qualquer razão que explique o valor de seres humanos enquanto indivíduos explica ao mesmo tempo o valor de qualquer indivíduo nãohumano, enquanto seres sencientes. Então, seja lá qual a forma de ambientalismo (coerente ou incoerente), é injustificável: se coerente, é injustificável porque comete o erro de não reconhecer o valor de indivíduos (explicarei por que isso é um erro a seguir, em #197); se incoerente, é injustificável porque é especista.<br />
<br />
<i>#195 - Ética animal e ambientalismo não combinam: e os ambientalistas perceberam esse ponto</i><br />
<br />
O que é curioso em toda essa história é que é mais fácil para os especistas (do que para os defensores dos animais) perceberem que um ambientalismo coerente requer rejeitar o valor de indivíduos em geral (o que inclui rejeitar a idéia de igual consideração para qualquer ser senciente, seja humano, seja não humano), e que a aceitação do valor do indivíduo requer rejeitar o valor dos processos naturais. Aceitar a igual consideração para seres humanos, como vimos, requer aceitar a igual consideração para todo e qualquer ser senciente. Isso porque qualquer razão plausível que explique o valor de seres humanos enquanto indivíduos explica ao mesmo tempo o valor enquanto indivíduos dos demais seres sencientes. Aceitar que indivíduos possuem valor em si, por sua vez, requer a rejeição do ambientalismo (que envolve ou a visão de que indivíduos possuem apenas valor instrumental ao todo, ou então, mesmo admtindo <i>algum</i> valor nos indivíduos, que é sempre menor que o valor do “todo” não senciente). O próprio Callicott [15] , que é um ambientalista incoerente especista (aceita o valor dos indivíduos quando a questão são os humanos; rejeita o valor dos indivíduos quando se tratam de não humanos) percebeu uma incoerência no pensamento da maioria dos animalistas: tentar unir ética animal com ambientalismo.<br />
<br />
<i>#196 - Danos naturais</i><br />
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Como já detalhei em outros dois artigos [16], a vida que os animais levam na natureza, devido aos processos naturais mesmos (independentemente dos danos causados por humanos), é um inferno: a regra é a morte por inanição, parasitismo e predação, o que resulta que a qualidade de vida dos seres sencientes sujeitos aos processos naturais quase sempre se resume a apenas sofrimento intenso, do momento que nasce até o momento que morre (a maioria nasce apenas para morrer de inanição). Então, defender o dever de preservar os processos naturais (que, na maioria das vezes, provocam quase que uma maximização do sorfimento) é mostrar uma desconsideração total pela morte e sofrimento dos mesmos indivíduos que se diz proteger. É claro, Callicott menciona essa questão como uma tentativa de redução ao absurdo da proposta da ética animal [17]. Algo como: “vejam, se temos de considerar os animais não humanos enquanto indivíduos, temos de protegê-los da morte por inanição, parasitismo, doenças, predação, etc. – e isso é absurdo; logo, não devemos considerá-los como indivíduos”. Uma análise mais profunda, contudo, revelará que o preconceito, o absurdo, está na veneração pelos processos naturais, embutido na visão ambientalista e, infelizmente, na maioria dos que se dizem defensores dos animais. Afinal de contas, ninguém considera absurdo, uma vez tendo-se reconhecido o valor de seres humanos enquanto indivíduos, então que deve-se protegê-los do mal que sofrem por inanição, parasitismo, doenças, predação, etc. Todos esses danos são causados naturalmente, é verdade. Contudo, isso não é relevante, haja vista que se o dano é artificial ou natural não altera a característica do dano ser algo ruim, ser um prejuízo para o indivíduo. Para uma vítima, não faz diferença se ela sofrerá um sofrimento x devido a uma doença ou devido a um ataque de um humano. Se evitável, permitir que o dano aconteça ou praticá-lo ativamente são igualmente errados. Não direi mais nada sobre essa questão, no presente momento. Os que tiverem interesse no assunto ou objeções podem consultar os dois artigos mencionados.<br />
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<i>#197 – Por que indivíduos sencientes possuem valor e por que qualquer teoria moral plausível precisa aceitar esse valor</i><br />
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Já argumentei anteriormente explicando por que a senciência (#17 até #22, #26, #116, #128 até #130, #168, #192) é um critério moralmente relevante. Então, devido a isso, darei como algo não controverso que seres sencientes (indivíduos) possuem valor moral. Apenas recapitulando a razão central: seres sencientes são o tipo de seres que <i>valorizam</i>: faz diferença para eles estar num estado ou em outro. Todo ser senciente busca o prazer e foge do sofrimento. São o tipo de ser que precisa de consideração moral porque são vulneráveis (é possível prejudicá-los, por inflição de sensação ruim ou por privação de sensação boa). Note que já somente devido a seres sencientes possuírem valor moral, a visão incorporada no ambientalismo holista se revela moralmente errada, pois ela nega o valor de seres sencientes (e, o que é pior, sem um argumento que dê base para essa negação). Se adotarmos a visão da ecologia profunda, teremos de dizer que o erro em colocar fogo em outra pessoa não tem nada a ver com o fato de ser uma experiência horrível ser queimado, mas sim, que isso pode afetar prejudicialmente (e apenas <i>se</i> afetar prejudicialmente) um ecossistema, por exemplo. Obviamente, há algo de muito errado nisso. A razão principal para não queimar alguém é que o sofrimento é algo ruim. Então, se quiserem manter sua posição minimamente plausível, os proponentes do ambientalismo holista precisam incorporar a premissa de que os seres sencientes têm valor. Se não se reconhece nem que seres que possuem sensações de dor e prazer precisam ser considerados, fica mais difícil ainda dizer que entidades que sequer sentem alguma coisa, sequer tem alguma experiência, sequer desejam um estado ao invés de outro, precisam. Então, mesmo se reconhecerem o valor dos seres sencientes, os proponentes do ambientalismo holista tem uma tarefa muito mais difícil. Eles têm de provar não apenas que entidades não sencientes possuem valor; tem de provar que esse valor supera o valor dos seres sencientes. Para descobrirmos qual das duas visões devemos adotar (a visão da igual consideração para os seres sencientes ou essa visão de ambientalismo holista modificada para se tornar mais plausível), as perguntas cruciais que temos de responder, então, são as seguintes: entidades não sencientes possuem valor moral? Se possuírem, qual o tamanho desse valor? Minha conclusão, como veremos na seqüência, é que não precisamos responder à segunda pergunta, porque a resposta da primeira é “não”.<br />
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<i>#198 - Por que não funciona uma combinação de ética animal com ecologia profunda, nem mesmo se modificarmos as duas visões para atribuírem valor tanto a seres sencientes quanto a entidades não sencientes</i><br />
<br />
Antes de respondermos à primeira pergunta, é importante explicar por que não funciona a tentativa de juntar as duas posições. Essas tentativas são comuns por parte de alguns ativistas dos direitos animais. Como mencionei anteriormente, as duas visões são antagônicas: uma é centrada na idéia de que seres sencientes têm valor em si, e que o valor do “todo” é meramente instrumental; a outra é centrada na idéia de que o “todo” têm valor em si, e que o valor dos seres sencientes é meramente instrumental. Vimos acima que a visão da ecologia profunda, como é colocada inicialmente, é muito pouco plausível. Isso porque, como já analisamos detalhadamente antes (#17 até #22, #26, #116, #128 até #130, #168, #192) temos boas razões para pensar que os seres sencientes possuem valor em si. Se os indivíduos que valorizam não possuírem valor, fica muito difícil explicar que qualquer outra coisa tenha valor. Então, sugeri uma modificação na visão da ecologia profunda, para torná-la menos vulnerável a essa objeção. Modificada dessa maneira, a ecologia profunda pode ser entendida assim: “seres sencientes e algumas entidades não sencientes (a Terra, as espécies, os ecossistemas, etc.) possuem valor em si, mas o valor dessas entidades não sencientes supera o valor dos seres sencientes”. O que alguns ativistas dos direitos animais sugerem é modificar, também, a visão animalista, para que se reconheça que aquelas entidades não sencientes têm valor. Se fosse modificada dessa maneira, a visão da igual consideração para os seres sencientes seria assim: “seres sencientes e algumas entidades não sencientes (a Terra, as espécies, os ecossistemas, etc.) possuem valor em si, mas o valor dos seres sencientes supera o valor das entidades não sencientes”. Olhando bem para as duas definições é que podemos entender por que a junção não funciona: elas continuam antagônicas (uma continua dizendo que os seres sencientes têm mais valor, em casos de conflito; e a outra continua dizendo o oposto). Notadamente, o tempo todo, existem casos de conflitos. Se essa junção fizesse sentido, seria necessário um terceiro critério para desempates. Mas, antes de buscarmos tal critério, é preciso fazer aquela pergunta crucial que mencionei anteriormente: “entidades não sencientes possuem valor em si?”. Se a resposta for “não”, nem precisamos buscar esse terceiro critério. Se a resposta for “sim”, além da busca por esse terceiro critério, teria-se de responder outra questão importante: “por que essas entidades não sencientes (a Terra, os processos naturais, as espécies, os ecossistemas) e não outras (objetos artificiais, por exemplo)?”. Como mencionei anteriormente, penso que não precisamos nos preocupar com nada disso, porque a resposta da primeira pergunta é “não”.<br />
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<i>#199 – Por que entidades não sencientes não possuem valor: o experimento mental do coma total irreversível</i><br />
<br />
Para responder a essa pergunta (“entidades não sencientes possuem valor em si?”), vou recorrer a um experimento mental. Imagine que você está em posição de escolher o seguinte: (1) Ou você morre agora, nesse exato instante; (2) Ou você entra em coma total agora (onde você não terá sensação alguma, nem mesmo sonhos) e fica em coma total por mais cinqüenta anos; depois de passar cinqüenta anos nessa condição, no exato instante em que se completa 50 anos do coma total, você morre. Vamos supor, para melhor entendimento do exemplo, que não há nenhuma vida após a morte. A pergunta é: faz diferença<i> para você</i> alguma das duas opções? Não faz. Se você escolher a opção A, você se torna um corpo não senciente agora mesmo. Se você escolher a opção B, você também se torna um corpo senciente agora mesmo. Os cinqüenta anos do coma não fazem diferença <i>para você</i>. Não há como dizer que <i>você</i> foi mais prejudicado em uma situação do que na outra. Em todas as duas situações, você foi prejudicado porque perdeu de desfrutar (você foi impedido de ter sensações), mas, foi <i>igualmente</i> prejudicado (pois foi impedido de ter sensações na mesma medida, já que nos cinqüenta anos do coma você também não teria nenhuma sensação). É claro, você poderia objetar: “essas duas situações são diferentes moralmente sim; em uma há a angústia da família, a outra não”. Você poderia dizer, também, ao invés: “minha família é muito religiosa, e ficaria muito abalada se soubesse que não fizeram de tudo para me manter vivo”. Você poderia dizer ainda: “eu tenho uma preferência agora pelo meu corpo continuar vivo, mesmo sem sensação alguma”. Tudo isso pode ser verdade, mas o ponto é que nada disso prova que entidades não sencientes têm valor. Isso porque todas essas alegações apelam a preferências de seres sencientes (sua família, ou as suas preferências agora, enquanto você ainda é senciente). Então, em ambas opções no exemplo, você não valorizará mais nada. Sua vida biológica que virá a seguir, se escolher o coma total, não terá valor positivo (satisfação) nem valor negativo (sofrimento): será uma vida com desvalor (valor = 0).<br />
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<i>#200 - Como as visões biocentristas teriam de abordar o exemplo do coma total irreversível</i><br />
<br />
Recordemos novamente a questão que esse exemplo visa ilustrar (a saber, se entidades não sencientes possuem valor e, se sim, qual o tamanho desse valor). Ao endereçar essa questão, é importante lembrar que o holismo (a idéia de que apenas “o todo” e não os indivíduos possuem valor, como acontece na ecologia profunda) não é a única forma de visão moral que valoriza entidades não sencientes. Outro exemplo é o biocentrismo, tal como proposto por filósofos como Paul Taylor [18] e Gary Varner [19]. O biocentrismo, assim como o holismo ambientalista, também reconhece valor em entidades não sencientes. A diferença é que, no biocentrismo, cada organismo vivo individualmente possui valor, e, possui o mesmo <i>status</i> moral (valor em igual medida). Analisemos, então, no caso desse exemplo do coma total irreversível, o que nos mandaria fazer uma visão que reconhecesse igual valor para todas as coisas vivas, independentemente de serem sencientes ou não (a visão biocentrista): não só teríamos de respeitar o corpo vivo, que não é mais alguém (o “alguém” que ali estava já se foi há muito tempo), como teríamos de dizer que o respeito devido a esse corpo vivo é igual ao respeito que era devido quando havia ali um ser senciente, pois ambos podem ser igualmente prejudicados. Claramente há aí uma dificuldade, pois é difícil entender como é possível algo que não pode ter sensação alguma possa ser prejudicado, haja vista que não é possível lhe infligir sensação ruim alguma nem fazer com que ele perca de desfrutar (já que o desfrute para ele é impossível). A única maneira que se poderia dizer que um corpo vivo foi prejudicado é se fosse possível fazê-lo sair do coma e, por algum motivo, não se fizesse isso. Mas, note que o prejuízo nesse caso se torna inteligível porque ele sofre uma perda: a perda do desfrute que teria caso voltasse a ser senciente.<br />
<br />
<i>#201 – Como as visões ambientalistas holistas teriam de abordar o exemplo do coma total irreversível</i><br />
<br />
Há ainda uma implicação ainda mais absurda, no caso das visões que afirmam que, em caso de conflito, deve-se dar prevalência às entidades não sencientes (o “todo”, a biosfera, um ecossitemas, etc.). A tentação, nesse ponto, é dizer que essas visões enxergariam o corpo vivo como merecendo mais respeito do que o ser senciente que nele habitava. Contudo, essa acusação é falsa, pois a vertente da ecologia profunda que estamos a examinar aqui não considera valor em coisas individuais (no caso, o corpo vivo individual), mas apenas ao “todo” (espécies, ecossistemas, planetas, etc.). Contudo, há um sentido em que se pode acusar uma visão assim de valorizar em maior grau um mero corpo vivo do que um indivíduo senciente: já que, em se tratando de coisas individuais (sejam seres sencientes, sejam meramente vivos, etc.) essa visão atribui apenas valor instrumental, caso aconteça de o corpo meramente vivo colaborar mais com a manutenção do “todo” do que quando era senciente, então o valor do corpo vivo, de acordo com essa visão, é maior. É importante não confundir aqui com visões que vêem na preservação do “todo” valor instrumental para outros seres sencientes (como poderia-se dizer que um corpo vivo é instrumentalmente bom para pequenos insetos ou para adubar a terra, que gerará frutos para os seres sencientes, etc.). No tipo de visão que estamos discutindo, o valor instrumental é para o “todo” (que é uma entidade não senciente), e não para os seres sencientes que vivem nele.<br />
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<i>#202 – Por que seres sencientes são vulneráveis ao prejuízo e entidades não sencientes não são</i><br />
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É muito difícil entender como seria possível uma entidade não senciente ser prejudicada. Vimos que a possibilidade de se prejudicar um ser senciente se dá porque ele <i>valoriza</i> algo. Seres sencientes vêem valor positivo na satisfação e valor negativo no sofrimento. Se alguém lhes inflige sofrimento (agrega-se valor negativo à sua qualidade de vida, em relação ao que <i>estava antes</i>), ou se diminui-se sua possibilidade satisfação (coloca-se tal ser num estado de qualidade de vida de valor igual a zero) ou impede-se que a satisfação aumente (o que resulta numa qualidade de vida menor em relação ao que <i>poderia estar</i>), são prejudicados. É um tanto enigmático pensar como é que, na ausência de qualquer coisa semelhante (na ausência de qualquer valorização por parte do objeto que será atingido pela decisão), uma entidade não senciente (seja a Terra, os processos naturais, ecossistemas, espécies, idéias, sapatos, cartazes, etc.) podem ser prejudicados. É claro, poderíamos falar algo no sentido metafórico, para querer dizer que tais coisas foram destruídas ou “estragadas”: “o ideal da igualdade será ‘prejudicado’ se não for compartilhado”; “o sapato foi ‘prejudicado’ por ter que andar na lama”; “a espécie foi ‘prejudicada’ por ser extinta”. Em cada um desses casos, o uso é metafórico. No caso do ideal de igualdade, se ele não for propagado, quem é prejudicado são os indivíduos sencientes que estiverem na pior situação. No caso do sapato, quem foi prejudicado foi seu dono. No caso da espécie, quem foi prejudicado foram os indivíduos que morreram (isso somente se algum deles foi assassinado, e se viver era algo de valor positivo para eles, como já discutimos na questão da eutanásia, em #70 até #72 e #175 até #179).<br />
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<i>#203 – O “bem próprio” das entidades não sencientes: uso ou metafórico, ou “sencientomórfico”</i><br />
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Para ser possível alguém ser prejudicado, é preciso que haja um indivíduo que valorize alguns estados e desvalorize outros. Para isso, é necessário que o ser em questão seja senciente. Uma possível objeção, quanto a esse ponto, seria alegar que uma planta, por exemplo, valoriza alguns estados em relação a outros, porque só cresce em determinadas condições (o que é comumente chamado de o seu “bem próprio”). Esse uso, contudo, também é, ou metafórico ou “sencientomórfico”. É metafórico se o uso da expressão for o mesmo quando se diz, por exemplo, “o aspirador de pó ‘quer’ sugar o pó”, para se referir ao que vai acontecer se deixarmos o aspirador nas condições de funcionamento, e não para sugerir um suposto desejo por aspirar, por parte do aspirador. Se, por outro lado, se deduz, da constatação de que existem certos processos físico-químicos que orientam o crescimento de uma planta, que então há alguém “ali dentro” valorizando, então isso é um “sencientomorfismo”.<br />
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<i>#204 – Argumentos contra o fontismo</i><br />
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Se, quanto a esse ponto, alguém objetar que, no caso do aspirador alguém precisa colocá-lo em funcionamento e, no caso da planta (ou das espécies, da Terra, dos processos naturais, etc.) ela faz isso sozinha, isso não dá sustentação à conclusão de que, então esse tipo de entidade tem valor em si. Isso pelo seguinte motivo. Num caso assim, o<i> produto</i> das forças é similar naquilo que é moralmente relevante (ambos são não sencientes), diferindo apenas com relação aos tipos de força que os coloca em movimento (num caso, são forças <i>naturais</i>, no outro, são forças humanas, ou seja, <i>artificiais</i>), então o <i>objeto de respeito</i>, nesse tipo de visão, são as <i>forças originárias</i>, não os <i>produtos</i>. Nesse caso, tal argumento é culpado do preconceito que denominei “<i>fontismo</i>” em outro artigo [20] : algo é visto como objeto de respeito (valor em si) quando produto de forças naturais; já quando produto de forças humanas, é visto como tendo mero valor instrumental. Essa visão é problemática por três motivos principais. O primeiro, é que, para manter-se coerente, teria-se de dizer que os objetos que são produto de forças naturais possuem apenas valor instrumental para essas forças, e não valor em si (por isso tal argumento não serve para defender a existência de valor em si nesses objetos). O segundo motivo é que a eleição de qual força deve ser objeto de respeito é arbitrária: por que não o contrário? O terceiro, e principal motivo, é que, do fato de que uma coisa foi produto de decisão humana não se pode deduzir, disso, que então o produto dessa decisão possui necessariamente valor instrumental. Isso porque os humanos produzem outros seres sencientes (como quando tem filhos, por exemplo). Como já foi argumentado anteriormente (#17 até #22, #26, #116, #128 até #130, #168, #192, #197, #199, #202) seres sencientes possuem valor em si, e não valor instrumental. Alguém, nesse ponto, pode objetar que o valor do que os humanos produzem é instrumental apenas quando tal produto não for senciente. Contudo, isso é petição de princípio (assumir aquilo que o argumento pretende provar). O que o argumento pretendia era dar sustentação à conclusão de que objetos não sencientes possuem valor<i> instrumental quando são feitos por humanos</i>, e a razão oferecida para isso era a de que <i>tudo</i> o que os humanos fazem possui valor instrumental.<br />
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Portanto, temos boas razões para manter a tese de que apenas seres sencientes possuem valor. Essa tese é totalmente contrária àquela que Nigro atribui aos defensores dos animais, pois é uma tese centrada no valor dos indivíduos.<br />
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<b>Parte 11 - Conclusões finais</b><br />
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<i>#205 - Os reais motivos da sugestão do critério da posse da razão como critério de consideração moral: o especismo é um preconceito de aparências</i><br />
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Toda a análise que fizemos acima com relação ao especismo mostra não apenas que é um preconceito eticamente injustificável, como o racismo, nazismo, machismo, homofobia, mas também, igualmente a esses outros preconceitos, é um preconceito baseado na <i>aparência física</i> da vítima. Como vimos, os especistas tentam mascarar essa característica de seus preconceitos, alegando que estão a se basear em outra característica para traçar a linha divisória sobre quem merece e quem não merece consideração moral: a posse da razão. Há dois problemas fundamentais com essa tentativa: o primeiro é que, assim como raça, gênero e espécie, ela também é moralmente irrelevante para saber quem deve ter seus interesses considerados. Isso porque ela resulta, como foi apontado inúmeras vezes (#3 até #28), de uma confusão entre o critério relevante para saber quem deve ser responsabilizado pelas suas escolhas (a posse da razão) e o critério relevante para saber quem deve ser moralmente considerado (a possibilidade de alguém ser prejudicado, que depende, por sua vez, da capacidade de sofrer e desfrutar – o que implica em valorizar uns estados e desvalorizar outros - a senciência). O segundo problema é que as manobras <i>ad hoc</i> feitas pelos proponentes desse critério de consideração moral (a posse da razão) para incluir na comunidade moral humanos incapazes de razão indicam que a real motivação para a sugestão de tal critério revela, mesmo a despeito do que dizem, um preconceito de aparências físicas. Isso porque, na maioria das vezes (senão sempre) a sugestão de tal critério é trazida não por se pensar que o critério é relevante, mas como uma mera desculpa para se excluir os animais não humanos da consideração moral (por terem um formato de corpo diferente). Quanto a essa tentativa, podemos concluir a partir de uma das poucas afirmações isentas de erro moral que Nigro fez em seu texto: discriminar com base na cor da pele ou dos olhos – e também com base no fato de alguém ser peludo ou ter escamas, ter um rabo ou não, ter posse da razão ou não, eu acrescentaria – é, nas suas próprias palavras “coisa de imbecis”. Como todos os outros preconceitos de aparência, o especismo é igualmente imbecil.<br />
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<i>#206 – Conseqüencias do especismo e da visão da sacralidade da vida humana</i><br />
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Para quem ainda não se deu conta das conseqüências terríveis do especismo, é preciso lembrar que, mesmo que fosse verdade tudo o que Nigro acusa os anti-especistas (e, como vimos, a maioria das coisas não é, e as coisas que são verdadeiras, pelas razões que apontei acima, em #169 até #184, são moralmente corretas, ao contrário do que ele pensa), ainda assim, as conseqüências do especismo são muito piores do que qualquer outra coisa que se possa apontar. É a visão especista incorporada por Nigro e pela maioria das pessoas que manda torturar e matar, a cada ano, trilhões de animais não humanos, pelos motivos mais fúteis possíveis. É esse tipo de visão que produziu algo similar, em termos do número de sofrimento e mortes, a <i>5000</i> holocaustos somente nos últimos vinte anos. São os especistas que obrigam animais não humanos a viverem uma vida inteira de sofrimento, sejam galinhas espremidas todas na mesma gaiola que as impede de se mover e tem de viver com os ossos quebrados, além de receberem hormônios e terem seu metabolismo acelerado para que coloquem ovos o dia inteiro, sejam as vacas tratadas como “máquina de leite”, que tem de passar a vida inteira sem poder se mover, sendo estuprada, engravidada e tendo que ver seus filhos serem mortos como carne de vitela; sejam os bilhões de pintinhos que não tem outra coisa senão sofrimento desde que nascem e depois são colocados na pilha de descarte da produção de ovos (existe motivo mais fútil do que esse?), sejam todos os outros animais que morrem no tanque escaldante a passam uma vida inteira de sofrimento e os trilhões de peixes que são fisgados e içados e morrem por asfixia para que os humanos possam continuar a cultivar a prática imbecil autorizada pelo seu preconceito irracional. Isso sem contar os outros males que os animais sofrem, incluindo a morte, pelos outros usos (industriais ou artesanais) que os humanos fazem, e o inferno com que são obrigados a viver, na natureza (sofrimento que poderíamos fazer muito para aliviar se não fôssemos especistas, como já discuti nos dois artigos citados em #196). É a visão especista que faz com que cachorras sejam constantemente engravidadas para que seus filhotes sejam vendidos, e depois, geralmente, abandonados para morrer nas ruas. É a visão de pessoas que acreditam na sacralidade da vida humana, e que, portanto, acreditam que jamais deve-se tirar uma vida humana, seja lá em que condição esteja essa vida, que obriga milhares de humanos a terem negado o seu direito de morrer e serem obrigados a viver em condições de sofrimento extremo e inútil. Isso os conduz a se opor a <i>qualquer caso</i> de eutanásia, aborto e infanticídio. É esse tipo de visão que obriga alguém, por exemplo, a viver em situações de extremo sofrimento, nenhum prazer e nenhuma chance de recuperação. É esse tipo de visão que conduz a conclusões e atitudes morais que não pode ser descrita como outra coisa a não ser uma atitude de sádicos e moralmente doentes. Infelizmente, essas atitudes são a da maioria de nós, pior ainda por ser praticada todos os dias.<br />
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<i>#207 - O truque de retórica de argumentar contra a razão</i><br />
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Como vimos, temos razões de peso para rejeitar o especismo (mesmo que o anti-especismo fosse tudo de ruim que Nigro aponta, o que não é verdade). Isso porque, mesmo se o fato de darmos igual consideração a todos os seres sencientes fosse terminar em todas as conseqüências (imaginárias e altamente especulativas) que Nigro aponta, ainda assim, comparado com as conseqüências reais (e não, imaginárias) do especismo, tal situação não seria muito menos pior, pois envolveria ainda menor número de sofrimento e mortes. Nesse ponto, geralmente se começa a tentar argumentar contra a razão. Isso acontece geralmente depois de se perceber que a posição que se defende não possui boas razões a seu favor. Não penso que Nigro tentaria essa tática, pois é uma pessoa que afirma aceitar a razão. Minha crítica, nesse ponto, é a outras pessoas, que utilizam dessa tática estúpida e má intencionada. Essa é uma tática muito empregue, infelizmente. Muitas pessoas entram em um debate cheias de argumentos, acreditando que se tratam de bons argumentos. Quando se mostra, um por um, que tais argumentos estão errados, depois do nocaute do último argumento, a cartada final da pessoa é argumentar contra a razão. Infelizmente, essa tática de retórica, das mais nojentas, é muito utilizada por alguns defensores dos animais que teimam em utilizar argumentos ruins e descartar os argumentos bons. Afirma-se, comumente, por exemplo, que seguir a razão produz uma moralidade “fria”, isenta de emoções. O motivo dessa tática demasiada estúpida é que não é possível de se oferecer um argumento para se afirmar que a razão não é confiável. Isso porque, para esse argumento fazer algum sentido, a razão <i>tem de ser confiável</i>. Senão, <i>nenhum</i> argumento, incluindo o que diz que a razão nunca é confiável, faz sentido. É por isso que tentativas assim são auto-refutantes. O segundo problema com essa tática, quando utilizada como acusação de que seguir a razão produz um moralidade “fria”, isenta de emoções, é que ela resulta de uma confusão e mistura de dois âmbitos distintos da moralidade: descobrir qual a decisão correta (conteúdo da moralidade) e descobrir que sentimentos deveríamos fomentar para conseguir fazer as coisas corretas (o que estariam entre as virtudes). Com relação à primeira, o papel razão é imprescindível, pois, como já vimos anteriormente, se formos nos basear em nossas intuições, é possível que estejamos apenas reproduzindo preconceitos. Com relação à segunda, o papel da razão também é imprescindível, pois, se não soubermos a resposta para a primeira pergunta, e se não soubermos que sentimentos melhor conduzem a produzir o que foi concluído nas respostas da primeira pergunta (o que requer razão também), como encontraremos esses sentimentos então? Isso mostra que, ao contrário do que essas pessoas pensam, a razão não exclui sentimentos morais (aliás, a conclusão racional mostra que alguns sentimentos, como o da empatia, devem ser fomentados), o que ela exclui é a escravidão a sentimentos que impedem as pessoas de se livrarem de seus preconceitos (as impede de raciocinar bem). Por fim, essa tática é um truque de retórica dos mais nojentos porque seus proponentes o utilizam apenas quando percebem que seus argumentos são ruins. Isso mostra que nem seus proponentes acreditam no que estão a afirmar. Se acreditassem, começariam já por essa questão, e não, tentar argumentar em outra.<br />
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<i>#208 - A piada do caçador</i><br />
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Carlos Nigro termina sua postagem em seu site, com uma piada (que está localizada em seu blog abaixo dos comentários), que é a seguinte: “Era uma vez um czar naturalista que caçava homens; quando lhe disseram que também se caçam borboletas e andorinhas, ficou muito espantado e achou uma barbaridade”. Como já analisamos anteriormente, já que Nigro pensa que retrata o pensamento dos defensores dos animais, isso prova que seu pensamento está envolto numa confusão gigante em pensar que o anti-especismo se assemelha em alguma coisa ao ambientalismo defendido por, por exemplo, a ecologia profunda. Se Nigro realmente comete essa confusão por ignorância dos fundamentos opostos das posições anti-especistas e ambientalistas ou se é uma tática de retórica para retratar os defensores dos animais como pessoas anti-humanos só ele pode saber (acredito, pessoalmente, que o autor tenha boa motivação e só tenha se confundido quanto aos fundamentos dessas posições). Tomo a liberdade aqui de fazer uma versão da piada, cujo protagonista é um especista (que infelizmente, são a maioria dos humanos): “existia alguém que já aceitava que considerar alguém não digno de respeito com base na cor da pele ou a cor dos olhos desse alguém era coisa de imbecis. Ele já percebia que a cor da pele ou dos olhos não influenciava naquilo que era relevante para saber se alguém deveria ser respeitado: a possibilidade desse alguém ser prejudicado por inflição de sofrimento ou pela perda do desfrute. Quando lhe contaram que considerar alguém não digno de respeito com base na espécie biológica ou na posse da razão desse alguém era uma coisa igualmente imbecil (já que também não influencia naquilo que é relevante), ele ficou espantado e achou uma barbaridade”.<br />
Espero, sinceramente, que o Dr. Carlos Nigro, como pessoa racional e defensor do princípio ético da igualdade que se mostrou, reconheça que aquilo que explica o que torna os humanos dignos de igual consideração (a capacidade de sofrer e desfrutar) explica, ao mesmo tempo, por que todo e qualquer ser com a capacidade de sofrer e desfrutar, independentemente de espécie biológica, é digno de igual consideração moral. E, que seja muito bem-vindo como novo defensor da igual consideração para todos os seres sencientes.<br />
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Notas:<br />
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[13] Tenho aqui em mente as visões de CALLICOTT, J. Baird, “Animal Liberation and Environmental Ethics: Back Together Again”, en Eugene C. Hargrove (ed.), The Animal Rights/Environmental Ethics Debate: The Environmental Perspective (Albany: State University of New York Press, 1992), pp. 249-261; CALLICOTT, J. B. 1989. In defense of the land ethic: Essays in environmental philosophy. Albany: State University of New York; Hargrove, E. 1992. Foundations of wildlife protection attitudes. In: The Animal Rights/Environmental Ethics Debate: The Environmental Perspective, 151–183, ed. E. C. Hargrove, Albany: State University of New York.; LEOPOLD, A., A Sand County Almanac, New York: Oxford University Press, 1987; LINKOLA, P., Can life prevail?: A radical approach to the environmental crisis. London: Integral Tradition Publishing, 2009; NÆSS, A. 2005. The selected works of Arne Næss. Deep ecology of wisdom, vol. X.Dordrecht: Springer. NORTON, B. G. 1987. Why preserve natural variety? Princeton: Princeton University Press.<br />
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<br />
[14] Linkola, P., Can life prevail?: A radical approach to the environmental crisis. London: Integral Tradition Publishing, 2009.<br />
<br />
[15] CALLICOTT, J. B. 1989. In defense of the land ethic: Essays in environmental philosophy. Albany: State University of New York.<br />
<br />
[16] CUNHA. Luciano C., O Princípio da Beneficência e os Animais Não Humanos: Uma Discussão Sobre o Problema da Predação e Outros Danos Naturais. In: Agora: Papeles de Filosofia, Vol. 30, N. 2, 2001. ISSN 0211-6642; CUNHA, Luciano C., Sobre Danos Naturais. In: Ética mas Allá de la Espécie: La Consideración Moral de los Animales no Humanos, 2011. <a href="http://masalladelaespecie.files.wordpress.com/2011/01/luciano-carlos-cunha-sobre-danos-naturais.pdf">http://masalladelaespecie.files.wordpress.com/2011/01/luciano-carlos-cunha-sobre-danos-naturais.pdf</a><br />
<br />
[17] CALLICOTT, J. Baird, “Animal Liberation and Environmental Ethics: Back Together Again”, en Eugene C. Hargrove (ed.), The Animal Rights/Environmental Ethics Debate: The Environmental Perspective (Albany: State University of New York Press, 1992), pp. 249-261.<br />
<br />
[18] TAYLOR, P., Respect for nature, Princeton: Princeton University Press, 1986.<br />
<br />
[19] VARNER, G. 2002. Biocentric individualism. In Environmental ethics: What really matters, what really works, 108–120, ed. D. Schmidtz and E. Willot. Oxford: Oxford University Press.<br />
<br />
[20] CUNHA. Luciano C., O Princípio da Beneficência e os Animais Não Humanos: Uma Discussão Sobre o Problema da Predação e Outros Danos Naturais. In: Agora: Papeles de Filosofia, Vol. 30, N. 2<br />
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<br />Luciano Carlos Cunhahttp://www.blogger.com/profile/11543323145219198300noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-1743587667987089964.post-11439268186090343762012-12-19T07:30:00.004-08:002012-12-19T07:30:37.070-08:00Parte 9 – Argumentos de ladeira escorregadia<br />
<b>Parte 9 – Argumentos de ladeira escorregadia</b><br />
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<i>#169 – Exemplo de argumento de ladeira escorregadia</i><br />
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O Dr. Carlos Nigro escreve:<br />
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<i>“As expressões usadas ‘animais-humanos’ para diferenciar dos ‘animais-suínos’, ‘animais-peixes’, tem a intenção óbvia de deixar todas as espécies do Reino Animal num mesmo bloco indiferenciado. Disso decorre, logicamente, que uma criança vale tanto quanto um bezerro, um porco ou um hamster. Esta manobra para igualar seres-humanos aos animais já foi utilizada com muito sucesso pelos nazistas em relação aos ‘ratos’ judeus, por Stalin (com os ciganos e judeus) e, atualmente, em genocídios africanos. É muito mais fácil matar e domesticar outros seres-humanos se vermos neles simples animais sem autoconsciência do que se concebermos cada pessoa como alguém muito especial e único). Os regimes comunistas investem e encaram os cidadãos desta forma. Os favoráveis ao aborto e ao infanticídio, à pena de morte e à eutanásia também. O Homem animalizado escravizado pela inteligetsia”.</i><br />
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<i>#170 - Argumentos de ladeiras escorregadia não provam que o que está em questão é errado ou ruim (pelo contrário, tem de assumir que não é)</i><br />
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O argumento de Nigro exposto acima é um exemplo do que chamamos de argumento de <i>ladeira escorregadia</i>. Argumentos desse tipo basicamente dizem o seguinte: não se deve dar um primeiro passo em uma coisa que, a princípio, parece ser algo bom, pois pode escorregar para algo terrível e não ter mais volta. Então, a primeira coisa que precisa ficar clara com relação a argumentos de ladeira escorregadia é que eles não oferecem razão alguma para demonstrar que a coisa em questão (no caso, tratar todos os seres sencientes com igual consideração) é algo ruim. Pelo contrário, argumentos apelam para um suposto perigo para se escorregar para uma coisa ruim (o genocídio, por exemplo), justamente porque não conseguiram provar que a coisa em questão (no caso, a igual consideração de todos os seres sencientes) é ruim ou errada. Isso porque, se tivessem conseguido apontar algo de errado com a igual consideração não especista mesma, então não precisariam apelar para o perigo de se escorregar para algo ruim. Assim sendo, os proponentes de argumentos de ladeira escorregadia, se essa é a única objeção que eles têm à prática que estão a discutir, têm de admitir que, então, se ele não é moralmente boa, no mínimo é moralmente neutra (nunca, moralmente ruim).<br />
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<i>#171 - A proposta é melhorar as condições dos animais não humanos, e não, piorar as condições dos humanos</i><br />
<br />
O erro principal com o argumento de ladeira escorregadia empregue por Nigro, contudo, é outro. O erro torna a situação até engraçada (para não dizer ridícula), porque ele atribui aos defensores dos animais não humanos uma proposta que é <i>contrária</i> à proposta real. A proposta dos defensores dos animais não humanos, quando defendem que devemos dar igual consideração a todos os seres sencientes, independentemente de espécie, é a de que tratemos os animais não humanos sencientes <i>tão bem quanto</i> um ser humano <i>deveria</i> ser tratado; e não, que se passe a tratar os seres humanos como se trata os animais não humanos hoje (assassinando-os em massa a cada minuto, queimando-lhes vivos, arrancando seus membros, etc.). A situação desse argumento é risível. Não acredito que seja possível (nem que a pessoa tenha muita dificuldade em raciocinar) alguém entender que a proposta dos defensores dos animais seja diminuir a consideração pelos humanos a ponto de tratá-los como são tratados os animais não humanos hoje. Qualquer criança entende que a proposta dos defensores dos animais é melhorar a consideração pelos animais, e não, piorar a consideração pelos humanos.<br />
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<i>#172 – Todos igualmente numa situação ruim?</i><br />
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A confusão presente no argumento de Nigro pode ser explicada a partir de diversos motivos. O primeiro motivo é que talvez ele pense que o princípio da igual consideração prescreva apenas igualar os níveis de bem-estar dos indivíduos, não importando em que nível de bem-estar estes, no final das contas, irão se encontrar (assume o princípio igualitarista como sendo a única coisa moralmente relvante). É por esse motivo que não existe nenhum filósofo igualitarista que defenda que o princípio da igual consideração é a única coisa relevante para saber o que deve-se fazer. Qualquer igualitarista costuma combinar o princípio <i>igualitarista </i>ou com o do <i>prioritarismo</i> (a prioridade deve ser melhor a situação de quem está na pior situação), ou com o do <i>utilitarismo</i> (devemos maximizar a quantidade agregada de felicidade), ou com o princípio do <i>suficientialismo</i> (devemos estabelecer uma linha acima da qual pode-se dizer que alguém está bem, e abaixo, que está mal; quanto mais abaixo da linha alguém está, maior deve ser a prioridade em aumentar o bem-estar; quanto mais acima, mais justificável se torna retirar algo desse alguém para melhorar a situação de quem está pior), ou, com todos ou alguns desses princípios em conjunto. Novamente, não acredito que Nigro tenha feito realmente essa confusão. O que dá a entender é que ele quer, como tática de retórica, atribuir aos defensores dos animais uma visão que nenhum de nós defende. Só um muito mal entendedor do princípio da igualdade poderia pensar que os defensores da igualdade querem que todos estejam igualmente na pior situação.<br />
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<i>#173 – A igual consideração é o oposto dos preconceitos, pois estes dependem de atribuir valor diferenciado aos indivíduos</i><br />
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Segundo entendo o princípio da igual consideração e a rejeição do especismo, sim, é verdade que daí “decorre, logicamente, que uma criança vale tanto quanto um bezerro, um porco ou um hamster”. Isso é verdade, mas o que Nigro esquece de mencionar é que decorre logicamente da aceitação do princípio da igualdade, juntamente com a aceitação de que a felicidade tem valor intrínseco positivo, que todos esses merecem ter o máximo de felicidade possível (distribuída de maneira eqüitativa). Então, em nenhum sentido a igualação (em termos de merecer igual consideração) que os defensores dos animais fazem de humanos e não humanos lembra a manobra dos nazistas, de igualar judeus a ratos. Isso porque, diferentemente dos defensores dos animais (e, semelhantemente à visão de Nigro), os nazistas também viam a vida dos animais não humanos como valendo muito pouco. Então, quando os nazistas igualavam judeus a ratos, estavam querendo dizer que ambos os tipos de seres não valiam nada. Quando os defensores dos animais igualam todos os seres sencientes, o que querem dizer é que todos valem “o valor máximo”. Obviamente que Nigro entendeu esse ponto. Propostas morais tão distintas e antagônicas como estas (a defesa de que <i>ninguém</i> vale mais do que ninguém, e a defesa de que judeus e ratos valem bem menos do que os nazistas) não podem escorregar uma para outra. É exatamente por essa diferença fundamental que a igual consideração é exatamente o contrário de visões como o nazismo e o especismo: a igual consideração diz que ninguém vale mais do que ninguém (então, que ninguém tem o direito de escravizar, chacinar, ninguém); já visões como o nazismo e o especismo dependem de haver uma quantificação do valor dos indivíduos, e que uns sejam vistos com um valor tão baixo, comparativamente a outros, que torna justificável utilizá-los como se fossem meros recursos para os que valem mais. É por esse motivo que não faz sentido afirmar que a igual consideração implicaria em que todos valessem muito pouco. Isso porque, como todos valem exatamente em <i>igual medida</i>, não têm sentido quantificar o valor desses indivíduos (não confundir com quantificar a qualidade da vida que vivem, como veremos mais adiante, em #175 até #179). O argumento de Nigro seria como dizer que não devemos dar direitos às mulheres porque isso pode rebaixar o <i>status</i> dos homens; ou de que não deveríamos dar direitos a negros porque isso pode rebaixar o <i>status</i> dos brancos. O que dá a entender é que Nigro se apega tanto ao especismo que pensa que só o fato de se dar direitos aos animais não humanos já é rebaixar o <i>status</i> dele; mesmo que ele não tenha nada a perder com isso (a não ser o tipo de dieta que provavelmente mantém agora).<br />
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<i>#174 – Por que a autoconsciência não é moralmente relevante para o erro em assassinar e para a consideração moral</i><br />
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Outro erro presente no argumento de Nigro lembra o erro principal de argumentos anterior do mesmo autor, de pensar que o critério da posse da razão é moralmente relevante para se estabelecer quem merece igual consideração. Como já explicamos detalhadamente antes (#3 até #22), isso é confundir o critério relevante para saber quem deve ser responsabilizado pelo que escolhe (a posse da razão) com o critério relevante para saber quem merece consideração (a capacidade de sofrer e desfrutar). Dessa vez, Nigro parece dar a entender que o critério relevante para saber se alguém merece igual consideração é a capacidade para a autoconsciência. Nigro escreve: “é muito mais fácil matar e domesticar outros seres-humanos se vermos neles simples animais sem autoconsciência do que se concebermos cada pessoa como alguém muito especial e único”. Em primeiro lugar, é preciso clarear o que comumente se entende por autoconsciência. Diz-se que um indivíduo é autoconsciente quando esse indivíduo não apenas têm consciência das coisas, do mundo ao seu redor, mas também consegue entender que ele está no mundo (então, ele tem consciência não apenas de outros seres ou objetos, mas também de si) – em outras palavras, ele percebe que ele também é alguém. Definindo autoconsciência dessa forma, fica claro por que ele não é um critério moralmente relevante para saber quem merece igual consideração: é possível alguém ser prejudicado de muitas maneiras, mesmo que não tenha esse tipo de desenvolvimento mental. O que é relevante moralmente para saber se alguém sofre ou não uma perda ao ser morto não é que o paciente da decisão tenha consciência de <i>si</i>, mas que tenha consciência de <i>algo</i> que dê significado à sua vida (sensações de prazer, por exemplo). O peixe, quando é fisgado e içado, sofre uma dor extrema. Não é preciso ter autoconsciência (veja: não estou a afirmar que o peixe não tem autoconsciência; apenas que se ele tem ou não é moralmente irrelevante). O bebê humano, quando assassinado aos poucos dias de idade, sofre uma perda (a perda do desfrute futuro), e a existência dessa perda não depende da autoconsciência (o mesmo vale para o caso do peixe, por exemplo). Então, está claro que é um critério moralmente irrelevante. E, outro detalhe: mesmo se esse critério fosse relevante, não serviria para defender que todos os humanos possuem <i>status</i> moral superior ao dos animais não humanos. Isso porque muitos humanos (os portadores de determinadas doenças mentais) não possuem autoconsciência. Então, são pessoas como Nigro (e também os nazistas a quem Nigro se refere) que vêem os animais não humanos como “simples animais sem autoconsciência”. Anti-especistas, diferentemente de Nigro, vêem cada indivíduo senciente (independentemente de espécie, raça, gênero, posse ou não da razão ou da <i>autoconsciência</i> ou outras considerações moralmente irelevantes) como “alguém muito especial e único”. Então, é absurdo como é que alguém poderia pensar que enxergar as coisas dessa maneira poderia descambar para o nazismo.<br />
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<i>#175 – A analogia do nazismo com eutanásia, aborto, infanticídio e pena de morte também é falsa</i><br />
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Nigro também constrói outras falsas analogias. Ele mantém que a motivação dos nazistas (igualar judeus a ratos, no sentido de alegar que ambos valem quase nada) é a mesma não apenas dos defensores dos animais não humanos, mas também dos “favoráveis ao aborto e ao infanticídio, à pena de morte e à eutanásia também”. Como já vimos anteriormente, essa analogia com relação aos defensores dos animais é certamente falsa. A proposta dos defensores dos animais é igualar, em termos de <i>status</i> moral, todos os seres sencientes, independentemente de espécie, mas no sentido de que o bem de cada um deve ser <i>maximizado</i> (e não, minimizado) de maneira imparcial. Como vimos anteriormente (#172, #173) atribuir valor igual a todos nunca poderia justificar práticas como o nazismo, racismo e especismo, pois são práticas que dependem essencialmente da crença de que uns possuem valor maior (e, muito maior, a ponto das vítimas serem vistas como meros recursos) do que outros. Também é falsa a analogia que Nigro monta, do nazismo com as várias outras várias questões morais que menciona. Para se reconhecer que a analogia é falsa, não se precisa concordar com o ponto de vista de que eutanásia, aborto, infanticídio e pena de morte às vezes se justificam. Então, deixemos de lado, por um breve momento, a discussão sobre a moralidade dessas questões (cada questão dessa precisa ser discutida a parte uma das outras) e entendamos por que a analogia com o nazismo é falsa. A diferença crucial entre o nazismo e a defesa dessas posições morais é que os nazistas se baseavam num critério que não cumpria a exigência de imparcialidade. Os nazistas traçavam uma linha onde os que estavam acima dela (os arianos) jamais poderiam estar embaixo; e os que estavam embaixo, jamais poderiam estar em cima (os membros de outras raças). Os nazistas não aprovariam o modo como tratavam os judeus, se tal modo de tratamento fosse direcionado a eles. E, como vimos, a característica eleita pelos nazistas para explicar o que diferenciava o caso deles e dos judeus (a raça) é moralmente irrelevante, pelos motivos que já detalhamos antes (#158 até #168).<br />
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<i>#176 – Por que a analogia entre nazismo e eutanásia é falsa</i><br />
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Vejamos a analogia com cada questão moral separadamente. Comecemos pela eutanásia. Considere esse caso: alguém não têm mais chances alguma de recuperação de uma doença terminal e está sofrendo de maneira extrema, sem mais nenhum momento de prazer, e de qualquer maneira morrerá logo. Se alguém defende, por exemplo, que a melhor maneira de demonstrar respeito pelas preferências de tal pessoa (a menos que ela expresse que quer continuar viva, o que é raríssimo nesse tipo de situação) é abreviar o seu sofrimento (ou seja, eutanasiá-lo) <i>não</i> defende isso porque considera aquela pessoa inferior e que o seu bem não vale nada. <i>Pelo contrário</i>, defende isso porque realmente se importa com o sofrimento que passa aquela pessoa. E, se o sofrimento de alguém é visto como importante, é por que se considera o valor desse indivíduo. E mais: tal critério cumpre o requisito de imparcialidade. Alguém pode sinceramente afirmar: “esse é o modo correto de respeitar os interesses de alguém, e eu aprovo e exijo tal modo de tratamento, inclusive se acontecer de eu ficar nesse tipo de situação”. É importante não se esquecer desse ponto principal: os casos onde a eutanásia se justifica moralmente extraem sua justificativa moral das considerações pelos interesses do <i>paciente</i>, não do agente. É devido à preocupação e respeito pelo bem-estar e preferências do paciente que se defende que, em determinadas situações, a eutanásia se justifica. Não é objetivo do presente artigo estabelecer em que condições se fazem presentes essas justificações. Para os interessados, uma análise mais minuciosa pode ser encontrada em outros autores [10] . Contudo, alguns pontos relevantes básicos são esses: (1) Não há chance de recuperação; (2) O paciente morrerá logo; (3) O sofrimento é extremo e não há como aliviá-lo; (4) Tudo o que havia de disponível para curar o paciente já foi tentado e se mostrou ineficaz. Fora esses pontos relevantes, é preciso distinguir: (1) os casos onde o paciente possui condições de expressar sua preferência (caso em que essa deve ser respeitada); (2) os casos onde o paciente não possui mais preferências por estar inconsciente e não tê-las deixadas expressas, e ; (3) os casos onde o paciente não possui entendimento da sua situação (bebês, por exemplo). Uma das coisas que dificulta a análise moral séria dessa questão é que as pessoas tendem a chamar de eutanásia algo totalmente distinto do significado original (significado este que permeia todo o debate filosófico sobre esse tema). Eutanásia quer dizer “morte boa”, ou seja, aquela condição onde, comparada com a vida que está por vir e da qual não se pode escapar a não ser morrendo, a morte é um bem (pois a vida que está por vir é muito pior do que a morte, e não representa mais um bem, e sim, um grande mal). Isso é muito diferente de matar alguém que possui interesse em viver e que sua vida é algo de bom. Matar alguém que deseja continuar vivendo é assassinato, não eutanásia. A analogia da eutanásia com o nazismo é antiga, mas só existe devido a essa confusão básica. Para que a confusão não se repita: o assassinato visa favorecer os interesses do agente; a eutanásia visa favorecer os interesses do paciente. Os nazistas podem ter utilizado o nome eutanásia para se referir às suas políticas de assassinato, com o objetivo de manipular seus interlocutores. Cair nessa manipulação, como fez Nigro, impede alguém de pensar de maneira séria na questão ética da eutanásia. Nos casos onde a eutanásia se justifica, é o ponto de vista contrário a eutanasiar que pode ser legitimamente acusado de favorecer os interesses do agente, e desconsiderar totalmente os interesses do paciente. Pelo menos quanto a esse ponto, os que são contrários à eutanasiar nos tipos de caso que listei têm algo em comum com a motivação nazista: a meta é favorecer os interesses do agente (em não ter que matar um parente), ou o respeito por algum ideal abstrato (“a vida humana é sagrada” por exemplo), mas nunca favorecer os interesses e mostrar respeito pelo paciente, que deseja morrer e a vida já não lhe representa mais nada de bom. Assim, os contrários à eutanásia nos casos onde ela se justifica estão sendo sinceros (mas, nem por isso, moralmente corretos) se alegarem que estão preocupados com algum ideal abstrato que nada tem a ver com o bem dos outros, ou que estão preocupados consigo próprios apenas; mas, não estão sendo sinceros se alegam que estão a respeitar o paciente. Para quem ainda não se deu conta da realidade, são as pessoas contrárias à eutanásia que obrigam os portadores de determinadas doenças a viverem vários meses não tendo outra coisa senão sofrimento extremo e tendo que passar por inúmeras cirurgias das quais já se sabe que não adiantarão de nada. São os contrários à eutanásia que obrigam, por exemplo, alguém a continuar vivo, mesmo que esteja com o corpo todo aberto, sem os membros e não tendo outra sensação a não ser dores horríveis, mesmo sabendo que morrerá logo de qualquer forma. Tanto sofrimento inútil, que poderia ser facilmente evitado. Aquelas pessoas que são contrárias a tirar uma vida, seja lá em que condições se encontre essa vida, e sejam lá quais forem as preferências por morrer ou continuar vivo do indivíduo que vive tal vida, não defendem o <i>direito</i> à vida. Ao invés, defendem um <i>dever</i> de viver em condições onde a vida não representa mais nada de bom, mas sim, um verdadeiro inferno.<br />
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<i>#177 – O erro com regras absolutas sobre determinados tipos de atos: a razão que torna moralmente errado o ato em um caso pode não estar presente em outro caso cuja decisão moralmente correta pode requerer exatamente o mesmo ato – e vice-versa.</i><br />
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Para facilitar a análise da analogia com o infanticídio, aborto e pena de morte, temos de olhar para outra confusão, que é a raiz do pensamento de Nigro: provavelmente, ele acredita que, se uma decisão é errada em algumas situações, então que é <i>sempre</i> errada, em qualquer outra situação (mesmo em situações que não mantenham as mesmas propriedades moralmente relevantes entre si). Por exemplo, provavelmente ele pensa que, já que geralmente é errado matar seres humanos, então que é errado sempre – que não existem exceções a essa regra. Talvez seja isso que o conduza a se opor sempre à eutanásia, seja lá a situação que se encontre o paciente, por exemplo. Talvez ele pense que, caso se justifique matar um ser humano em um caso, então que é sempre correto matar seres humanos, seja lá em quais casos forem.<br />
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<i>#178 – Primeiro erro: as razões que justificam um ato em um caso podem não estar presentes em outras (onde o mesmo ato pode ser injustificável ou moralmente opcional) – e vice-versa, para todas essas três categorias (moralmente obrigatório fazer, moralmente obrigatório não fazer, moralmente opcional).</i><br />
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Existem dois erros básicos com relação a esse tipo de visão. O primeiro é não perceber que as condições que tornam justificável matar em um caso (o fato de não haver possibilidade de recuperação, o paciente estar em condições de sofrimento extremas, o sofrimento não ter como ser aliviado, o paciente expressar uma preferência por morrer, etc.) não se fazem presente em outros. Normalmente, as pessoas vivem vidas que, se já não contém satisfação, é possível conter; geralmente elas preferem continuar vivas, e assim por diante. Em casos assim, matar não se justifica.<br />
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<i>#179 – O que torna errado matar e o que não torna/ explicação do que é um dano por privação)/o que torna certo ou um dever matar, e o que não torna</i><br />
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O segundo erro surge devido a Nigro não entender quais são as características relevantes para explicar o erro em matar. E isso vêm do seu especismo. Nigro pensa que o que torna errado matar seres humanos é o fato deles serem humanos (o que é um argumento circular, como já vimos, em #23 até #28) ou o fato deles serem racionais (o que é confundir o critério relevante para ser responsabilizado com o critério relevante para ser considerado, como também já vimos em #3 até #28). Nenhuma dessas coisas explica o erro em matar. O erro básico em matar está que a vítima sofre uma perda. A perda de que falo é a perda do desfrute, da satisfação, ou seja, das coisas que fazem sua vida valer a pena. É claro, se a vítima for morta, não sentirá falta dessas coisas. Mas, essas coisas são um dano por privação, não por inflição. A vítima sofrerá uma perda, mesmo que não tenha consciência da perda que sofreu. Isso porque o desfrute é algo bom, e é ele que torna uma vida um bem. Para entender melhor esse ponto, temos de nos imaginar olhando para os resultados finais, de um ponto de vista “de fora”. Se o indivíduo A morrer agora terá desfrutado, ao longo de sua vida, por exemplo, +78 de felicidade. Se morrer daqui a 30 anos, terá desfrutado, ao invés, +149 de felicidade. Tendo em vista essas duas opções, podemos concluir que a segunda é melhor, e que A perdeu algo valioso por não estar na segunda situação, mesmo que não saiba disso (por estar morto). Defendi que a perda do desfrute é uma condição <i>suficiente</i> para haver erro em matar, mas não <i>necessária</i>. Outra condição suficiente, mas também não necessária, segundo entendo, é a <i>preferência</i> por continuar vivo. Mesmo em casos onde o desfrute no futuro é inexistente ou mínimo, e a pessoa em questão deseja continuar a viver, deve-se respeitar sua preferência por continuar vivo. Isso porque, não respeitar preferências é outra forma de prejudicar alguém. Nessas duas formas (perda do desfrute e violação das preferências) temos um indivíduo identificável de quem se pode dizer que foi prejudicado. Então, é isso que torna matar errado. Reconhecendo esse ponto, temos de reconhecer também que existem, então, casos onde não é errado matar (onde matar talvez seja até mesmo um dever). Uma condição que precisa estar presente é essa: não há possibilidade alguma de desfrute no futuro (ou ,que o desfrute é tão insignificante, comparado aos sofrimentos extremos, que não vale a pena tentá-lo). Nesses casos, a vida deixa de ser um bem, então, não faz mais sentido afirmar que alguém é danado pela perda dela (aliás, por ela se tornar um mal, o indivíduo é danado pela presença dela). Essa condição precisa ser pesada em relação ao respeito pelas preferências: é possível que a pessoa em questão também possua uma preferência por morrer (nesse caso, respeitar suas preferências é matá-la); ou é possível que, apesar de tudo, prefira continuar viva (nesse caso, respeitar suas preferências é mantê-la viva). Note que o critério das preferências não determina, nunca, isoladamente, o erro em matar. Ele sempre precisa ser pesado à luz do critério da qualidade de vida (a relação entre a quantidade de desfrute e a quantidade de sofrimento). Isso porque, é possível que alguém tenha uma preferência <i>irracional </i>por morrer. Por exemplo, alguém pode ter todas as chances de desfrute no futuro, não estar doente, e, por estar abalado com algum acontecimento, preferir morrer. Nesse caso, a preferência por morrer é irracional e continua sendo errado satisfazer essa preferência (ou seja, num caso assim, continua sendo errado matar). Tendo essas considerações em vista, podemos perceber que a idéia de que é sempre errado matar seres humanos só pode vir de uma confusão no que diz respeito<i> ao que</i> torna errado matar. Como vimos, as duas considerações básicas dizem respeito à qualidade de vida e às preferências. É isso que torna errado (nos casos em que é errado) matar seres humanos (e outros seres sencientes também, já que são capazes de desfrute e de preferências). Não é o fato de serem humanos.<br />
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<i>#180 – Que situações tornam o infanticídio justificável e que situações tornam injustificável</i><br />
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Tendo entendido esse ponto, podemos agora entender por que é que alguns casos de aborto e infanticídio se justificam. Comecemos pelo infanticídio. Considere esse exemplo (que, infelizmente, não é muito diferente de inúmeros casos reais): uma criança nasce sem estômago, sem rosto e com a espinha para fora do corpo. Sabe-se que ela viverá, no máximo, alguns dias, e não sentirá outra coisa senão um sofrimento extremo. Ser contrário ao infanticídio, num caso assim, é ser egoísta ao extremo. É demonstrar uma total desconsideração pela criança e seus interesses (é pensar que a criança não vale nada). Como foi mencionado no parágrafo acima, talvez Nigro seja contrário a qualquer caso de infanticídio por pensar que, se justificado o infanticídio num tipo de situação, se justificará toda vez que alguém desejar matar crianças. Isso é absurdo. Como vimos, as condições que justificam o infanticídio no tipo de situação que mencionei não estão presentes em outros tipos de casos. Um detalhe importante, que não pode ser perdido de vista, é que a eutanásia e o infanticídio se justificam com relação a considerações de respeito por quem será morto, e não por quem está matando. Levando em conta essa consideração importante, podemos ver que alguns tipos de infanticídio normalmente praticados carecem de justificativa e, portanto, são formas de assassinato. Por exemplo, existem algumas tribos indígenas que, quando acontece o nascimento de gêmeos, adotam a prática de enterrar os dois gêmeos vivos [11]. O motivo é a crença de que, quando nascem gêmeos, um deles é mal e o outro é bom, e não é possível saber qual é qual. Então é praticado o infanticídio (as crianças são enterradas vivas, sufocadas com folhas, envenenadas ou abandonadas para morrer na floresta). Esse é exatamente o tipo de caso onde o infanticídio <i>não </i>se justifica. Para começar, se carece de qualquer justificativa empírica para se afirmar de que esse será realmente o caso (que um deles se tornará mal). Em segundo lugar, somente o raciocínio indutivo na sua forma mais errada possível pode ver alguma relação entre o fato de nascer gêmeos e o caráter dos nascidos. Em terceiro lugar, mesmo que fosse provado empiricamente que, no futuro, algum dos dois será alguém mau, isso não prova a conclusão moral de que, então é certo matar esse alguém, antes que ele tenha feito algo de mal. Se isso fosse feito em nossa sociedade, qualquer um reconheceria a falta de justificativas. A crença relativista muito difundida no meio das ciências sociais, de que a justificação para o certo e errado dependem da cultura (que envolve uma visão extremamente distorcida sobre justificação em ética, como já discuti em outros artigos [12] ) talvez impeça algumas pessoas de perceber o quão irracional e estúpida é esse tipo de justificativa para o infanticídio. Esse é o tipo de caso onde Nigro teria toda razão em dizer que o infanticídio é totalmente errado, pois, para começar é feito com base em considerações (e, baseadas em considerações irracionais) sobre o interesse de quem mata, não de quem morre. Contudo, mais uma vez, é por Nigro não perceber o que torna errado matar (a perda do desfrute e a violação de preferências) que tende a enquadrar, todos sob uma mesma categoria, casos injustificáveis e justificáveis de infanticídio e eutanásia.<br />
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<i>#181 – Crítica a regras morais sobre tipos de atos sem exceção e especulação sobre os motivos que levam alguém a adotar tais regras</i><br />
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Devido à falta de prática com o raciocínio ético (que envolve, na maioria das vezes, descobrir <i>o que</i> torna certas ou erradas determinadas decisões) é que as pessoas tendam a ser dicotômicas e econômicas com relação às suas decisões morais: “ou casos desse tipo são sempre errados, ou são sempre certos”. O erro com esse tipo de visão é que o que torna justificáveis ou injustificáveis as decisões não são o tipo de ato que elas são (se é aborto, se é infanticídio, se é matar, se é deixar morrer, etc.), mas algumas propriedades moralmente relevantes que compõem as situações (notadamente, mas não só isso, o impacto que tal decisão terá na satisfação/sofrimento dos atingidos). E, mesmo que os tipos de atos devessem contar como estando entre essas propriedades relevantes, não fará sentido pensá-los como as <i>únicas</i> propriedades relevantes, já que, se um ato é certo ou errado, é por alguma outra razão (e essa razão precisa remeter à outra coisa moralmente relevante, que não o ato mesmo). As pessoas têm, então, necessidade (devido à falta de prática com o raciocínio ético) de pensar que, por exemplo, ou o aborto é sempre errado, ou é sempre certo. Isso é uma falsa dicotomia. A menos que eles tenham um bom argumento para dizer que é sempre um caso ou sempre outro, temos boas razões para analisar, à luz das considerações moralmente relevantes, cada caso separadamente.<br />
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<i>#182 – Condições moralmente relevantes para a análise da moralidade do aborto caso-a-caso</i><br />
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O caso do aborto é ligeiramente diferente dos casos de eutanásia e infanticídio, pois envolvem geralmente os interesses de dois indivíduos diretamente atingidos: a mãe e o feto. Para uma discussão séria da moralidade do aborto é preciso também distinguir casos onde o feto é senciente e quando ainda não é. Por exemplo, em estágio embrionário, não há ali nenhum indivíduo, apenas um aglomerado de células; já na última semana da gravidez o feto está tão pronto (capaz de sensações) quanto é quando nasce. Além dessa consideração importante, temos de lembrar que existem casos onde será possível para o feto ter uma vida saudável caso nasça, mas existem casos onde, se o feto chegar a nascer, será uma daquelas condições onde se justifica o infanticídio, de tanto sofrimento extremo não aliviável que ele passará. Temos de levar em conta também as situações onde a mãe corre risco de vida ou outro risco grave. E temos de levar em conta também casos onde não é possível salvar os dois, e casos onde a única opção é salvar a mãe, e a única maneira de fazer isso é matar o feto. Todas essas considerações tornam a questão da justificativa ou não do aborto muito mais dependente de uma análise caso-a-caso, pois cada caso poderá envolver uma característica moralmente relevante que não estará presente em outro. Mais uma vez: veja que nenhuma dessas considerações tem algo que se assemelhe, nem de longe, com a idéia nazista de que alguns indivíduos são inferiores. Uma justificativa ética precisa considerar os interesses de todos os atingidos de maneira imparcial.<br />
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<i>#183 – A questão da pena de morte</i><br />
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O último caso, da pena de morte, é totalmente diferente de todos os outros. Isso porque o que está em jogo, na discussão sobre a moralidade desses casos, é a questão da justiça <i>retributiva</i> e do merecimento. Está em jogo, por exemplo, saber se a questão do merecimento chega a tal ponto, em termos de relevância moral, onde se pode dizer que, devido a um ato passado, alguém não merece mais viver. Está em jogo discutir também se, caso existirem situações onde se justifica moralmente matar alguém por motivos de merecimento, então se isso automaticamente justificaria legalizar uma prática desse tipo (poderiam haver outros motivos que tornassem injustificável a prática da pena de morte – por exemplo, o risco de se condenar inocentes – mesmo se houver justificativa para matar alguém centrada no merecimento. Note que não estou dizendo que existem essas justificativas, nem que não existem. Eu, sinceramente, não tenho uma posição definida com relação a esse assunto, justamente por me faltarem leituras de obras importantes sobre o mesmo. Contudo, já que o objetivo aqui é responder a crítica de Nigro, e não, discutir a moralidade da pena de morte, vou me limitar a apontar que a analogia também nesse caso é falsa. Isso porque, diferentemente das políticas de assassinato nazistas, alguém que defende a pena de morte se baseia numa característica que é geral (ou seja, não está em um indivíduo específico). Segundo o defensor da pena de morte, alguém merece morrer devido a algo que <i>fez</i>, e não devido a pertencer a uma determinada <i>raça</i>. A diferença toda reside no fato de que judeus não podem deixar de ser judeus, e não colocam a vida dos outros em risco por serem judeus; alguém que fez um crime poderia tê-lo deixado de fazer, e acabou com as vidas de outros devido a isso. Um defensor da pena de morte poderia estar errado moralmente ao defender tal prática, mas não poderia ser acusado, como poderia ser acusado um nazista. de favorecer tendenciosamente alguns indivíduos em detrimento de outros. Ele poderia dizer, por exemplo: “qualquer um (inclusive eu) que fizer isso, deveria ser morto”. Se o que alguém fez no passado é relevante para saber como devemos tratá-lo no futuro, a reivindicação do defensor da pena de morte tem <i>alguma</i> plausibilidade (ainda que, no final, se revele moralmente errada, devido a outras razões). Isso é diferente da reivindicação nazista de que a raça é um critério moralmente relevante, que é implausível moralmente desde o início, pelos motivos que já vimos anteriormente (#3 até #28 e #158 até #168).<br />
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<i>#184 – Conclusão sobre os argumentos de ladeira escorregadia endereçados por Nigro</i><br />
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Devido ao fato de todas as analogias entre o nazismo e as questões morais listadas por Nigro serem falsas é que temos, então, boas razões para pensar que o temor da ladeira escorregadia possui bases muito fracas. Uma coisa, muito raramente (se é que alguma vez) escorregaria para outra.<br />
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Notas:<br />
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[10] Ver, por exemplo, RACHELS, James. The End of Life: Euthanasia and Morality. Oxford University Press, 1987; RACHELS, J., Can Ethics Provide Answers? And Other Essays in Moral Philosophy, Boston: Rowan & Littlefield, 1997; BEAUCHAMP, T.L. e CHILDRESS, J.F., Princípios de Ética Biomédica, 4 ed, São Paulo: Edições Loyola, 2002; SINGER, Peter. Ética Prática. 3 ed. Trad. Jefferson L. Camargo. São Paulo. Martins Fontes, 2002.<br />
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<br />
[11] Sobre isso, ver o Relatório do Centro de Investigação da UNICEF, em Florença, Madrid, fevereiro de 2004, disponível em <a href="http://www.hakani.org/pt/oque_e_infanticidio.asp">http://www.hakani.org/pt/oque_e_infanticidio.asp</a> e também a reportagem disponível em <a href="http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u389427.shtml">http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u389427.shtml</a><br />
<br />
[12] Ver, por exemplo, CUNHA, Luciano C. Sobre a Importância da Razão na Ética. Disponível em <a href="http://www.olharanimal.net/luciano-cunha/1420-sobre-a-importancia-da-razao-na-etica">http://www.olharanimal.net/luciano-cunha/1420-sobre-a-importancia-da-razao-na-etica</a><br />
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Luciano Carlos Cunhahttp://www.blogger.com/profile/11543323145219198300noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-1743587667987089964.post-53540320303860637482012-12-19T07:12:00.004-08:002012-12-19T07:12:52.788-08:00Parte 8 – O racismo por trás de argumentos que pretendem ser anti-racistas<br />
<b>Parte 8 – O racismo por trás de argumentos que pretendem ser anti-racistas</b><br />
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<i>#158 - Por que o racismo e o especismo são igualmente moralmente injustificáveis: o que é relevante para ser moralmente considerado</i><br />
<br />
De acordo com Nigro, o especismo é moralmente defensável, enquanto que o racismo não é. Como analisamos em detalhes nas sessões anteriores (#3 até #28), Nigro está errado ao pensar assim porque ambos os preconceitos são igualmente moralmente indefensáveis. A razão para isso é que ambos os preconceitos traçam linhas de divisões de grupos, com relação a quem deve ou não deve ser considerado moralmente, baseadas em critérios moralmente irrelevantes. A raça de alguém, assim como a espécie de alguém, como já vimos, são critérios moralmente irrelevantes para saber quem deve e quem não deve ser considerado moralmente porque são características que não influenciam na principal razão que faz com que alguém precise de consideração: a possibilidade desse alguém sofrer um dano. Vimos também que as duas formas básicas de alguém ser danado são por inflição de sensação ruim ou por privação do desfrute de sensações boas. Para alguém ser prejudicado, então, é necessário que esse alguém seja senciente (capaz de sensações). A senciência é, assim, o critério moralmente relevante principal para se estabelecer quem precisa e quem não precisa de consideração moral.<br />
<br />
<i>#159 - Por que é importante saber as razões que tornam esses preconceitos moralmente injustificáveis</i><br />
<br />
O racismo já é amplamente aceito como moralmente injustificável. O mesmo não se pode dizer do especismo. Um dos motivos para explicar essa presente situação se está no fato de que a maioria das pessoas que reconhece que o racismo é errado tira essa conclusão pelas razões erradas. Sim, como vimos (#3 até #28, #93, #94, #105, #108, #140 até #142, #146), o racismo é moralmente errado, mas não devido aos motivos que a maioria das pessoas pensa. Antes de analisarmos esses motivos, é importante lembrar que o motivo real que torna o racismo errado também torna o especismo errado: uma linha divisória é traçada com base em características moralmente irrelevantes. São irrelevantes por serem arbitrárias e nada terem a ver com o que faz surgir o problema ético em questão. O problema é que a maioria das pessoas pensa que o racismo é errado por outros motivos. Isso é um problema porque, quando analisamos os motivos endereçados por essas pessoas para explicar o que há de errado com o racismo (incluindo os motivos oferecidos por Carlos Nigro), vemos que eles partem do mesmo princípio moral (que está errado) do qual parte o racista. A discordância entre o racista e o anti-racista baseado em maus motivos é apenas em relação aos <i>fatos</i>, não quanto ao princípio moral do qual partem. Essa situação será melhor explicada a seguir.<br />
<br />
<i>#160 – Razões erradas para explicar o que há de errado com o racismo</i><br />
<br />
Vejamos os motivos pelos quais Carlos Nigro acha que o racismo é moralmente injustificável:<br />
<br />
<i>“Quanto ao racismo na espécie humana não passa de uma discussão de ignorantes porque não existe, geneticamente, raças humanas e discriminar o outro pela cor da pele ou pela cor dos olhos é coisa de imbecis”.</i><br />
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<i>#161 – Por que certas conclusões contra preconceitos no fundo, concordam com esses preconceitos e discordam apenas da questão factual</i><br />
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De acordo com Nigro (e, infelizmente, de acordo com muita gente), o motivo pelo qual não se deve, por exemplo, assassinar e torturar as pessoas com base em sua raça é porque “não existem geneticamente, raças humanas”. Ou seja, se ficar provado cientificamente que existem, sim, “geneticamente, raças humanas”, então Nigro e pessoas que pensam da mesma maneira teriam de pensar que o racismo está justificado. Isso é cometer uma confusão gigante com relação ao entendimento do que são os princípios éticos, sobretudo o princípio da igualdade. Essa confusão com relação à ética explica muitas atitudes por parte dos movimentos sociais. Os pretensos anti-racistas negam que existam raças humanas, pois acreditam que, <i>se existirem</i> esses limites biológicos bem definidos, então que o racismo está justificado. Muitos ativistas defensores dos portadores de determinadas doenças físicas ou mentais negam que tais pessoas sofram de alguma doença, pois acreditam que, se ficar provado que tais pessoas <i>estão mesmo doentes</i>, então que tratá-las como inferiores está justificado. Os defensores dos animais não humanos tentam provar, a todo custo, que estes também são capazes de razão; pois acreditam que, se ficar provado que os animais são irracionais, então que está justificado considerá-los como inferiores e tratá-los com menor consideração. Todas essas visões vêm de erros grosseiros sobre o que é a ética (ou seja, sobre o que justifica ou não uma decisão). Todas essas visões partem das mesmas considerações moralmente irrelevantes (que é o grau de inteligência ou a raça, por exemplo, que deveria determinar o grau de respeito que alguém precisa).<br />
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<i>#162 – Comparação entre os argumentos racistas e dos anti-racistas que no fundo são racistas</i><br />
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É importante definir quais as premissas do argumento de Nigro e quais as do argumento dos racistas, para que fique bem claro que ambos partem da mesma visão moral errada; sua única discordância é quanto aos fatos, e não quanto aos valores.<br />
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Olhemos mais de perto o argumento de Nigro:<br />
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(1) O que é relevante para saber se alguém merece mais ou menos consideração é a raça de alguém;<br />
(2) Entre humanos, não existem raças;<br />
(3) Logo, todos os humanos merecem igual consideração.<br />
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Olhemos mais de perto o argumento do racista:<br />
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(1) O que é relevante para saber se alguém merece mais ou menos consideração é a raça de alguém;<br />
(2) Entre humanos, existem raças;<br />
(3)Logo, de acordo com a raça, os humanos merecem consideração diferente.<br />
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<i>#163 – Por que as questões factuais são irrelevantes nos argumentos anteriores (porque a premissa maior da qual partem está errada)</i><br />
<br />
Note que os dois argumentos partem da premissa errada quanto à moralidade, a saber, de que os limites genéticos (no caso, a raça) são relevantes para saber se alguém merece ou não igual consideração. Não é de se admirar que, devido a essa confusão moral ser tão difundida, alguns ativistas defensores dos animais pensem que, para rejeitar o especismo como injustificável, seja preciso negar que existam espécies, biologicamente falando. Vamos supor, para efeito de argumentação, que amanhã toda a comunidade científica entre em consenso de que existem raças humanas bem definidas (e que fique também provado, por exemplo, que os da raça A possuem maior capacidade racional do que os da B). Será que isso gera uma razão para, então, justificar que os indivíduos da raça A mereçam consideração, enquanto que os da B não, ou que os da A mereçam maior consideração dos que os da B? Se alguém pensa que sim, é porque não entende a idéia básica envolvida no princípio da igualdade, que é um princípio ético.<br />
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<i>#164 – Um defensor da igualdade baseado no argumento de que “não há raças” não teria como objetar a outras formas de discriminação arbitrária onde houvessem limites factuais bem definidos</i><br />
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O próprio Nigro percebeu essa implicação do seu próprio raciocínio. Percebeu que, embora não seja possível colocar uma linha clara delimitadora das raças humanas, é possível colocar uma linha clara e delimitadora pela cor da pele ou cor dos olhos (e muitos outros limites biológicos claros, como o gênero, a quantidade de braços, o nível de inteligência de cada indivíduo, a altura, o peso, etc.). Nesses casos, o raciocínio de Nigro teria de admitir que, então, a discriminação estaria correta (porque o limite biológico que ele subentende ser relevante e afirma não existir com relação à raça existe, por exemplo, com relação à cor dos olhos). Só que, como Nigro mesmo admite, discriminar os outros pela cor da pele ou dos olhos é coisa de imbecis. Quanto a isso, estou plenamente de acordo. O problema é que, por Nigro não saber o que torna essa atitude imbecil, faz com que ele se baseie moralmente em outro critério igualmente imbecil (embora a intenção dele possa ser uma boa intenção): a espécie biológica da vítima. O que Nigro parece não ter entendido é que o que os filósofos denunciadores do especismo estão a criticar é exatamente isso: que a espécie biológica da vítima é um limite tão arbitrário e moralmente irrelevante quanto a raça, gênero, cor dos olhos, altura, peso, etc.<br />
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<i>#165 – O que realmente é o princípio da igualdade (igual consideração)</i><br />
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A primeira coisa que deve ser aprendida sobre ética é que, em ética, não queremos descobrir como as coisas são; queremos descobrir como as coisas <i>devem ser</i>. Então, a primeira coisa que deve ser aprendida sobre o princípio da igualdade é que não queremos descobrir se há alguma característica <i>factual</i> que seja igual para todos os indivíduos; queremos descobrir como devemos tratar os indivíduos. O princípio ético da igualdade é um ideal de igual <i>consideração</i>, e não de descrições sobre como os indivíduos possuem capacidades iguais, formatos de corpo iguais ou qualquer outro fato que os torne parecidos. Quando se fala que “todos os humanos são iguais”, o que se quer dizer não é que todos os humanos possuem formato de corpo iguais (porque isso é falso), e nem mesmo que possuem capacidades intelectuais iguais (porque isso também é falso), e nem que pertencem todos à mesma espécie biológica (o que é verdadeiro factualmente, porém irrelevante moralmente): o que se quer dizer é que todos devem receber<i> igual consideração</i>, independentemente dessas outras características.<br />
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<i>#166 - Características do princípio da igualdade e seus vários sentidos (igual status moral, igual consideração e igualitarismo)</i><br />
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Algumas características principais estão envolvidas no princípio ético da igualdade: (1) Ele <i>não descreve </i>como as coisas são; é, ao invés, um princípio normativo; diz como <i>deve-se</i> tratar os indivíduos; (2) Respeitando a exigência de imparcialidade, como vimos anteriormente (#113, #114, #119), cada indivíduo possui o mesmo <i>status</i> moral. Ou seja, um indivíduo não vale mais do que o outro. Esse é o primeiro sentido envolvido na idéia de igualdade moral: cada indivíduo vale o mesmo que o outro. (3) O objetivo, em termos de conseqüências, é que cada um dos indivíduos fique com níveis de bem-estar iguais (ou, o mais próximo possível). Esse é o segundo sentido envolvido na idéia de igualdade moral: o objetivo é igualar os níveis de bem-estar de todos os indivíduos. Uma questão que deixo em aberto (pois não interfere no nosso argumento), com relação a esse segundo sentido, é se a igualdade entre os níveis de bem-estar é algo intrinsecamente bom (bom em si mesmo) ou se é instrumentalmente bom (se é bom porque melhora a situação de quem está pior). (4) A distribuição daquilo que for um bem deve ser feita de maneira <i>eqüitativa</i>: ou seja, deve-se dar mais a quem tem menos, e menos a quem tem mais (isso segue diretamente da visão de que nenhum indivíduo possui status moral superior a outros). Essa característica responde à outra confusão bem freqüente: a de se pensar que o princípio da igualdade exige <i>tratamento</i> igual, e não, igual consideração (a igual consideração muitas vezes requererá tratamento diferente). O objetivo do princípio igualitarista, ao invés, é que cada um possa desfrutar o máximo possível de bem-estar, mas que cheguemos a níveis de bem-estar próximos para cada indivíduo (sendo que o objetivo é maximizar o bem-estar, mas não de maneira impessoal; ou seja, o objetivo é distribuir com eqüidade esse bem-estar). Isso porque, mesmo que a igualdade de bem-estar possua valor em si, ela não é o único valor (isso porque a satisfação possui valor positivo e o sofrimento valor negativo): se fosse, teríamos que considerar boa uma situação onde todos estão igualmente muito mal. (5) Da premissa de que deve-se dar mais a quem tem menos segue daí que aqueles que estão na pior situação devem receber prioridade (princípio prioritarista); (6) Respeitando a exigência de que casos relevantemente similares sejam tratados de maneira similar, se um interesse x receber a importância y quando aparecer no indivíduo A, deve receber o mesmo peso quando aparecer em qualquer outro indivíduo. O que importa é a qualidade do interesse, não seu portador. Interesses vitais (como não ser assassinado e não sofrer, por exemplo) devem ter prioridade sobre interesses fúteis (comer uma comida específica, por exemplo). Por esse motivo é que muitas vezes o princípio da igualdade é traduzido como princípio da igual consideração de interesses semelhantes. Note que esse já é um terceiro sentido da idéia de igualdade envolvida no princípio: a igual consideração de <i>interesses</i> que são semelhantes. Temos, assim, três sentidos da idéia de igualdade: igual consideração dos indivíduos; igualação dos níveis de bem-estar entre indivíduos; igual consideração de interesses semelhantes.<br />
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<i>#167 – Quando o princípio moral do qual se parte é ruim, não deve-se perder tempo investigar se as situações apresentam as características que esses princípios ruins dizem que são moralmente relevantes (análise factual-moral)</i><br />
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Repare que no princípio ético da igualdade não há nenhuma referência a divisões biológicas dos indivíduos. Isso porque as divisões biológicas tradicionalmente empregues para responder à pergunta “que critério utilizaremos para saber quem merece igual consideração” foram traçadas com base em critérios moralmente irrelevantes. Como já vimos anteriormente, raça e espécie são critérios moralmente irrelevantes porque não influenciam na possibilidade de alguém ser prejudicado. É a possibilidade de alguém ser prejudicado que faz com que necessite ser respeitado. Então, é errado utilizar a raça (e a espécie) como critério de consideração moral não porque “biologicamente falando, não existem raças”, mas sim, porque, se existem raças ou não, isso é irrelevante para saber se alguém precisa de respeito. É por esse motivo que aqueles que não fazem a menor idéia do que é o princípio ético da igualdade acham que o especismo se justifica: “biologicamente falando, existem espécies, enquanto que raças não existem”. Como vimos, não faz sentido perdermos tempo perguntando, quando queremos saber como devemos tratar os indivíduos, se existem raças ou espécies, porque ambos os critérios são moralmente irrelevantes.<br />
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<i>#168 - Por que a senciência é um critério relevante para se estabelecer quem são os indivíduos a quem devemos igual consideração/ por que os princípios éticos precisam de critérios que fazem referências a fatos/ que tipos de fatos são relevantes</i><br />
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Daí não se segue que categorizar indivíduos de acordo com alguma característica física seja sempre moralmente irrelevante. Se queremos saber quem precisará de cadeiras de rodas temos de dividir em grupos baseados numa característica biológica: os que conseguem andar e os que não conseguem. O que distingue a divisão com base em critérios factuais justificável da injustificável é se o critério escolhido é relevante ou não para a resposta da questão moral. Nesse ponto, é importante não fazer outra confusão freqüente. Não se deve pensar que, por que os princípios éticos são princípios normativos (eles não descrevem fatos, eles avaliam), então que seja errado fazer qualquer referência a considerações sobre fatos. Por exemplo, tendo entendido que o princípio da igualdade é um princípio normativo, alguém precisará responder à outra pergunta: “que critério devemos utilizar para saber quem merece consideração moral?”. Para responder â essa pergunta, como já respondemos antes, temos de perguntar o que torna necessária a consideração moral. E a resposta é que os indivíduos podem sofrer danos, de uma ou de outra forma. Se os indivíduos fossem totalmente invulneráveis, incapazes de sofrer qualquer tipo de mal (dano por inflição de sensação ruim, física ou psicológica, privação de prazer, privação da verdade, trair confiança, etc.), então não haveria sentido algum de se falar em consideração moral, porque ela não seria necessária. Para um indivíduo ser danado por inflição de sensação ruim ou privação do desfrute da felicidade (as duas formas básicas e mais importantes de dano), o indivíduo precisa ser senciente. É por esse motivo que a senciência, apesar de ser um critério baseado em características biológicas, ao contrário dos outros mencionados (raça, espécie, cor da pele e cor dos olhos) não é arbitrário, pois baseia-se numa característica moralmente relevante. O que nos torna iguais é que somos todos vulneráveis ao dano por inflição de sensação ruim ou por privação do desfrute. E, o “nós” refere-se a todos os seres sencientes. A diferença toda, é que a senciência, apesar de fazer referência a fatos, faz referência a fatos que possuem sempre conteúdo normativo moralmente relevante: desfrute tem sempre valor positivo e danos valor negativo (então, faz sentido investigar factualmente quem é capaz de desfrutar ou ser danado).<br />
Luciano Carlos Cunhahttp://www.blogger.com/profile/11543323145219198300noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-1743587667987089964.post-36558842726723055032012-12-19T07:06:00.000-08:002012-12-20T06:04:34.288-08:00Parte 7 – Sobre o egoísmo e suas derivações<br />
<b>Parte 7 – Sobre o egoísmo e suas derivações</b><br />
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<i>#136 – O argumento de que outros preconceitos não derivam do egoísmo</i><br />
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Em vários de meus artigos[8], defendi que o egoísmo é eticamente indefensável, e que outros preconceitos como especismo, racismo, homofobia e machismo são derivações direta desse tipo de preconceito. Nigro questionou essa última conclusão. Ele escreve:<br />
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<i>“Existem várias confusões conceituais e lógicas ao afirmar que “do egoismo deriva a homofobia, o machismo, o racismo e o especismo”. O egoísta e o altruísta são conceitos extremos, caricaturas fora da realidade. O egoísta ficaria sozinho, assim agiria contra si mesmo. O altruísta se beneficia com o próprio bem que faz. São situações misturadas indescritíveis”.</i><br />
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<i>#137 – Diferença entre egoísmo, altruísmo e igual consideração</i><br />
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O primeiro erro desse argumento é de ambigüidade: Nigro não está a se referir pelos termos “egoísmo” e “altruísmo” os mesmos conceitos que eu explicitei que estava a me referir com as mesmas palavras. Ao que parece, em seu argumento Nigro está a definir egoísta como alguém que<i> nunca</i> considera os interesses dos outros, e altruísta como alguém que<i> nunca</i> considera os seus interesses. Penso que seu argumento deve ser interpretado dessa maneira, pois, de que outra maneira os egoístas e altruístas poderiam ser “caricaturas fora da realidade”? Nos artigos que escrevi sobre egoísmo, defini “egoísta” como a atitude de só levar em conta os interesses dos outros quando isso convém ao agente (e não, <i>nunca</i> levar em consideração os interesses dos outros). Isso é muito diferente de nunca levar em conta os interesses dos outros. É por isso que o mundo está cheio de egoístas, e nem por isso eles estão isolados, agindo contra si próprios (isso seria muito bom se fosse verdade). Outro ponto importante é que o conceito que contraponho, em meus artigos, ao egoísmo, é a <i>igual consideração</i>, e não, o <i>altruísmo</i>. Opto por utilizar “igual consideração” justamente por ser comum a crença de que um altruísta considera <i>apenas </i>os interesses dos outros (ou, só considera os seus próprios interesses à medida em que isso satisfazer os interesses dos outros). Alguém que defende a <i>igual consideração</i>, por outro lado, acredita que interesses similares devem receber o mesmo peso, independentemente de qual for o indivíduo portador do interesse. Isso significa que aceitar a igual consideração implica em dar o mesmo grau de importância a interesses similares seja lá se apareçam no próprio agente ou em outros indivíduos (meus interesses não contam mais por serem meus, e os interesses dos outros não contam mais por serem dos outros) “Eu” e “outro” são considerações moralmente irrelevantes, e o raciocínio ético só começa quando percebemos esse ponto.<br />
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<i>#138 - O que há de errado com a teoria do egoísmo psicológico</i><br />
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O segundo erro, é que o argumento de Nigro incorpora as mesmas confusões presentes na conhecida teoria do egoísmo psicológico, teoria cujos problemas dediquei um artigo inteiro a apontar [9] . Não vou repetir aqui os argumentos que enderecei contra a teoria no mencionado artigo. O erro principal da teoria, contudo, é o de inferir que, já que um segundo fenômeno se segue sempre de um primeiro (a felicidade do agente seguiria-se sempre que um agente ajuda outra pessoa, de acordo com a teoria do egoísmo psicológico, o que também é questionável), então que o segundo foi necessariamente o que motivou o primeiro a ter lugar. Em outras palavras, quem acredita no egoísmo psicológico acusa quem ajuda os outros de ser egoísta: “você só faz o bem para se sentir bem com isso, e não por preocupação com o outro”. Nesse raciocínio estão várias confusões. A primeira, é que no raciocínio moral (como em outras formas de raciocínio), o que motiva um agente a tomar uma determinada decisão é, antes de tudo, reconhecer que tal decisão é a decisão correta. Reconhecer qual a decisão correta depende unicamente das razões que podem ser oferecidas a favor e contra as várias alternativas disponíveis para o agenete. Se o agente vai se sentir bem ou não fazendo o que escolher não conta como uma razão, em termos de justificativa ética (veremos por que a seguir, em #145). O fato de um agente se sentir bem por ter ajudado outro alguém é um <i>sub-produto</i> do agente ter percebido que fez a coisa certa, e não, o que geralmente motiva a decisão e a ação. O que motiva a<i> decisão</i> é perceber que uma determinada alternativa possui melhores razões a seu favor; o que motiva a <i>ação</i> é o agente tentar colocar em prática uma coisa por pensar que ela é correta (ainda que ela seja mesmo correta ou não). Fora esse erro principal, os proponentes de tal teoria parecem viver em um mundo a parte. Em qual mundo eles vivem, onde as pessoas que ajudam outros seres são beneficiados? Eu gostaria muito de saber que um mundo assim existe. No mundo em que vivo, infelizmente, as pessoas que ajudam os que necessitam, principalmente quando os beneficiados são os animais não humanos, geralmente são massacrados pelo restante da sociedade, sofrem perseguição, são ridicularizados, etc. É muito fora da realidade dizer que, em contextos assim, alguém se <i>beneficia</i> com o próprio bem que faz. Isso não quer dizer, é claro, que não existam pessoas que façam o bem por motivos mesquinhos (isso existe aos montes), como fazer o bem para ver a si próprio como um santo moral, quando não por medo de punição divina ou por medo de reencarnação, como acreditam alguns religiosos. O que isso tudo quer dizer é que é uma generalização apressadíssima, concluir, do fato de que <i>algumas pessoas às vezes </i>são assim (fazem o bem por motivos mesquinhos), então que <i>todas as outras pessoas</i> em <i>todas as situações</i> são assim, e que <i>só é possível</i> que seja assim. Ainda mais quando o argumento que sustenta toda a tese está envolvido numa confusão de pensar que, só porque um sentimento se segue de uma ação, então que certamente foi esse sentimento (e <i>apenas</i> esse sentimento) que motivou a ação.<br />
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<i>#139 – Mesmo se o egoísmo psicológico fosse uma teoria correta sobre a motivação não justificaria egoísmo normativo: Confusão entre moralidade da decisão (seja ato ou omissão) e moralidade da intenção</i><br />
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Mesmo que o egoísmo psicológico fosse plausível, não há nada nele que pudesse justificar o egoísmo. Isso porque, como o próprio nome já diz, é uma teoria psicológica (<i>descritiva</i>) e não, moral (<i>normativa</i>). Para entender melhor esse ponto, vamos supor, para efeito de argumentação, que a teoria do egoísmo psicológico fosse verdadeira, e que toda motivação por trás de atos de ajuda aos outros seja o benefício para o próprio agente. Tendo descoberto que, por trás de todo ato (seja altruísta, seja de igual consideração, seja egoísta), a motivação é igual, segue daí que todo ato ou omissão possui o mesmo valor moral? Não. O máximo que se poderia concluir disso é que todas as motivações (não os atos ou omissões!) possuem o mesmo valor moral, por serem iguais. As decisões egoístas continuariam tendo um valor moral negativo, por serem prejudiciais (e por outros erros que veremos na seqüencia, em #147 até #157). O erro envolvido de saltar de uma consideração para outra (avaliação sobre a moralidade da motivação e avaliação sobre a moralidade da decisão) é herança da visão que enxerga a moralidade das decisões como dependente da motivação do agente, e não das conseqüências sobre os atingidos. Não é necessário muito esforço para ver que esse raciocínio é ruim. Pegue por exemplo o ato de torturar uma criança. Do que depende a imoralidade desse ato? Obviamente, depende das conseqüências sobre a criança. Torturar crianças é uma coisa errada porque faz mal às crianças. Esse é o motivo principal de ser errado torturar: faz mal às vítimas. O fato do agente ter uma boa motivação em torturar (supondo que o agente pense que é certo torturar uma criança) não muda o erro. Nem o fato de alguém possuir uma má motivação para fazer um bem muda a moralidade <i>do bem que fez</i>. Ajudar os necessitados continua sendo um bem, mesmo quando feito, por exemplo, por motivos mesquinhos. A motivação, nesse caso, é que não foi boa. O erro todo reside em ver em conjunto duas coisas que precisam ser avaliadas de maneira distinta: a moralidade da <i>decisão</i> (seja ato, seja omissão) e a moralidade da <i>intenção</i>. A primeira visa responder o que deve-se fazer (é uma avaliação sobre a decisão que depende da avaliação sobre o que é um estado de coisas bom e o que é um estado de coisas ruim – no exemplo que dei, o estado de coisas ruim é o dano sobre a criança). Já a segunda visa avaliar o caráter do agente, não a decisão. A moralidade da intenção depende basicamente de se saber se o agente <i>acreditava</i> que estava fazendo algo certo ou não. A moralidade da decisão, ao invés, depende de uma decisão <i>ser</i> moralmente correta ou não (ter ou não justificativa a seu favor), o que independe das crenças dos agentes sobre se ela é correta ou não. É somente devido à plausibilidade dessa distinção que conseguimos reconhecer a possibilidade de alguém fazer um bem com uma motivação má e alguém fazer um mal, mas com uma boa intenção. Esses critérios são separados, e um não influi no outro. Se a moralidade da decisão dependesse da moralidade da motivação, então alguém estaria certo em fazer todo o tipo de coisa horrível, bastaria que esse alguém pensasse que a coisa é certa (daí, sua motivação seria boa e a coisa se tornaria automaticamente correta). Se fosse assim, teríamos o “toque mágico” de poder transformar uma decisão na decisão moralmente correta (fazê-la possuir justificativa a seu favor) simplesmente por acreditarmos que ela é moralmente correta (que possui justificativa a seu favor).<br />
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<i>#140 - Preconceitos agente-centrados e objeto-centrados</i><br />
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Desfeitas essas confusões, voltemos então à principal alegação do argumento de Nigro: o de que preconceitos como especismo, racismo, homofobia e machismo não são derivações do egoísmo. Antes de fazer a crítica a esse argumento, penso que há um sentido em que o argumento de Nigro é plausível. Contudo, casos onde esse sentido se aplica são muito raros. Para entender esse sentido, vamos relembrar que, com relação a esses preconceitos mencionados, são possíveis duas formas: <i>agente centrado</i> e <i>objeto centrado</i>. Essas duas formas não são exclusivas dos preconceitos; qualquer princípio que visa oferecer razões, seja justificável, seja injustificável, normalmente aparece em uma dessas formas. Então, a forma do princípio não indica se ele é justificável ou não. Então, esses preconceitos são injustificáveis não devido à sua forma (se objeto centrado ou agente centrado), mas devido a se basearem em características moralmente irrelevantes. Contudo, para melhor entendimento de qual o erro envolvido em cada um desses preconceitos, é importante começarmos a entender que diferentes formas eles tomam. Na forma agente centrado, o preconceituoso afirma que um determinado grupo merece um<i> status</i> superior porque é o seu grupo. Por exemplo, um racista <i>agente-centrado</i> dirá “cada um deve valorizar mais os membros <i>de sua</i> própria raça”. Já um racista <i>objeto-centrado </i>(ou, paciente-centrado) dirá “os membros da raça x valem mais”. A diferença é que o racista objeto-centrado manterá tal crença quer ele pertença à raça x ou não. O tipo de preconceito objeto-centrado onde o próprio proponente do preconceito não é também membro do grupo favorecido é raro de acontecer, mas acontece principalmente em indivíduos que pertencem a grupos geralmente já discriminados anteriormente como inferiores por outros preconceituosos. Por exemplo, existem pessoas de pele negra que consideram pessoas de pele branca como tendo valor maior, justamente por terem sofrido uma lavagem cerebral por parte dos racistas brancos, o que as fez passarem a acreditar que elas próprias valem menos. Essas pessoas (as vítimas, que acreditam que o preconceito que sofreram está correto) são racistas objeto-centradas. São racistas porque acreditam que a raça é um critério moralmente relevante. O racismo delas é objeto-centrado porque não depende da relação do agente com sua raça. Não é como dizer “cada um que prefira os da sua raça” (nesse caso, seria agente centrado: prescreve atitudes diferentes para cada agente), mas sim, “a raça x vale mais” (prescreve o mesmo tipo de atitude para todo e qualquer agente). É apenas quanto a algumas manifestações (que são a minoria, aliás) desse segundo tipo de preconceito (objeto centrado) que faz sentido afirmar que não deriva do egoísmo. Por exemplo, o humano de pele negra que defende que os humanos de pele branca são superiores pode ser acusado de racismo (por pensar, erroneamente, que a raça de alguém é um critério moralmente relevante), mas não pode ser acusado de egoísmo (pois a raça que defende como superior nem é a raça dele). O outro tipo, agente centrado, <i>necessariamente</i> deriva do egoísmo, pois prescreve que cada um respeite apenas os membros da <i>sua </i>raça, <i>sua</i> espécie, <i>seu</i> gênero, <i>sua</i> nação, <i>sua</i> opção sexual, etc. A maioria das manifestações do preconceito objeto-centrado também derivam do egoísmo, pois o grupo “x” a qual se reivindica possuir um status superior, quase sempre é o do próprio agente que faz a reivindicação.<br />
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<i>#141 – Preconceitos são injustificáveis por se basearem em características moralmente irrelevantes</i><br />
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Antes de continuarmos, é importante lembrar que preconceitos, seja lá na forma que vierem (agente-centrados ou objeto-centrados), são eticamente injustificáveis. O motivo disso, como vimos, é a que divisão dos grupos é feita com base numa característica moralmente irrelevante (maiores explicações em sessões anteriores desse texto, como #3 até #28, #89, #90), ou seja, não influenciam naquilo que torna o respeito necessário: a possibilidade de uma vítima ser prejudicada com nossas decisões.<br />
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<i>#142 – Racionalizações para camuflar o egoísmo por traz de determinadas reivindicações preconceituosas</i><br />
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Uma distinção importante é a seguinte: o preconceito agente-centrado é sempre derivado do egoísmo; o preconceito objeto-centrado pode ou não derivar do egoísmo. Essa segunda possibilidade, quanto ao preconceito objeto-centrado, torna difícil de se descobrir se alguém defende uma posição porque sinceramente acredita nela ou porque a utiliza como camuflagem para o seu egoísmo. Para entender melhor, considere esses exemplos de racismo paciente-centrado. O indivíduo A, que é lilás, defende que “a raça violeta vale mais”. O indivíduo A não pode ser acusado de egoísmo (pode ser acusado de racismo e de tolice, mas não de egoísmo), pois não pertence à raça que afirma valer mais. Já o indivíduo B, que é violeta, também defende que “a raça violeta vale mais”. Nesse caso, se o indivíduo B está sendo egoísta ou não, depende dos motivos pelos quais ele acredita que a raça violeta vale mais. Se ele acredita <i>sinceramente</i>, por algum <i>outro motivo</i> que não o fato de ele mesmo pertencer à raça violeta, que a raça violeta vale mais, então o seu preconceito não é derivado do egoísmo (o que, nem por isso, o torna justificável). Se, por outro lado, acredita que a raça violeta vale mais devido a ele mesmo pertencer a tal raça, então seu racismo deriva do egoísmo. O que complica a análise é que, normalmente os preconceituosos que tem seus motivos iniciais no egoísmo gostam de disfarçar, alegando outros motivos. Supondo, no exemplo, que a real motivação do indivíduo B defender que a raça violeta vale mais é porque ele pertence à raça violeta, então, ele é um racista por motivos egoístas, mesmo que seja um racista objeto-centrado. Contudo, imagine que ele pretende mascarar esse ponto, para não ser acusado de egoísmo e para tentar dar um ar de maior seriedade ao seu racismo. Provavelmente ele irá alegar que acredita que a raça violeta é superior por outro motivo. O problema é que ele, nesse caso, não acreditará <i>sinceramente</i> nesse motivo. O motivo alegado foi apenas uma racionalização, o motivo real foi outro.<br />
<i><br /></i>
<i>#143 – Racionalizações para não se admitir que a motivação de alguém para o especismo é o egoísmo</i><br />
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Fazendo a ponte com a questão do especismo, temos de reparar no seguinte. A única espécie cujos membros alegam que são moralmente superiores são os humanos. A forma de especismo defendida é objeto-centrada. Ou seja, o que é defendido geralmente é que os humanos valem mais, e não, “que cada um respeite apenas os da sua espécie”. O problema é que os defensores de que os humanos valem mais são, por acaso, todos membros da espécie humana. Todos eles se privilegiarão muito da aceitação dessa crença. Então, são todos muito suspeitos ao reivindicarem tal coisa. É claro, assim como no exemplo acima, do indivíduo violeta, os especistas sugerem outros motivos para explicar por que acreditam que os humanos valem mais (a maior posse da razão, por exemplo, que não se sustenta por motivos que já detalhamos anteriormente, em #3 até #28). Contudo, ao que parece, tais motivos são apenas racionalizações, não o motivo real. E o motivo real é que os humanos defendem o especismo porque estão na ponta tirânica da situação. Sinceramente duvido que os especistas, que não querem admitir que sua motivação é egoísta, defenderiam que, se fosse descoberto que uma outra espécie “vale mais” do que a humana, então que eles mesmos se ofereceriam como churrasco para os membros dessa outra espécie. Isso revela que sua motivação, sim, é egoísta, e os preconceitos, na imensa maioria dos casos, tem origem, sim, no egoísmo; apesar de todos os outros motivos utilizados como racionalizações para negar esse ponto.<br />
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<i>#144 – Exemplo de motivação incógnita para a defesa de uma posição que aparentemente é egoísta: a questão do “planetismo”</i><br />
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O próxima passagem no texto de Nigro deixa incógnita a motivação por trás da conclusão:<br />
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<i>“Nosso planeta Terra é mais importante que Marte. Eu prefiro que um asteróide caia em Marte do que aqui na Terra. Eu sei que você deve estar me xingando de planetista”.</i><br />
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A convicção de Nigro, de que é preferível que um asteróide caia em Marte do que na Terra pode ou não ter origem no egoísmo. Se o motivo real dele preferir que um asteróide caia em Marte do que na Terra for o de ele estar na Terra e não em Marte, então, com certeza a motivação é egoísta (pois, se ele estivesse em Marte, e for essa a motivação, então ele preferiria que o asteróide caísse na Terra). Contudo, se, <i>por algum outro motivo</i>, alguém manter a mesma conclusão, não é egoísta. Por exemplo, se Nigro acredita que é preferível o asteróide cair em Marte porque na Terra existem seres sencientes possíveis de serem prejudicados e em Marte não, então sua motivação não é egoísta. Da minha parte, concordo com a conclusão de Nigro quanto a esse ponto, exatamente por esse motivo: temos um critério imparcial para defender que é preferível que um asteróide caia em Marte do que na Terra: na Terra existem seres sencientes que podem ser prejudicados; em Marte, tanto quanto se sabe, não. Esse critério é imparcial porque, se fosse invertida a situação (se os seres sencientes estivessem em Marte e não na Terra), então teríamos razões para preferir que o asteróide caísse na Terra. Se existissem seres sencientes tanto na Terra quanto em Marte, então teríamos que dar igual peso aos interesses de cada um desses seres, independentemente de onde estivessem; fazer o contrário seria tornar verdadeira a acusação de “planetismo”, como o autor menciona. Nigro parece ter cometido todas essas confusões em seu raciocínio por ter deixado de fora (e pensado que eu os outros filósofos que tratam dessas questões também tínhamos deixado de fora), justamente o que é relevante: a senciência. Realmente, à primeira vista, parece uma coisa idiota uma pessoa defender que é ser “planetista” defender que é melhor que um asteróide caia em Marte do que na Terra. Mas essa acusação só é idiota devido a existirem seres sencientes na Terra e não em Marte. Se existissem seres sencientes em Marte, então a acusação faria todo sentido, e não seria nem um pouco idiota. Afinal de contas, o que haveria de especial na Terra que tornaria os seus seres sencientes mais valiosos do que seres sencientes de outros planetas, se existirem? Seria um preconceito equivalente ao nacionalismo: dizer que alguém vale mais porque nasceu em tal lugar.<br />
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<i>#145 - Falácia genética: explicar a origem da motivação é diferente de justificar a decisão</i><br />
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Começamos essa sessão analisando a origem da <i>motivação</i> por trás de se estabelecer uma linha divisória de consideração moral por localidade geográfica, e terminamos por avaliar a <i>moralidade</i> desse critério. Como foi mencionado acima, seja lá se a motivação para a existência de uma determinada visão moral venha do egoísmo ou não, nada disso é relevante para estabelecer se tal visão moral é justificável ou injustificável. Fazer o contrário seria confundir a explicação sobre a origem de algo (no caso, a origem de uma crença) com sua justificação (<i>falácia genética</i>). Algo pode ter surgido do egoísmo e ser uma coisa boa. Por exemplo, vamos supor, para efeito de argumentação, que a explicação contratualista para o surgimento da ética esteja correta. Ou seja, que o respeito pelo outro teve como origem histórica o auto-interesse (“não agrido você, e você não me agride, que tal?”). Mesmo que a motivação originária seja mesquinha, isso de nada serve para se concluir que o respeito pelo outro é algo ruim, e nem para se concluir que o respeito só faz sentido com tal motivação egoísta. Isso porque a <i>moralidade de uma decisão</i> (seja ato ou omissão) é uma coisa; a<i> motivação</i> do agente para realizá-la é outra – as duas coisas tem de ser avaliadas separadamente. E, além disso, perguntar “qual a motivação?” e “qual a moralidade dessa motivação?” (no sentido de ‘a motivação presente é boa?’; ‘que motivação alguém deveria ter?’) também exigem dois modos de raciocínio distintos para responder; o primeiro é descritivo, o segundo é normativo). Como já vimos detalhadamente antes (#3 até #28), tais preconceitos são injustificáveis por se basearem em características moralmente irrelevantes (seja lá a motivação que o preconceituoso tiver).<br />
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<i>#146 - O contratualismo não reconhece a igual consideração nem entre humanos</i><br />
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Com relação ao contratualismo, é necessário fazer um parêntese importante. Muitas vezes o contratualismo é trazido à tona com vistas a manter que o especismo, diferentemente do racismo e do machismo, é justificável. O argumento é o seguinte: já que a ética deve ser centrada em contratos (“eu não bato em você, e você não me bate”), os animais não humanos devem ser excluídos da consideração moral, porque não são capazes de fazer essas negociações conosco. Isso mostra, no entender dos proponentes desse argumento, por que o especismo é correto, ao mesmo tempo que mostra por que o racismo e o machismo são errados. O fato de alguém pertencer a uma determinada raça ou a determinado gênero em nada influencia na sua capacidade de fazer contratos, concluem os proponentes do argumento. E, concluem também, a partir disso, que a igual consideração entre humanos é um dever, enquanto que a igual consideração com relação a membros de outras espécies não é um dever. Esse argumento não funciona, por vários motivos. O primeiro, é que, se o contratualismo for uma teoria plausível, e se algum animal não humano tivesse a capacidade de contratuar, então, os contratualistas teriam de admitir considerá-lo. Então, não serve para justificar que a espécie de alguém é uma característica moralmente relevante de maneira direta. Ela se torna relevante apenas se estiver sempre atrelada à falta de capacidade de contratuar – o que pode nem sempre ser o caso. Isso nos conduz ao segundo problema: embora a raça ou gênero de alguém não influenciem diretamente na capacidade que alguém possui de contratuar, com certeza existirão membros de todas as raças e gêneros que, então, ficarão de fora da consideração moral: bebês, crianças muito pequenas, idosos senis, portadores de determinadas doenças mentais, pois não possuem capacidade para contratuar (ou, qualquer um de nós que, por algum motivo, perca essa capacidade). O que isso mostra é que tal argumento não serve para defender a igual consideração entre humanos. O terceiro problema deriva do segundo: tal argumento não conseguiria explicar o que há de errado com um opositor da igual consideração com relação a humanos que leve o critério da capacidade de contratuar a sério. Ou seja, que exclua da consideração moral também todos os humanos incapazes de contratuar (independentemente de espécie, raça, gênero, etc.). O quarto problema é que, assim como espécie, raça e gênero, a capacidade de contratuar também é moralmente irrelevante. Temos razões para considerar moralmente os outros indivíduos, e as razões mais básicas em nada tem a ver com a possibilidade desse alguém nos ameaçar. A razão básica para não torturar um bebê é que sofrer é algo ruim. Nenhuma razão adicional a essa é necessária para se considerar o fazer sofrer algo errado. Outras razões serão oferecidas, que indiretamente mostram o que há de errado com o contratualismo, quando analisarmos os problemas com a justificação moral do egoísmo, a seguir (já que o contratualismo parte da premissa que o egoísmo é justificado; ou seja, que só temos motivos para respeitar os outros se isso nos for conveniente):<br />
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<i> #147 - Avaliação moral sobre o egoísmo: definindo egoísmo</i><br />
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Devido a tudo o que foi explicado antes sobre falácia genética (#145), a avaliação moral sobre o egoísmo tem de ser discutida à parte. Publiquei outros dois artigos (citados em #136) onde o foco central é essa avaliação. Novamente, o que farei agora é expor apenas o argumento central explicando os motivos do egoísmo ser errado. Antes, contudo, é necessário deixar bem claro o que estou chamando de egoísmo: é a idéia de que o bem (as necessidades, interesses, bem-estar, preferências) de um agente lhe dão uma razão para agir no fomento desse bem, enquanto que o (necessidades, interesses, bem-estar e preferências similares) de outros indivíduos não fornecem razão para outros agentes (que não próprio indivíduo) agirem no fomento desse bem. Em outras palavras, o egoísta, diante de um determinado tipo de sofrimento (por exemplo, morrer queimado), dirá que o interesse dele próprio em não morrer queimado lhe dá uma razão para evitar de se queimar, enquanto que o mesmo tipo de interesse, quando aparece em outro indivíduo, não fornece as mesmas razões para que ele (ou qualquer outro agente) não queime esse outro indivíduo. Ou, ainda, mesmo que o egoísta admita que as necessidades dos outros geram razões para atender essas necessidades, sempre enxerga como se as mesmas necessidades, quando aparecem nele próprio, geram razões mais fortes para agir no fomento delas. Outro ponto importante é que é falso que o egoísmo propõe nunca levar em consideração os interesses dos outros: ele propõe levar apenas na medida em que isso for vantajoso para o egoísta (chamarei isso de consideração <i>instrumental </i>pelo bem dos outros). Quando entendemos que é isso que eu tenho em mente quando uso a palavra egoísmo, fica fácil entender por que Nigro está equivocado ao pensar que casos assim são extremos, “fora da realidade”. A maioria das pessoas é egoísta no sentido que defini. Nigro adota uma atitude egoísta nesse sentido, pelo menos quando as vítimas são animais não humanos. Ele reconhece que o seu próprio interesse em não morrer gera uma razão para ele próprio não se degolar, mas não reconhece que o mesmo interesse, quando aparece em outros indivíduos não humanos, gere as mesmas razões para que ele tenha o mesmo tipo de atitude (haja vista que aprova matar animais não humanos quando o interesse do humano não é fútil).<br />
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<i>#148 – Egoísmo objeto-centrado e agente-centrado</i><br />
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Dediquei dois artigos inteiros no tratamento da questão do egoísmo normativo (citados em #136). Minha conclusão foi a de que o mesmo não tem como se justificar. Enderecei nesses artigos muitos argumentos, então, o que se segue é apenas o principal deles. Assim como em outros tipos de preconceitos, o egoísmo também aparece na sua forma objeto-centrado ou agente-centrado.<br />
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<i>#149 - Defesas circulares do egoísmo objeto-centrado </i><br />
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Na forma de egoísmo objeto-centrado, o egoísta afirma o seguinte: “todos têm razões para dar prioridade a mim, porque eu sou mais especial”. É isso que explica a atitude do egoísta, em se sentir justificado em não considerar o bem dos outros (ou, considerar sempre em menor medida, mesmo que as necessidades sejam similares em grau) e ao mesmo tempo, se sentir ressentido quando alguém não considera o seu bem. Para que essa visão seja minimamente plausível, é necessário que o egoísta ofereça um argumento que explique o porque dele (e não qualquer outro indivíduo) ser mais especial. E o problema reside justamente aí: qualquer argumento que ele possa oferecer que não seja circular, automaticamente precisa rejeitar o egoísmo. O que ele poderia oferecer de argumento circular seriam as seguintes considerações: (1) Minhas necessidades devem ter prioridade porque ‘eu sou eu’. Isso é circular porque é assumir exatamente o que está em dúvida: “por que ele não qualquer outro?”; (2) Minhas necessidades devem ter prioridade porque são as únicas que eu me sinto motivado a fomentar. Essa resposta também é circular, porque a pergunta é exatamente “por que devo fomentar apenas as necessidades que me sinto motivado a fomentar?”, e “tenho justificativa para ter a motivação que tenho?”. Todas essas respostas assumem, sem perceber, que ele <i>já é</i> mais especial. Mas, é isso que elas deveriam provar.<br />
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<i>#150 - Defesas do egoísmo que provam que o egoísmo não é justificável (auto-refutantes)</i><br />
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Percebendo esse ponto, um defensor do egoísmo objeto-centrado deve reconhecer que a única forma de tornar plausível o que propõe é demonstrar que nele próprio, enquanto indivíduo, há uma outra característica (que não o fato dele ser ele mesmo, e independente dele ser ele mesmo) que o torna mais especial do que os outros indivíduos. O problema é que qualquer característica desse tipo necessariamente destrói a plausibilidade do egoísmo, enquanto teoria moral, (pelo menos na sua forma objeto-centrado). Por exemplo, supondo que um egoísta afirme: “eu sou mais especial do que os outros porque todos dependem de mim para sobreviver” ou “minhas necessidades devem ter prioridade porque estou numa situação pior do que a de todos os outros indivíduos”. Supondo, para efeito de argumentação, que essas afirmações fossem verdadeiras (que todos realmente dependessem dele para sobreviver, e que o indivíduo se encontrasse realmente na pior situação, em comparação a todos os outros – o que, na prática, é muito raro de ser verdade em relação a alguém que defende o egoísmo), então tal pessoa não fez uma defesa do egoísmo, porque o critério que ofereceu se baseia na exigência de imparcialidade. Ou seja, se a regra, no caso, é “dar prioridade ao indivíduo cujos outros dependem dele” ou “dar prioridade ao indivíduo que estiver na situação pior”, o egoísta tem de admitir que, se por acaso fosse <i>outro</i> indivíduo, e não <i>ele</i>, que estivesse em uma dessas condições, então que a prioridade deveria ser desse outro, e não dele. Assim, se os critérios fossem esses (que são critérios plausíveis), o fato do egoísta estar numa dessas condições é um mero fato contingente (poderia ser outro indivíduo). Portanto, não servem como defesa do egoísmo. Na vida real, contudo, essas defesas quase nunca são tentadas, porque geralmente os egoístas nunca se enquadram nessas duas condições (todos os outros dependerem dele, ou ele estar na pior situação). As tentativas mais utilizadas de defesa do egoísmo são realmente as circulares, mencionadas anteriormente. Contudo, repare no ponto importante: <i>qualquer</i> característica (e não apenas as duas do exemplo citado) que o egoísta poderia endereçar como defesa de que ele é mais especial (com vistas a fugir da circularidade) necessariamente destruiria a possibilidade do egoísmo se justificar (porque tal característica poderia estar em outro indivíduo). Essa constatação nos oferece, então, boas razões para pensarmos que o egoísmo objeto-centrado não é plausível.<br />
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<i>#152 – Características do egoísmo agente-centrado (universalizado)</i><br />
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Geralmente quando se percebe que o egoísmo objeto-centrado não é plausível enquanto teoria moral, parte-se para o egoísmo agente-centrado. Nos outros artigos que escrevi (ver artigos citados em #136), chamei essa forma de egoísmo de “egoísmo universalizado”. Em outras palavras, a diferença entre os dois tipos de egoísmo é a seguinte: “que todos dêem prioridade a mim” (egoísmo objeto-centrado) e “que cada um dê prioridade a si” (egoísmo agente-dependente ou universalizado). Uma diferença marcante dessa segunda forma de egoísmo, em comparação à primeira, é que no egoísmo objeto-centrado, como vimos, se a teoria fosse plausível, o egoísta teria razões para ficar ressentido se os outros não levassem em consideração o seu bem (porque todos teriam, então, razão para pensar que ele é mais especial); já no egoísmo agente-centrado, por se propor que cada um tem razões para considerar <i>apenas</i> o seu próprio bem intrinsecamente (e o bem dos outros apenas instrumentalmente), então os proponentes desse tipo de egoísmo não tem razões para ficarem ressentidos com alguém que não leve em consideração o bem deles.<br />
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<i>#153 - O que há de errado com o egoísmo, mesmo universalizado</i><br />
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Será essa segunda forma de egoísmo um pouco mais plausível do que a primeira? Geralmente, os que defendem o egoísmo universal alegam que tal forma é mais plausível com o seguinte argumento: “ninguém está dizendo que ‘eu sou mais especial que os outros’, em termos objetivos; se está dizendo é que ‘cada um é mais especial para si’”. A pretensão de plausibilidade desaparece quando investigamos mais de perto o que isso (“mais especial para si”) quer dizer. O que dá a entender, nesse tipo de reivindicação, é o seguinte: que ninguém tem razões para acreditar que é, de um ponto de vista objetivo, mais especial do que os outros, mas que, contudo, cada um deve, <i>apesar disso</i>, se considerar mais especial quando é ele próprio que está decidindo como agir. O egoísmo objeto-centrado é baseado na ilusão de que “sou mais especial do que os outros”. Já o egoísmo universal é baseado na crença impossível de ser verdadeira, de que “cada um é mais especial do que todos os outros”; ou ainda, na pura irracionalidade de “sabemos que ninguém é mais especial do que ninguém, mas, mesmo assim, vamos agir como se isso não fosse verdade”.<br />
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<i>#154 - Interpretando o “cada um é mais especial para si”</i><br />
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Além disso, a idéia de “cada um é mais especial <i>para si</i>” é enigmática. O que isso quer dizer? Que cada um <i>acredita</i> que é mais especial que os outros? Se for esse o caso, a frase não deveria ser “sou mais especial para mim”, mas sim, “para mim (na minha opinião), sou mais especial”. Mas, se for interpretada dessa maneira, não se tem uma defesa do egoísmo agente-centrado, e sim, objeto-centrado. Ou seja, o que se quer dizer, então é que “na minha opinião, sou mais especial (em termos objetivos)”. Como vimos acima, temos razões de peso para rejeitar essa visão. Outra maneira de interpretar essa frase (“cada um é mais especial <i>para si</i>”) seria “cada um tem um vínculo afetivo maior consigo próprio do que com os outros”. Se for interpretada dessa maneira, o argumento que se pretende construir a partir dessa premissa (mesmo que ela seja verdadeira no caso de muita gente, enquanto premissa descritiva) é o de que o egoísmo está moralmente justificado. Só que isso é também circular, de maneira igual ao argumento circular já analisado, normalmente utilizado em defesa do egoísmo objeto-centrado: “tenho mais razões para fomentar minhas preferências porque me sinto mais motivado a fomentá-las do que as dos outros”. A circularidade envolvida é não perceber que a pergunta que se faz é “por que o fato de um agente ter um vínculo afetivo maior com alguém (no caso, o agente para com ele mesmo) justificaria a decisão de que esse alguém deve receber prioridade?”. Sem perceber, nesse argumento, já assume-se que o próprio agente está justificado em enxergar-se como tendo valor maior, quando é ele que decide. De que outra maneira poderia ele pensar que o fato dele ter vínculos afetivos com alguém (no caso, ele próprio, mas, poderia ser outro alguém, ou outro objeto) torna esse alguém mais valioso? A única forma de pensar isso é enxergá-lo como tendo um valor especial, um “toque de Midas” que torne os objetos do seu vínculo afetivo mais especiais. Só que, como sabemos, isso é circular. Alguém só teria justificativa para pensar que esse vínculo afetivo maior é uma razão para dar prioridade a si próprio se tivesse razões objetivas para acreditar que o <i>objeto</i> desse vínculo (no caso, ele mesmo) possui valor maior – o que, como vimos analisando as defesas do egoísmo objeto-centrado, é falso.<br />
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<i>#155 - O principal erro do egoísmo universalizado</i><br />
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Na defesa do egoísmo universalizado, está implícita a crença de que, de alguma maneira, o fato de ser uma determinada pessoa que está a decidir, é sempre relevante para saber o que ela deve decidir. Os proponentes do egoísmo universal dizem o seguinte: “a preferência x gera uma razão para ser fomentada apenas se ela aparecer no mesmo indivíduo que está a decidir sobre se deve fomentar ou não a preferência x”. Vemos que tal crença é um erro moral quando nos perguntamos, nos casos onde a preferência x é uma razão para fomentá-la, de acordo com o egoísmo universal (a saber, os casos onde a preferência x aparece no próprio agente decisor), <i>o que faz</i> com que tal preferência seja uma razão para fomentá-la. Por exemplo, quando um egoísta universal diz que o sofrimento gera uma razão para ser aliviado (preferência x, nessa caso = alívio do sofrimento) quando aparecer no próprio agente que toma a decisão sobre se deve fomentá-lo ou não, temos de perguntar o seguinte: <i>o que há no sofrimento</i> que faz com que gere razões para ser aliviado, nos casos em que deve ser aliviado, e não, aumentado? A resposta sincera só pode ser a de que sofrer é uma experiência ruim. Contudo, é por isso mesmo que o egoísmo (mesmo na sua forma universalizada) é errado: porque o sofrimento não deixa de ser uma experiência ruim quando aparece nos outros. <i>O que gera razões</i> para alguém decidir (no caso, o valor negativo do sofrimento) e que gera razões que indicam <i>como</i> deve decidir, é como uma determinada decisão atinge alguém na <i>condição</i> de paciente da decisão. Mesmo o egoísta quando reflete sobre como fomentar suas preferências olha para si próprio na condição de <i>paciente</i> de sua decisão. Ou seja, ele precisa olhar para si próprio como se fossem dois (um na condição de agente, outro na condição de paciente da decisão). As razões sobre <i>como</i> deve-se agir vêm unicamente da condição de paciente (a condição de agente é relevante apenas para saber se <i>há possibilidade</i> de a decisão influenciar no curso dos eventos), pois dependem de como uma decisão x afetará <i>alguém</i> (no caso, <i>por acaso</i>, esse alguém é ele mesmo, mas poderia não ser), beneficiando-o ou prejudicando-o. O problema, para o egoísta é que razões, como vimos, são sempre <i>gerais</i>: se elas nos ajudam a responder o que fazer num determinado caso particular, ao mesmo tempo apontam que deveríamos fazer o mesmo em casos relevantemente similares (ou seja, casos que mantenham em comum as características relevantes). Então, se a razão pela qual se deve aliviar o sofrimento é porque se trata de uma experiência ruim, isso automaticamente gera razões <i>prima facie</i> para aliviar o sofrimento, seja lá qual for o seu portador, independentemente se é o próprio portador que está a decidir ou não. Isso porque o fato de ser o próprio portador da necessidade que está a decidir ou não, não influencia no sofrimento ser uma experiência <i>ruim</i>, na felicidade ser uma experiência<i> boa</i>, e assim por diante. É por isso que o egoísmo, mesmo na sua forma universal, não é uma teoria moral plausível. É uma teoria que confunde o que é uma característica relevante para saber se <i>é possível a decisão moral</i> (a condição de agente: saber se o agente tem cursos de decisões alternativos disponíveis que produzam resultados de valor moral diferentes) com o que é uma característica relevante para saber <i>qual decisão deve ser tomada</i> (a condição de paciente: saber como uma situação x afeta beneficiando ou prejudicando os indivíduos atingidos por ela).<br />
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<i>#156 – A questão da prioridade e a rejeição do egoísmo</i><br />
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É importante perceber que, uma vez reconhecendo que a principal razão para se considerar o bem de alguém depende do sofrimento ser uma experiência ruim e da ausência de felicidade ser um dano por privação, temos de reconhecer outros aspectos desses mesmos elementos, que por sua vez mostram que, dependendo da situação, a prioridade no atendimento das preferências é <i>dos outros</i>, não do próprio agente. Os aspectos do qual falo são a <i>intensidade</i> desses dois elementos. Tendo reconhecido que a principal razão, por exemplo, para o alívio do sofrimento, é que este é uma experiência ruim, temos de reconhecer que, quanto maior o sofrimento, <i>prima facie</i>, maiores as razões para dar prioridade a tal alívio. O que acontece é que a maior quantidade de sofrimento pode estar não no agente, mas em outros indivíduos. Daí que reconhecer esses pontos básicos implica no dever de rejeitar o egoísmo. Note que esse critério (dar prioridade aonde o sofrimento for maior) cumpre o requisito de imparcialidade. Ele não é como o que muitos definem por altruísmo (dar prioridade <i>sempre</i> aos outros). Ele diz, ao invés, para dar prioridade aos que estiverem sofrendo mais (estiverem na situação pior), independentemente de <i>quem</i> seja esse indivíduo (pode ser o agente, bem como pode ser outro indivíduo).<br />
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<i>#157 - Critério imparcial de prioridade</i><br />
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Outros critérios de prioridade poderiam ser: (1) “Qual situação contém mais indivíduos na pior situação?” (2) “Quais indivíduos estão na pior situação, comparativamente aos outros?”. Se levarmos em conta apenas esses dois critérios, a prioridade já aponta para se dar prioridade à situação que a maioria dos animais não humanos passa atualmente, comparativamente a qualquer outra causa. Isso porque eles se encontram na pior situação (não existem humanos vivendo em granjas industriais nem no inferno natural, por exemplo), e coincidem com o tipo de indivíduo cujo maior número está na pior situação (literalmente trilhões). Note que esse critério também é imparcial. Não se está dizendo que a prioridade de preocupação, no mundo atual, deve ser com relação aos animais não humanos <i>porque eles são animais não humanos</i>. Se fosse assim, eu estaria sendo especista e meu argumento seria circular. Estou dizendo que eles merecem prioridade por se encontrarem na pior situação. Se fossem humanos no lugar deles, a prioridade deveria ser a preocupação pelos humanos, e assim por diante.<br />
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Notas:<br />
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<br />
[8] Ver, por exemplo CUNHA, Luciano C. Sobre a Importância da Razão na Ética. Disponível em <a href="http://www.olharanimal.net/luciano-cunha/1420-sobre-a-importancia-da-razao-na-etica">http://www.olharanimal.net/luciano-cunha/1420-sobre-a-importancia-da-razao-na-etica</a>; CUNHA, Luciano C. Explicando por que o Egoísmo não é Ético. Disponível em <a href="http://www.olharanimal.net/luciano-cunha/1547-explicando-porque-o-egoismo-nao-e-etico">http://www.olharanimal.net/luciano-cunha/1547-explicando-porque-o-egoismo-nao-e-etico</a><br />
<br />
[9] CUNHA, Luciano C. Uma Crítica ao Apelo à Teoria do Egoísmo Psicológico. Disponível em <a href="http://www.olharanimal.net/luciano-cunha/1546-uma-critica-ao-apelo-a-teoria-do-egoismo-psicologico">http://www.olharanimal.net/luciano-cunha/1546-uma-critica-ao-apelo-a-teoria-do-egoismo-psicologico</a><br />
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Luciano Carlos Cunhahttp://www.blogger.com/profile/11543323145219198300noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-1743587667987089964.post-89558764846297719692012-12-19T06:07:00.002-08:002012-12-19T06:07:20.525-08:00Parte 6 – A crença no “senso de proporção”<br />
<b>Parte 6 – A crença no “senso de proporção”</b><br />
<br />
<i>#126 – O argumento do “senso de proporção”</i><br />
<br />
Outra tentativa empregue por Nigro para justificar o status moral superior dos membros da espécie <i>Homo sapiens</i> é o seguinte:<br />
<br />
<i>“Somos superiores aos macacos, aos porcos, aos peixes, às formigas Issas (sic) e às laranjas. É importante ter senso de proporção e de realidade. [...]Quanto ao Reinismo, prefiro ver uma pedra ser destruída a pó a uma arvore ser derrubada. Prefiro ver um pé de alface ser arrancado da terra para dar comida a uma pessoa faminta a ver um peixe ser morto. Quanto ao especismo prefiro o abate de um porco ao seu assassinato ou de seu filho”.</i><br />
<br />
Objetivo do argumento do senso de proporção é que o leitor infira, da premissa plausível de que é melhor “ver um pé de alface ser arrancado da terra para dar comida a uma pessoa faminta a ver um peixe morto” (ou seja, a de que é pior matar um ser senciente do que algo vivo não senciente), que então é melhor o abate de um porco do que o de um humano.<br />
<br />
<i>#127 - O argumento do senso de proporção não serve para justificar o assassinato de animais</i><br />
<br />
Esse argumento também têm inúmeros problemas. O primeiro deles (que não é o principal), é que, mesmo que fosse verdade que a vida dos humanos valesse mais, e que fosse, devido a isso, <i>pior</i> matar um humano do que um porco, essa premissa não serviria para sustentar a conclusão de que, então, está <i>justificado</i> (que é moralmente correto) assassinar animais não humanos. O motivo dessa premissa não sustentar a conclusão já é exposto mesmo pelo raciocínio de Nigro: é sempre menos pior matar algo vivo não senciente. Então, já que, como Nigro concorda, é melhor arrancar um alface do que matar um peixe, e já que é possível para nós vivermos com uma dieta exclusivamente vegetal, segue daí que, os humanos têm sempre o dever de escolher comer vegetais – devido ao dever de escolher causar o menor dano (mesmo partindo do pressuposto altamente duvidoso de que é um dano para o vegetal ser comido). O próprio argumento de Nigro incorpora, sem querer, essa máxima. Perceba novamente que essa conclusão se seguiria mesmo se fosse verdade que seres humanos tivessem um status moral superior.<br />
<br />
<i>#128 - Erro do argumento do senso de proporção: deixar de fora a característica moralmente relevante principal: senciência</i><br />
<br />
O problema principal do argumento, contudo, é outro: ele não leva em conta uma distinção particularmente relevante que distingue os humanos das laranjas, mas não distingue os humanos dos demais animais sencientes: a capacidade de sofrer um dano, por inflição de sensação ruim ou privação de sensação boa. É espantoso como exatamente a característica relevante principal em qualquer raciocínio ético é deixada de fora nos argumentos de Nigro (e nas defesas do especismo em geral): a possibilidade da vítima ser prejudicada. Humanos diferem de laranjas porque os primeiros são sencientes; as segundas não. É devido a essa mesma característica que porcos, cães, galinhas, peixes diferem relevantemente de de laranjas – e assemelham-se a seres humanos. E, o mais importante: diferentemente de outras características que poderiam ser listadas para agrupar similaridades entre esses indivíduos, a senciência é uma característica <i>moralmente</i> relevante. Por exemplo, poderíamos encontrar outras características similares que nos permitiriam agrupar humanos e alguns animais não humanos no mesmo grupo, e laranjas, limões e alfaces em outros. A posse de orelhas agruparia, por exemplo, humanos, porcos e cães de um lado, e laranjas, limões, minhocas, águas-vivas e alfaces de outro. Contudo, essa característica, embora sirva para agrupar esses indivíduos, é <i>moralmente irrelevante </i>(apesar de ser relevante em outros contextos, como, por exemplo, se quiséssemos estudar o ouvido de cada espécie).<br />
<br />
<i>#129 - Como saber se uma característica é moralmente relevante: perguntar do que depende o pensamento sobre moralidade/ importância da senciência/importância da vulnerabilidade e da possibilidade de influenciar o valor moral da situação</i><br />
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Para entendermos por que tal característica é moralmente irrelevante, e porque a senciência é uma característica moralmente relevante, temos de nos perguntar qual a propriedade mais básica que dá sentido ao pensamento moral. Em outras palavras, temos de perguntar: “do que depende o pensamento moral, para fazer sentido?”. Embora seja difícil responder a essa pergunta elegendo uma característica apenas, nenhuma outra funcionará se essa não estiver presente (assim, essa é uma característica <i>necessária </i>para haver sentido pensar em moralidade): a possibilidade de indivíduos serem beneficiados ou prejudicados com decisões. Como já foi mencionado anteriormente, imagine um mundo onde não houvesse possibilidade de se prejudicar nenhum indivíduo, seja por inflição de sensação ruim, seja por privação de sensação boa, seja por trair sua confiança, seja por contar-lhe uma mentira, ou qualquer outra forma de dano. Imagine ainda que, qualquer escolha que fizéssemos teria sempre o melhor resultado para todos os indivíduos atingidos: não teríamos poder, por exemplo, para alterar a quantidade de satisfação que eles teriam para desfrutar no futuro, nem no presente. Em um mundo assim, onde os indivíduos fossem invulneráveis, não haveria necessidade de pensamento moral (nem faria sentido o mesmo), pois, qualquer escolha que fizéssemos teria exatamente os mesmos resultados. Agora, imagine que os indivíduos em questão não fossem invulneráveis (que estivessem sujeitos a doenças, sofrimento, morte, etc.), mas que não tivéssemos <i>possibilidade</i> de alterar, nem para melhor, nem para pior, a situação desses indivíduos. Numa situação assim (onde há impossibilidade de alteração do valor moral da situação), também não faz sentido o pensamento moral. É porque a vida real não é assim (ou seja, podemos influenciar a realidade dos indivíduos atingidos por nossas decisões, para melhor ou para pior; e para muito melhor ou muito pior), que faz sentido o pensamento moral. Num mundo onde não tivéssemos escolha, ou, num mundo onde todas as escolhas possíveis levassem a resultados com igual valor em termos de benefício e prejuízo, não faria sentido o pensamento moral. O pensamento moral depende crucialmente de duas coisas, para fazer sentido: que seja possível alterar o valor moral de uma situação (tornar uma situação melhor ou pior), e que os indivíduos atingidos pela decisão sejam vulneráveis (pois é com relação ao seu bem que depende o valor moral da situação ser positivo ou negativo).<br />
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<i>#130 - Por que a senciência é um critério moralmente relevante</i><br />
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Entendendo por que o ponto central de toda a ética é a idéia de que é possível <i>prejudicar</i> ou <i>beneficiar</i> os <i>indivíduos</i> atingidos por nossas decisões, fica fácil entender por que a senciência é um critério moralmente relevante. A senciência é uma característica necessária, tanto para haver prejuízo ou benefício, quanto para haver um indivíduo. Quanto ao segundo ponto, é preciso lembrar que só faz sentido falar em indivíduo quando existem eventos mentais. Eventos mentais (o que inclui sensações como dor, prazer, fome, sede, ouvir, cheirar, sentir o gosto, ver, etc.) são o tipo de coisa que dependem, para existir, que o organismo em questão faça a distinção entre <i>sujeito</i> e <i>objeto</i> (daí a noção de indivíduo). Pelas melhores teorias científicas que dispomos atualmente, para um ser vivo ser capaz de tal coisa, é necessário que tenha um cérebro e um sistema nervoso central (ou, um aparato similar que desempenhe a mesma função). É por esse motivo que só seres sencientes são indivíduos. Em outras palavras, é por isso que dentro do porco, do humano e do peixe “há alguém” (e reconhecemos isso quando reconhecemos que esses seres sofrem; se há dor, é porque há alguém sentido a dor), alguém que <i>não há</i> dentro da laranja, nem do garfo, nem do tijolo. Quanto ao primeiro ponto, como já foi dito anteriormente, uma vez que o ser é senciente, ele se caracteriza pela aversão ao sofrimento (sensações ruins) e gosto pelo prazer (sensações boas). Assim, existem duas formas básicas de possibilidade de prejuízo: ou pela presença de sensação ruim (o que explica por que é moralmente errado estuprar, por exemplo), ou pela ausência de sensação boa (o que explica o erro moral básico em assassinar, por exemplo, já que fecha a possibilidade para o desfrute). Perceba que nenhuma coisa não senciente (seja viva, seja não viva) é capaz de ser prejudicada dessa maneira, pois são incapazes de sensações.<br />
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<i>#131 - Por que a espécie é um critério moralmente irrelevante/ “mas, e as plantas?”</i><br />
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É incrível como, da percepção de que laranjas e porco têm vida (uma constatação de fatos biológicos), muitas pessoas dão o salto para uma conclusão moral totalmente errada: “então, é essa a característica que torna o caso de tais seres relevantemente similares, em termos morais, e não há nada de moralmente relevante que os distinga”. Raciocínios desse tipo estão por trás de alegações como “mas, vacas e alfaces são todos seres vivos”. O que é perdido de vista (por tolice ou por maldade) nesse tipo de raciocínio é exatamente o principal: alguns tipos de seres vivos são sencientes (é possível prejudicá-los ou beneficiá-los de uma forma que não é possível prejudicar ou beneficiar seres não sencientes) e outros não. Entender esse ponto é importante para entender por que eleger como critério para consideração moral (e, portanto, agrupar os indivíduos de acordo com esse critério) a posse de orelhas, o número de letras no nome ou o tamanho do pé é moralmente irrelevante: tais coisas não influenciam na possibilidade de alguém se prejudicado/beneficiado nem na quantidade desses possíveis prejuízos/benefícios. É fácil perceber que critérios como o tamanho do pé, número de letras no nome e data de aniversário são irrelevantes. Contudo, existem outros critérios igualmente irrelevantes (raça, gênero, e espécie biológica) que é muito difícil que as pessoas em geral percebam sua irrelevância. A espécie biológica de um indivíduo é moralmente irrelevante porque, assim como a data de aniversário, o número de letras no nome e o formato do pé, não influenciam na possibilidade desse indivíduo ser prejudicado ou beneficiado. <i>Uma vez que</i> um indivíduo é senciente, é possível que ele seja prejudicado/beneficiado, e a espécie biológica a qual ele pertence não influi nisso. Por outro lado, uma vez que o ser é apenas algo vivo, não senciente, sua espécie biológica também em nada muda o fato de não ser possível prejudicá-lo, nem por privação de sensação boa, nem por inflição de sensação ruim. Assim, o critério da espécie biológica é sempre moralmente irrelevante, quer estejamos falando de seres sencientes, quer estejamos falando de seres não sencientes. É por isso que o especismo é sempre errado.<br />
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<i>#132 – Por que o critério da espécie e da posse da racionalidade são irrelevantes, mesmo enquanto critérios secundários, para o valor de um indivíduo</i><br />
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Nigro poderia objetar, nesse ponto, que reconhece que a senciência é uma característica de relevante similaridade entre humanos e animais não humanos. Contudo, poderia dizer que seu argumento é outro: que, apesar da senciência colocá-los todos sob o mesmo grupo, há outra característica moralmente relevante que torna os humanos superiores. O problema com essa saída é que os dois argumentos que Nigro oferece com vistas a listar essas características não obtém sucesso. Eles já foram analisados anteriormente (em #3 até #28). São o argumento de que alguém tem maior valor por ser racional, e que humanos tem maior valor por serem humanos. O primeiro argumento, como vimos, tem dois problemas: (1) Não serve para provar a superioridade humana, pois alguns animais não humanos são mais racionais do que alguns seres humanos; (2) Mesmo que fosse verdade que todos os seres humanos fossem mais racionais que todo e qualquer animal não humano, tal constatação não serviria de base para a conclusão de que os mais racionais possuem maior valor do que os menos racionais. Isso porque a posse da racionalidade, como já vimos detalhadamente anteriormente (#3 até #22), apesar de ser um critério moralmente relevante para saber quem deve ser responsabilizado pelas suas escolhas (pois influencia na capacidade de alguém em saber o que é justificável e o que não é) não é moralmente relevante para saber quem deve ser respeitado (pois não influencia na possibilidade de alguém ser prejudicado, por inflição ou privação). O segundo argumento, como já vimos anteriormente também de maneira detalhada (#23 até #28), é fraco porque é circular (assume o que deveria provar).<br />
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<i>#133 - Implicações do critério da posse da razão: hierarquia intelectual entre humanos</i><br />
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Apenas como experiência de pensamento, vamos supor que Nigro estivesse correto ao afirmar que, quanto maior a posse da razão de um ser, maior o valor da sua vida e que isso dá a ele direito de assassinar e escravizar os menos racionais que ele. Uma primeira implicação desse raciocínio é que, então, seria correto matar os humanos bebês ou idosos senis, ou portadores de doenças mentais degenerativas para beneficiar animais não humanos mais racionais do que eles. E, outra implicação curiosa é que, se fosse verdade que quanto maior a posse da razão, maior o valor do indivíduo, Nigro teria de defender uma hierarquia intelectual entre os humanos. E, se, como Nigro pensa, se a maior posse da razão intitula alguém a assassinar a escravizar os outros (e não apenas a prioridade ao ser salvo, que, também como vimos anteriormente, em #55, #112, #113, #118 até #125, seria problemático), ele teria de, não só defender que, entre alguém salvar ele mesmo ou alguém muito inteligente, deveria salvar o mais inteligente, mas também que estaria correto ele ser escravo de algum Einstein (ou, ser assassinado para o Einstein saborear sua janta). Nigro poderia objetar, dizendo que deveríamos traçar uma linha, em termos de posse da razão: qualquer um que se encontre acima não pode ser utilizado como mero recurso, qualquer um que se encontre abaixo pode. O problema é que, se a linha é abaixada em um ponto tal para incluir todos os seres humanos (incluindo aqueles com paralisia cerebral, por exemplo), então isso automaticamente terá de incluir todos os animais não humanos sencientes. Se, por outro lado, a linha é elevada a tal ponto de excluir todos os animais não humanos sencientes, terá que excluir todos os humanos bebês, crianças muito pequenas, idosos senis e portadores de determinadas doenças mentais (e também potencialmente os humanos que agora são racionais, porque um dia poderemos nos tornar idosos senis, ou perder a posse da razão por algum acidente ou doença).<br />
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<i>#134 - Seria argumento do senso de proporção uma falácia naturalista?</i><br />
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Não fica claro, na exposição que Nigro faz de seu argumento, se ele faz a inferência que irei mencionar a seguir. Se tal inferência estiver implícita no argumento, então o argumento é também um exemplo de <i>falácia naturalista </i>(#62, #83, #84). A inferência que suponho estar implícita no argumento de Nigro parte da seguinte premissa: se levarmos em conta os objetos naturais, é possível construir uma escala, em termos de organização do organismo, dos mais simples para os mais complexos. Tal premissa, enquanto descrição factual do que acontece na natureza é, sem dúvida, verdadeira. É possível observar também que, geralmente, os organismos mais complexos sobrepujam os mais simples (embora isso nem sempre seja verdadeiro; basta lembrar como somos vulneráveis a vírus). Enquanto premissas <i>descritivas</i>, são premissas plausíveis. O erro consistiria em inferir desse tipo de premissa (descritiva), um juízo <i>moral</i>: “então, já que os organismos mais complexos <i>subjulgam</i> os mais simples, <i>está certo</i> subjulgar os mais simples”. Como já vimos anteriormente, isso é uma falácia naturalista, já que assume que o que dá suporta à conclusão que é um juízo de valor é a descrição dos fatos. Em outras palavras, a falácia naturalista é uma falácia porque envolve concluir “é assim que deve ser (valor) <i>porque</i> é assim que é (fato)”. É fácil entender que, só porque uma coisa é de tal maneira, não significa que seja certo ou justo que seja dessa maneira.<br />
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<i>#135 - Quanto mais complexo o organismo, maior proteção é devida a esse organismo?</i><br />
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Alguém poderia objetar que o argumento do senso de proporção não é uma falácia naturalista, pois a conclusão de que devemos valorizar sempre os organismos mais desenvolvidos não surge devido a esses organismos geralmente já se saírem melhor em termos competitivos, mas, sim, porque a vida, quanto mais complexa, maior valor possui, independentemente do que acontece na prática. Se é isso que o argumento pretende, então possui uma premissa de valor implícita: a de que vidas mais complexas são sempre mais valiosas, de um ponto de vista moral. Mesmo não sendo uma falácia naturalista, se modificado nesse sentido, o argumento continua problemático, devido à pouca plausibilidade dessa premissa de valor. Já vimos anteriormente (#17 até #19, #39, #43, #44, #55, #116, #128) que, em se tratando do critérios relevantes para saber a quantidade de proteção que alguém merece, a senciência é um pré-requisito necessário para alguém poder ser prejudicado (por inflição de sensação ruim ou privação de sensação boa), e, uma vez que o indivíduo é senciente, quanto maior sua vulnerabilidade, e quanto pior sua situação, mais forte é o seu <i>requerimento de prioridade</i>. Nada disso depende da complexidade do organismo, uma vez que o organismo é senciente. O mais importante a reter de todo esse raciocínio é que a posse da razão não é um critério moralmente relevante para saber o grau de respeito que alguém necessita, mas, sim, a sua vulnerabilidade.<br />
Luciano Carlos Cunhahttp://www.blogger.com/profile/11543323145219198300noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-1743587667987089964.post-33575455701381253482012-12-19T05:59:00.002-08:002012-12-19T05:59:38.167-08:00Parte 5 – O argumento da casa em chamas<br />
<b>Parte 5 – O argumento da casa em chamas</b><br />
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<i>#75 – O argumento da casa em chamas</i><br />
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Nigro utilizou também um velho conhecido dos defensores dos animais: o argumento da casa em chamas (também conhecido como “dilema do bote”), apesar de tal argumento ter sido refutado incontáveis vezes, por diversos autores[6]. Nigro escreve:<br />
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<i>“Um pequeno avião monomotor cai e você e seu filhinho de cinco anos sobrevivem. Vocês estão tomando só água e quase mortos de fome. Existem peixes. Como você não é especista tenho certeza que você jogaria uma folha para o ar: se cair de um lado você pesca e come peixe; se cair para o outro, você mata seu filho.[...] A casa está pegando fogo. Sua filha (não coloquei filho novamente para não me acusarem de machista) está lá dentro. Seus dois gatos também estão. É perfeitamente possível salvar primeiro um gato - até para deixar bem claro para os vizinhos e para sua família que você não é um especista. E depois de ter salvado o gato você poderia escolher entre salvar o outro gato ou sua filha. Não, você não pode agora automaticamente ir salvar sua filha porque senão você não<span class="Apple-tab-span" style="white-space: pre;"> </span>estaria tratando-os como iguais, mas como membros de espécies e isso é especismo. Talvez fosse salvo o outro gato e neste maravilhoso mundo novo os avós chorariam a morte da neta - poderia não ter dado tempo para salvar - mas <span class="Apple-tab-span" style="white-space: pre;"> </span>admirariam ainda mais o filho que não se apegou ao especismo. Eu pescaria e <span class="Apple-tab-span" style="white-space: pre;"> </span>pegaria primeiro a menina porque, não sabia, sou um especista. O autor afirma <span class="Apple-tab-span" style="white-space: pre;"> </span>que pessoas especistas como eu são seres imorais, deploráveis como “os racistas e os machistas”. Mas eu e, acredito, a maioria dos seres humanos não raciocinariam desta forma e nem passaria pela minha cabeça que fiz uma escolha. A própria ideia de que o pai ficasse raciocinando para escolher qual dos dois matar (peixe ou filho) ou quem pegar primeiro (mesmo que não fosse filho(a)), para mim, e para muitos, é que seria imoral”.</i><br />
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<i>#76 - O que se pretende com o argumento da casa em chamas</i><br />
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Mesmo tendo sido refutado incontáveis vezes, é sempre interessante analisar novamente o argumento da casa em chamas porque ele dá a oportunidade de descobrirmos inúmeros erros de raciocínio, e, com isso, aprender a tomar mais cuidado ao raciocinar. Antes de começarmos a análise, contudo, é interessante perceber qual o objetivo dos que usam o argumento da casa em chamas: a pretensão é a de que, se você optar por salvar sua filha, então você é retratado como especista e hipócrita; se, por outro lado, você mantém que, mesmo numa situação assim, os indivíduos atingidos por sua decisão mantém um <i>status </i>moral igual, independentemente de espécie, então que você é retratado como um monstro moral. Com a argumentação a seguir, pretendo mostrar por que é que a espécie da vítima (sendo a vítima senciente) <i>nunca </i>é um critério moralmente relevante, nem mesmo nesse tipo de situação, e que a visão de que abandonar o especismo é ser um monstro moral só pode vir de uma mentalidade extremamente especista. Apelar às nossas intuições nesses casos não justifica o especismo; aliás, só mostra que, provavelmente, mantemos as intuições que mantemos por puro preconceito especista, que é fruto da falta de prática com o raciocínio moral. Vamos então à análise do argumento.<br />
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<i>#77 - O argumento da casa em chamas não serve para justificar o uso de animais</i><br />
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O primeiro (e mais grave) problema dos argumentos do tipo da casa em chamas (o que inclui o argumento da ilha deserta, do bote, do avião monomotor, ou qualquer outra forma) é que ele cria uma falsa analogia. Isto é, ele trata duas situações como se tivessem supostamente características relevantemente similares, escondendo que há pelo menos uma diferença moralmente relevante entre tais situações. Uma das coisas que se pretende com o argumento da casa em chamas é concluir que, se existirem razões para salvar o humano numa situação do tipo da casa em chamas; então temos razões para fazer uso dos animais não humanos como se fossem recursos (seja para fins fúteis como o uso culinário, seja para fins importantes como a pesquisa médica). A analogia não funciona porque os dois tipos de casos diferem em uma característica crucial: em um tipo de caso, não há como salvar os dois indivíduos, e é só por isso que não se salva os dois; em outro tipo de caso, um indivíduo é visto como um mero recurso para salvar o outro (ou seja, como se o seu valor fosse tão pequeno que fosse justo obrigá-lo, contra sua vontade, a terminar sua vida antes do que normalmente terminaria, para beneficiar outro indivíduo). Um exemplo ajudará a ver por que a conclusão em um caso não sustenta o mesmo tipo de conclusão em outro. Vamos supor, para efeito de argumentação, que eu tenha razões para preferir resgatar a minha filha ao invés de resgatar o Dr. Carlos Nigro, na casa em chamas. Eu ter razões para dar prioridade a um indivíduo quando não tenho como ajudar a ambos não indica que eu tenha direito de ir à casa do Dr. Nigro e obrigá-lo a servir como cobaia para pesquisas médicas (nem mesmo para uma pesquisa que fosse salvar a vida da minha filha). Então, vamos supor, para efeito de argumentação, que fosse correto (ou mesmo um dever) salvar o ser humano, numa situação do tipo da casa em chamas. Mesmo que isso fosse verdade, não serviria para apoiar a conclusão de que, então, temos justificativa para utilizar os animais não humanos como se fossem meros recursos. Decidir quem deve receber prioridade na ajuda é uma coisa; decidir que os que não devem receber prioridade devem ser tratados como meros recursos (mostrando-se uma desconsideração total pelas suas necessidades) já é outra coisa, que não pode ser deduzida da primeira. Sendo assim, mesmo que houvesse um dever moral de salvar o humano numa situação dessas (e, como pretendo mostrar a seguir, existem razões de peso para rejeitar mesmo essa conclusão), isso não serviria para justificar a escravidão sobre os animais não humanos. Nigro ainda teria que defender não só o veganismo, mas a abolição total do uso de animais enquanto recursos (incluindo para pesquisas médicas importantes). Novamente, mesmo se eu tiver razões para preferir resgatar a minha filha ao invés de Carlos Nigro, isso não prova que existem razões que justifiquem eticamente utilizá-lo como um mero recurso (ou seja, obrigá-lo a doar sua vida, contra sua vontade, por exemplo) para salvar a vida da minha filha. Sendo assim, é falsa a premissa de qual Nigro parte para construir toda a sua argumentação. “Para quem discorda”, escreve Nigro, “de que uma pessoa vale tanto quanto um peixe ou uma formiga porque não existiria nada que justifique ‘a crença de que os animais humanos tenham status superior [...] todo o artigo não serve para nada”. A conclusão de Nigro é falsa porque, mesmo que os humanos <i>possuíssem</i> um<i> status</i> moral superior, meu artigo ainda serviria para mostrar que isso também não justificaria utilizar os animais não humanos como se fossem meros recursos. Teríamos todos, ainda, o dever de abolir o seu uso enquanto recursos.<br />
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<i>#78 – Não se começa bem um raciocínio sobre uma questão controversa apelando a outras questões igualmente controversas</i><br />
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O argumento da casa em chamas é um argumento problemático porque pretende provar que a espécie da vítima é um critério moralmente relevante (e que pertencer à espécie humana prova que alguém deve possuir <i>status </i>moral superior) apelando a critérios também altamente controversos para estabelecer a moralidade de uma decisão: o grau de envolvimento afetivo do agente para com o paciente da decisão e o apelo às nossas intuições sobre o que se deve fazer em casos particulares. No máximo tais critérios poderiam colocar um ponto de interrogação como ponto de partida para o raciocínio, mas não servem, sozinhos, para provar um critério e dar por resolvida uma questão. Quando se quer provar uma questão controversa, não se começa bem apelando a outras questões igualmente controversas. O melhor seria apelar a outras premissas mais amplamente aceitas como válidas, tanto por quem concorda com a validade moral do especismo tanto por quem discorda; só assim seria possível um argumento cogente.<br />
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<i>#79 – O vínculo afetivo do agente para com o paciente é um critério relevante para desculpar alguém que tomou uma decisão errada, dependendo do tipo de dano envolvido</i><br />
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Começemos pelo apelo ao envolvimento afetivo do agente para com o paciente da decisão, com vistas a provar a moralidade de uma decisão. Tal apelo é controverso porque, embora o envolvimento afetivo seja com certeza, nos casos de prioridade ao salvamento de uma vida, um critério relevante para se <i>desculpar alguém por não ter tomado a decisão que deveria</i>, não segue daí que é um critério relevante para estabelecer <i>que decisão deve-se tomar</i>. Considere o seguinte exemplo: supondo, para efeito de argumentação, que ficasse provado que a vida de A possui maior valor do que a vida de B e que, em caso de não ter como salvar ambos, então deve-se salvar A. Supondo que o agente C, mesmo reconhecendo a validade da conclusão acima, tem, porém, um vínculo afetivo muito forte com B, que é sua filha. Infelizmente, é C quem se depara com a situação entre salvar A ou B. Embora reconhecendo que deveria salvar A, acaba salvando B, devido ao forte vínculo afetivo com B. Num caso como esse, é perfeitamente desculpável a atitude de C, pois, ele estava diante de uma decisão extremamente difícil. Contudo, faria sentido dizer que a coisa certa a se fazer é ter tomado a decisão oposta (se <i>fosse</i> verdade que A vale mais do que B). Note que não estou dizendo que uns valem mais do que outros. O objetivo do exemplo é mostrar que <i>mesmo se</i> uns valessem mais do que outros, o fato do agente ter um vínculo afetivo com a vítima que possui valor menor seria um critério relevante para desculpá-lo por tomar a decisão errada. Note que, mesmo sendo um critério <i>relevante</i> para se desculpar alguém por tomar a decisão errada, não é um critério <i>determinante</i> para tal desculpa. Isso porque um critério relevante pode, contudo, ter menor peso do que outros critérios relevantes, e, portanto, ser anulado por esses outros critérios. Não seria correto, por exemplo, desculpar alguém que favoreceu alguém por ter maior vínculo afetivo com esse alguém, num concurso público, por exemplo. Faz sentido, por outro lado, desculpar alguém que deu prioridade a salvar a vida da sua filha, em relação a salvar a vida de um estranho, mesmo que tivesse o dever de salvar o estranho. Uma das diferenças entre os dois tipos de caso é que uma situação depende da quantidade de dano para a vítima (“salvo esse ou aquele?”) e outra depende de mérito (passar em um concurso público), por exemplo.<br />
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<i>#80 – Controvérsia quanto ao critério do vínculo afetivo, seja na forma objeto-dependente, seja na forma agente-dependente</i><br />
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O fato do vínculo afetivo entre agente e paciente ser um critério relevante para desculpar alguém por tomar uma suposta decisão errada em um contexto de salvar vidas não prova que o mesmo é relevante para saber qual a decisão correta nesse mesmo contexto de salvar vidas. Note que não estou dizendo que tal critério <i>não </i>é relevante para saber qual a decisão correta. Estou dizendo apenas que seria necessário outro argumento para dizer o porquê de ser relevante, porque existem objeções contra a relevância desse critério. A principal objeção ao critério do vínculo afetivo para estabelecer qual a decisão correta é que também se trata de um mero fato contingente e coloca o agente num pedestal que, de um ponto de vista objetivo, não faz sentido que ele ocupe. Eu, enquanto agente, por acaso tive um vínculo afetivo maior com alguns indivíduos do que outros. Isso porque alguns outros eu nem conheço pessoalmente. Dos que eu conheço pessoalmente, alguns eu tenho um laço afetivo enorme, outros eu não tenho laço afetivo algum. Contudo, se eu tivesse nascido em outra família, ou ido a outros lugares, estudado em outra escola, procurado outros protetores para adotar cães, etc., eu teria criado vínculos afetivos com outros indivíduos, não com os que tenho hoje. Então, meus vínculos afetivo são meros fatos contingentes a <i>meu</i> respeito. A verdade, que quase ninguém quer admitir, é que o fato de <i>eu</i> ter uma relação próxima com alguém não prova que <i>esse alguém</i> tem maior valor. Seriam então geradas razões “objeto-dependente”: qualquer agente teria o dever de salvar o mesmo indivíduo. Assumir que os seres que tenho maior vínculo afetivo tem objetivamente valor maior seria assumir, por algum motivo, que eu sou mais especial do que os outros; que meu “toque mágico” de relação afetiva faz tais indivíduos adquirirem maior valor. Isso é ridículo. Mas, e se Nigro, por outro lado, modificasse sua posição alegando que não é um agente específico que torna os que têm vínculo afetivo com ele mais especiais, mas cada agente, cada qual com seus vínculos especiais? Seriam, então, geradas razões agente-dependentes: cada agente teria razões para salvar indivíduos diferentes. Contudo, mesmo modificado assim, os mesmos tipos de problemas surgiriam: ao invés de um agente pensar que é mais especial do que os outros (o que já é ridículo), cada agente pensaria que é mais especial do que os outros (o que é logicamente impossível de ser verdadeiro). Lidaremos mais detalhadamente com esse tipo de argumento quando analisarmos a questão do egoísmo (#147 até #157), na sessão seguinte. Por ora, quis apenas apontar que o critério do vínculo afetivo é um critério relevante para estabelecer a decisão correta é, no mínimo, altamente controverso (ainda que seja relevante para desculpar alguém por tomar a decisão errada). Contudo, apesar de ser um critério controverso, admito que não está provado que é irrelevante. Para efeito de argumentação, então, vamos supor que ele é um critério relevante também para saber qual a decisão correta.<br />
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<i>#81 – Investigando se um critério é relevante ou não, e a sua importância, frente a outros critérios</i><br />
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O principal problema com o argumento da casa em chamas é que ele trabalha com tantas variáveis (vínculo afetivo, espécie do indivíduo atingido, situação de desespero x situação cotidiana, grau de racionalidade da vítima, opções disponíveis para o agente, por exemplo) que se torna mais difícil, tendo como exemplo um caso prático onde elas aparecem em conjunto, descobrir quais delas são relevantes e quais são irrelevantes, e, das que são relevantes, qual peso devem ter na moralidade da decisão. Uma maneira de evitar essa dificuldade é manter constante cada uma das variáveis que sobraram e modificar apenas uma. Dessa maneira, é possível ver se um critério é, ele mesmo, relevante ou não. É essa estratégia que seguirei na seqüência.<br />
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<i>#82 – A falácia naturalista e como ela aparece em argumentos do tipo “casa em chamas”</i><br />
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Outro erro grave com o argumento da casa em chamas é que ele é um exemplo da conhecida “falácia naturalista”. A falácia naturalista consiste em, da constatação de que algo <i>é</i> do jeito que é, deduzir que, então, <i>por esse motivo</i>, ele <i>deveria </i>ser assim mesmo (está <i>certo</i> que seja assim, é <i>justo</i> que seja assim, etc.). Por exemplo, seria uma falácia naturalista alguém tentar justificar o egoísmo assim: “o mundo é e sempre foi egoísta mesmo, logo, devemos ser egoístas”. Do fato de que algo é, não se pode saltar logicamente para a conclusão de que está correto que seja assim. Não há nada no fato de que algo aconteceu, acontece ou aconteceria que sirva de apoio para dizer que foi justo que tenha acontecido no passado, que aconteça agora, ou que será justo se acontecer no futuro. Fazer essa confusão é confundir fatos (como as coisas são) com valores (como as coisas devem ser). Onde está a falácia naturalista no argumento da casa em chamas? O argumento inteiro é baseado no que eu <i>faria</i> (um fato) na situação da casa em chamas, com vistas a provar o que <i>deveria</i> ser feito em tal situação. Mas, o que eu faria não importa para estabelecer o que deveria ser feito. Afinal de contas, a constatação de que eu faria x, ou que faria y não prova que x ou y estejam corretos, respectivamente. Outros argumentos teriam de ser endereçados para provar que x seria preferível a y, ou vice-versa. A conclusão importante, com relação ao presente exemplo, é essa: se eu optasse por tratar as vítimas como tendo igual valor, independentemente de espécie, isso não prova que o especismo está errado; se eu optasse por tratar os seres humanos (ou membros de alguma outra espécie) como superiores, isso não prova que o especismo está certo. A resposta sobre se o especismo é justificável ou não tem de ser buscada em outros lugares, com outros argumentos. E, nós já analisamos os argumentos oferecidos por Nigro para defender o especismo e vimos que todos eles têm sérios erros (#3 até #28). Ofereci também alguns argumentos para explicar por que o especismo é injustificável (#16 até #22). Dentre eles, o principal é: naquilo que é a característica mais relevante para se descobrir se alguém precisa de respeito ou não (a saber, a vulnerabilidade da vítima e a possibilidade dela ser prejudicada, por inflição ou privação), estamos, independentemente de espécie, enquanto seres sencientes, todos na mesma categoria.<br />
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<i>#83 – A resposta para saber o que devemos fazer não pode ser encontrada no que faríamos</i><br />
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Sendo assim, o argumento da casa em chamas, pelo menos na forma com a qual Nigro o coloca, perde de vista uma característica crucial do raciocínio ético, que o difere de outros tipos de raciocínio: estamos querendo descobrir o que <i>deveríamos</i> fazer, e não, o que <i>faríamos</i>. O que eu faria numa situação assim é totalmente irrelevante para se descobrir o que se deve fazer. Eu poderia fazer todo o tipo de coisa, que isso não indica que o que eu fizesse estaria correto, ou que estaria errado. Supondo que na situação da ilha deserta eu matasse Nigro para salvar a minha filha. Para além de isso não indicar que, em outros contextos, é correto eu matá-lo, mesmo que fosse certo eu matá-lo nesse contexto, o mais importante é o que se segue: do fato de que eu mataria Nigro num contexto assim não se pode inferir disso que a coisa certa a se fazer <i>nesse contexto mesmo</i>. A resposta teria de ser descoberta em outro lugar, que não no que faríamos.<br />
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<i>#84 – O que a maioria faria também não é um bom guia para descobrir o que deve-se fazer/ as intuições da maioria podem ser preconceitos</i><br />
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O que quero apontar agora é que, se é uma falácia naturalista tentar deduzir do que um indivíduo particular faria numa situação, o que deveria ser feito; o mesmo acontece quando se quer deduzir a mesma coisa do que a maioria faria na mesma situação. Já vimos em outra sessão anterior (#29 até #40) por que o apelo à intuições sobre o que deveríamos fazer em casos particulares é perigoso: sem outro argumento adicional, não há como provar que tal intuição traduz a verdade ou se é meramente um preconceito. Se essa intuição pertence a poucos ou muitos, não muda essa possibilidade. Basta lembrar que a intuição da maioria das pessoas, pouco mais de cem anos atrás (e, lamentavelmente, de muitas pessoas hoje em dia) era a de que humanos de pele branca valiam mais do que humanos de pele negra e de que homens valiam mais do que mulheres. Se o apelo a intuições sobre o que fazer em casos particulares fosse legítima, então chegaríamos na situação ridícula de ter que afirmar que, no século XIX, qualquer um que utilizasse como argumento “mas, nossas intuições dizem que brancos valem mais!”, teria então provado que o racismo está correto, e que brancos são mesmo superiores. Como percebemos facilmente hoje, essas intuições eram meros preconceitos. Então, o fato da maioria das pessoas ter uma intuição forte de que humanos valem mais não prova que humanos valem mais. Prova apenas que essa maioria é especista, não que o especismo é justificável. Para provar que o especismo é justificável, precisaríamos de outro argumento, que não meramente apontar que a maioria das pessoas tem um sentimento forte de que o especismo é justificável. A maioria pode estar enganada. Sendo assim, enxergar seres sencientes como iguais, independentemente de espécie, só parece imoral para a maioria porque essa maioria é especista. Da mesma maneira que, se alguém dissesse "seria imoral para o pai se ele ficasse raciocinando para escolher qual dos dois matar, filho branco ou filho negro" (e com isso desse a entender que o dever seria de salvar o filho branco), isso só pareceria imoral para quem fosse racista.<br />
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<i>#85 – Analisando os critérios tidos como relevantes no argumento da casa em chamas: pertencimento à espécie humana; grau de racionalidade e vínculo afetivo do agente para com os atingidos</i><br />
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Já analisamos anteriormente os argumentos principais que Nigro utiliza para tentar justificar o especismo, e vimos que nenhum deles é um bom argumento. Todos têm sérias falhas, ou na sua forma, ou na falsidade de suas premissas. Um dos argumentos utilizados por Nigro, contudo, se estivesse correto, teria uma implicação curiosa, no dilema da casa em chamas: o argumento de que, quanto mais racional a vida, maior seu valor. Minha proposta é que analisemos duas das principais características que são tidas como relevantes no argumento da casa em chamas: (1) A espécie biológica dos indivíduos atingidos (que Nigro pensa estar atrelado automaticamente à maior capacidade racional) e; (2) O grau do vínculo afetivo do agente para com os atingidos.<br />
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<i>#86 – Por que é falso que humanos possuem valor maior</i><br />
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Com relação à primeira, Nigro defende que membros da espécie <i>Homo sapiens</i> possuem um <i>status</i> moral superior. Já analisamos anteriormente os argumentos que ele endereçou para defender essa conclusão (#3 até #28), e vimos que nenhum deles se sustenta. Dentre esses argumentos, estavam: (1) A idéia de que todos os humanos possuem maior valor por serem indivíduos mais racionais que todos os animais não humanos. Tal argumento não se sustenta porque é falso que todo e qualquer humano é mais racional do que todo e qualquer animal não humano, e porque envolve uma confusão entre o critério relevante para saber quem deve responsabilizado (a posse da razão) e quem merece consideração (a vulnerabilidade). (2) A idéia de que os seres humanos possuem maior valor devido ao simples fato de serem humanos; que não se sustenta por ser circular. (3) A idéia de que animais não humanos não possuem valores em geral; que não se sustenta por ser uma falsidade empírica e; (4) A idéia de que animais não humanos, por não possuírem valores morais, possuem um valor inferior. Esse último argumento não se sustenta porque padece da mesma confusão do primeiro, entre os critérios relevantes para alguém ser responsabilizado pelo que escolhe e para alguém ser considerado moralmente. Naquilo que é relevante para saber o grau de cuidado que alguém precisa (a vulnerabilidade, e a possibilidade de ser prejudicado por inflição de sensação ruim ou privação de sensação boa, que depende da capacidade de sentir), humanos e não humanos sencientes estão em pé de igualdade. É por esse motivo que é falso que humanos possuem valor maior.<br />
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<i>#87 – Mesmo se a posse da razão fosse um critério relevante para a consideração moral, isso não apoiaria a conclusão de que os humanos valem mais</i><br />
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Vamos supor, no entanto, que não fosse assim. Vamos supor, para efeito de argumentação, que a premissa maior do primeiro argumento de Nigro estivesse correta: que quanto maior a capacidade racional de um indivíduo, maior o seu valor. Veja que implicação curiosa teria esse argumento na situação da casa em chamas: se a escolha fosse entre salvar um bebê humano de um mês e um cão adulto, o dever seria de salvar o cão adulto, pois é mais racional. Então, em determinados casos, se Nigro fosse coerente com o critério que propõe, teria de defender que o dever é de salvar o animal não humano. Note que não estou dizendo que tal critério está correto (como já argumentei antes, penso que é um mau critério). O que estou dizendo é que o critério de que, quanto maior a capacidade racional, maior o valor da vida, não serve para sustentar a tese de que a vida de todo e qualquer ser humano vale mais.<br />
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<i>#88 – O argumento da potencialidade</i><br />
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Nigro poderia, nesse ponto, contra-argumentar com o conhecido argumento da potencialidade: se o bebê continuar vivo, provavelmente ele será, quando (e se) chegar à idade adulta, mais racional do que o cão. Contudo, mesmo reformulado dessa maneira, o argumento não serviria para sustentar a tese de que a vida humana tem sempre valor maior. Por esse mesmo critério, se a decisão fosse entre salvar um humano com uma grave lesão cerebral irreversível que lhe tirasse todo tipo de autonomia e um peixe normal, o dever seria de salvar o peixe. E, não devemos esquecer que, se o critério é “quanto mais racional, mais valiosa a vida” , o mesmo não serve de apoio para a conclusão de que um pai tem direito de salvar seu filho. Se a escolha fosse entre salvar o filho e um grande filósofo, de acordo com esse critério, o dever seria salvar o grande filósofo. Novamente: menciono essas situações apenas para lembrar das implicações do critério sugerido por Nigro, que penso ser um critério irrelevante, pelas razões que já apontei. Menciono também para apontar que, em argumentos do tipo da casa em chamas, não fica claro qual é o critério que se pretende que seja relevante: se é o grau de racionalidade, se é a espécie do individuo atingido ou se é o vínculo afetivo do agente para com os pacientes. Como conclusão com relação ao argumento da potencialidade, mesmo que fosse verdade que a potencialidade para algo é moralmente relevante (e que seres que possuem uma determinada qualidade em potencial possuem o mesmo status de seres que possuem a mesma qualidade, só que real), e mesmo que todos os humanos fossem seres racionais em potencial, ainda assim tal argumento não teria sucesso para demonstrar que a posse da razão é relevante para saber o valor da vida de alguém. Isso porque o argumento da potencialidade<i> assume</i> que tal critério já é relevante, não o prova. E, temos outras razões para rejeitar tal critério. Quando perguntamos “qual o valor da vida deste indivíduo?”, o que queremos descobrir é o quanto de proteção tal vida precisa, comparativamente a outras vidas, e, em casos de prioridade, quem devemos salvar primeiro. Como pretendo mostrar a seguir (#113, #118 até #125, #156 e #157), os critérios relevantes, nessa questão, são outros.<br />
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<i>#89 – O argumento do grupo</i><br />
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Outro argumento comum que não foi tentado por Nigro, seria o argumento do grupo: “mesmo os humanos que não são portadores da razão, nem reais nem potenciais, pertencem, contudo a um grupo (a saber, a espécie <i>Homo sapiens</i>), cujos membros normais a possuem; portanto, devemos tratá-los como se possuíssem; assim, o especismo está justificado”. O erro moral desse argumento é que “o grupo” já é devido com base na característica que se quer provar como relevante para fundar divisões em grupos. Ele contém uma circularidade, ainda que mascarada. Por que dividir o grupo com base na espécie biológica? Por que não em outra característica irrelevante qualquer, como o lugar de nascimento? O argumento poderia, por exemplo, tomar a forma de: “todos os seres sencientes, mesmo aqueles que não possuem razão, deveriam ser tratados como se possuíssem, porque eles pertencem a um grupo (a saber, os nascidos em Pipocas do Sul) cujos membros normais a possuem”. Vale lembrar que argumento semelhante foi utilizado contra o ingresso das mulheres na vida acadêmica, no século XIX [7]. O argumento era o de que deveria-se barrar a entrada daquelas mulheres que passassem na prova de admissão, porque a maioria das outras do mesmo grupo (o grupo das mulheres) não passou. Note que o argumento do grupo tem uma implicação ainda mais injusta: imagine que um animal não humano, com grande esforço, consiga o grau de racionalidade exigido para ser considerado moralmente, de acordo com o critério da posse da razão. De acordo com o argumento do grupo, o certo seria, mesmo assim, excluí-lo da consideração moral (o que inclui ser correto torturá-lo, queimá-lo vivo, assassina-lo, etc.) simplesmente porque ele não pertence a uma espécie cujos outros membros, os membros normais (não ele) não possuem tal capacidade. A grande lição a ser extraída desse argumento é que devemos tratar os indivíduos enquanto indivíduos, e não enquanto membros de um grupo – ainda mais quando a característica divisora dos grupos é tão arbitrária e irrelevante para o assunto quanto possível (o que o gênero de alguém tem a ver com a capacidade de passar em um vestibular? O que a espécie de alguém tem a ver com a possibilidade de ser prejudicado?). Se deseja-se tanto fazer divisões com base em grupos, as únicas características relevantes para se dividir os grupos, nesses tipos de caso que mencionamos são, respectivamente “aqueles que possuem razão/ aqueles que não possuem”; “os que passaram no teste; os que não passaram”, “os que podem ser prejudicados; os que não podem”, etc. Dividir os grupos dessa maneira seria a mesma coisa que tratar os indivíduos de acordo com suas características, pois o grupo seria dividido de acordo com a característica em questão. Além desse grave erro, o argumento padece do mesmo erro dos anteriores: confundir o critério relevante para saber quem deve ser responsabilizado pelas suas escolhas com o critério relevante para saber quem merece consideração moral.<br />
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<i>#90 – A circularidade e arbitrariedade envolvida no argumento do grupo e outros similares</i><br />
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A outra maneira tentada por Nigro de defender o maior status moral dos membros da espécie humana é abandonar a idéia de que, quanto mais racional o ser, mais ele vale. O problema é que ele adota simplesmente a tese de que “humanos valem mais por serem humanos”, que não funciona porque é circular. Primeiramente, se pergunta “o que torna os humanos superiores?”, e a resposta é “a posse da razão”. Em seguida, se pergunta: “e, aqueles humanos que não possuem razão?”, a resposta é “são superiores porque, apesar de não possuírem capacidade para a razão, são humanos”. O argumento não funciona porque é circular. Da mesma maneira, quando se pergunta, “por que excluir da consideração moral os animais não humanos?”, a resposta é “porque não são racionais”. Quando se pergunta, “e, se algum deles for racional?”, a resposta é “devemos excluí-los porque são não humanos”. Isso revela não só que as respostas sugeridas são circulares, mas que os critérios adotados são mal-intencionados, escolhidos arbitrariamente, com vistas a excluir os animais não humanos da consideração moral. Por que não a data de aniversário ou o número de letras no nome, por exemplo? Esses dois critérios tem algo de fundamental em comum com o critério da espécie biológica: são irrelevantes para se saber se alguém pode ser prejudicado (por inflição de sensação ruim ou privação do desfrute) por nossas decisões.<br />
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<i>#91 – O critério do vínculo afetivo sustenta a conclusão de que seres humanos valem mais?</i><br />
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Passemos, então, a analisar se o critério do grau do vínculo afetivo do agente para com os atingidos pela decisão é uma boa sustentação à tese de que seres humanos possuem maior valor. Não me proporei, nesse artigo, a analisar se o critério do vínculo afetivo é relevante (ou seja, se o vínculo afetivo gera razões para cada agente dar maior importância àqueles com quem possui tal vínculo em maior quantidade). O que me proponho é mostrar que ele não pode dar base para a conclusão de que a vida de seres humanos possui valor maior.<br />
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<i>#92 – Razões objeto-dependente e razões agente-dependentes</i><br />
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Para entendermos melhor o que está em jogo nesse momento, é importante fazer a distinção entre razões objeto-dependentes (agente-neutras) e razões agente-dependentes (também conhecidas como “agente relativo”). Quando se fala de razões objeto-dependentes (agente-neutras) o que se quer dizer é que tais razões se aplicam a todo e qualquer agente de maneira igual, o que implica que todo e qualquer agente deve tomar a mesma decisão em uma determinada circunstância (já que o que gera a razão é o objeto da consideração, não quem está a decidir). Já as razões agente-dependentes existem devido a determinadas relações do agente com as circunstâncias, sendo que é possível que algo gere uma razão para um agente fazer uma coisa, e gere, ao mesmo tempo, uma razão para outro agente não fazer tal coisa.<br />
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<i>#93 – Exemplo de preconceitos objeto-dependente e agente-dependente</i><br />
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Um exemplo ajudará a clarear as coisas. O especismo (ou qualquer outro critério moral) pode tomar essas duas formas. A defesa de que “seres humanos valem mais” é uma defesa de especismo objeto-dependente. Isso porque, o que determina o maior valor é uma característica do objeto da consideração (a saber, os seres humanos), ou seja, os pacientes da decisão, que não dependem da relação deste com um agente. Alguém que defende que “os humanos valem mais” defenderá que todos os agentes morais têm o dever de socorrer primeiro os humanos. Assim, por exemplo, se existissem agentes morais marcianos, um especista “objeto-dependnete” diria que os marcianos também têm o dever moral de dar prioridade a salvar os humanos. Note que dizer “as baleias valem mais”; “os porcos valem mais”, etc. são todas formas de especismo objeto-dependente, já que implicam que todo agente deveria dar prioridade à espécie eleita. Compare com a seguinte forma de especismo: “cada um deve dar prioridade aos da sua espécie”. Essa outra forma é agente-dependente, porque não dirá que todos têm o dever de dar prioridade aos humanos (ou a membros de alguma outra espécie); dirá que cada um tem o dever de dar prioridade aos da sua espécie. Assim, marcianos teriam o dever de salvar marcianos; humanos de salvar humanos, etc. Note que o mesmo tipo de coisa pode acontecer com outros preconceitos. Por exemplo, com relação ao racismo: “os membros da raça x valem mais” (racismo objeto-dependente); “cada um deve dar prioridade aos da sua raça” (racismo agente-dependente). O mesmo poderia acontecer com preconceitos de gênero, de nacionalidade, de direcionamento sexual, etc.<br />
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<i>#94 - A relação dos preconceitos objeto-dependente e agente-dependente com o egoísmo</i><br />
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Essa diferenciação é importante para entendermos a confusão no argumento de Nigro na casa em chamas (como veremos no parágrafo seguinte). Também é importante para entendermos outra confusão que ele faz, quando nega que preconceitos como o especismo, racismo, machismo tenham origem no egoísmo. Como parece já estar claro, em raros casos isso é verdade, pois nunca é verdadeiro com relação ao preconceito agente-dependente (pois cada um tem que priorizar <i>os seus</i>); e, mesmo com relação aos preconceitos objeto-dependente, é raríssimo encontrarmos alguém defendendo que um determinado grupo (espécie, raça ou gênero, por exemplo) é superior e não seja, ao mesmo tempo, membro desse mesmo grupo eleito como superior.<br />
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<i>#95 – A forma das razões que um critério oferece (se é objeto-dependente ou agente-dependente) não diz se o critério é moralmente relevante ou irrelevante</i><br />
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Um detalhe importante: o que descrevi nesse parágrafo são formas com que os critérios propostos tomam. Apesar de eu ter dado exemplos com preconceitos, nada nesse tipo de forma indica que sejam justificáveis ou injustificáveis. Todo critério moral, seja relevante ou irrelevante, toma, ou uma forma objeto-dependente ou agente-dependente. Por exemplo, o critério da senciência como relevante para se determinar quem devemos considerar moralmente assume a forma objeto-dependente. Ou seja, todo e qualquer agente, diante de um ser senciente, possui as mesmas razões para considerá-lo (porque as razões são geradas pelo objeto do respeito, a saber, nesse caso, os seres sencientes). Assim, a resposta para se saber se um critério é relevante ou não precisa ser investigada em outro lugar, que não na sua forma objeto-dependente ou agente-dependente.<br />
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<i>#96 – Por que a espécie da vítima é um critério moralmente irrelevante</i><br />
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O especismo, seja objeto-dependente ou agente-dependente, <i>assume</i> que a espécie das vítimas é um critério moralmente relevante, não o prova. O argumento para demonstrar que tal critério é moralmente irrelevante já foi apresentado anteriormente: uma vez que o indivíduo em questão é senciente, a espécie biológica não influi na possibilidade dele ser prejudicado por inflição de sensação ruim ou privação de desfrute. Como diminuir prejuízos (porque esses são ruins) e aumentar benefícios (porque esses são bons) de maneira imparcial (porque alguém não possui maior valor por ser quem é, como veremos na discussão sobre o egoísmo, em #147 até #157) devem ser a preocupação central da ética, segue daí que a espécie biológica de um indivíduo (sendo tal indivíduo vulnerável aos prejuízos por inflição ou privação, portanto, senciente), uma vez que tal critério não influi nessas características, é irrelevante moralmente.<br />
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<i>#97 – O argumento da casa em chamas e a associação injustificada do critério do vínculo afetivo (agente-dependente) com o critério da espécie (objeto-dependente ou agente-dependente)</i><br />
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Vamos então à outro problema grave com o argumento da casa em chamas: é um argumento que pretende se basear, ao mesmo tempo, na idéia de que a espécie da vítima é moralmente relevante, e de que o vínculo afetivo do agente para com os pacientes de sua decisão também é. Como vimos, o especismo pode vir na forma objeto-dependente (“os membros da espécie x são superiores”) ou agente-dependente (“cada um deve priorizar os da sua espécie”). O argumento de Nigro parece assumir um especismo objeto-dependente na forma de que ‘humanos sempre valem mais’). Contudo, as considerações a seguir se manteriam as mesmas, se o especismo em questão fosse agente-dependente. O argumento da casa em chamas se baseia, ao mesmo tempo, em razões agente-dependentes (o vínculo afetivo que o agente mantém para com os atingidos). O erro de associação de uma coisa com a outra consiste em pensar que tal vínculo afetivo estaria sempre atrelado à espécie, mas isso é falso. Não necessariamente um agente terá maior vínculo afetivo com humanos, ou com alguém de sua espécie. É preciso lembrar também, para maior clareza na análise a seguir, que o critério do vínculo afetivo, no argumento da casa em chamas, é colocado como um critério relevante para se saber qual a decisão correta (não apenas para desculpar alguém caso tenha tomado a decisão errada).<br />
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<i>#98 – Possibilidades de situações de interação entre os critérios do especismo e do vínculo afetivo</i><br />
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Tendo em mente que o argumento da casa em chamas pretende apontar qual a decisão moralmente correta, é preciso analisar algumas possibilidades de como esses dois critérios (o do especismo e o do vínculo afetivo) interagem. Vamos supor as seguintes possibilidades:<br />
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<i>#99 – Vínculo afetivo neutro, vítimas de espécies diferentes</i><br />
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(1) O agente não tem nenhum vínculo afetivo para com os atingidos, e ambos são de espécies diferentes (um é humano, outro não é). A conclusão de que o dever é de salvar o humano só faria sentido se fosse verdade que alguém vale mais por pertencer à espécie <i>Homo sapiens</i>. Por tudo o que já foi debatido acima (#3 até #28), temos razões de peso para rejeitar essa conclusão.<br />
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<i>#100 – Vínculo afetivo neutro, vítimas da mesma espécie</i><br />
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(2) O agente não tem nenhum vínculo afetivo para com os atingidos, e ambos são da mesma espécie (ambos são humanos, ambos são cães, ambos são porcos, etc.). Nesse caso, os critérios sugeridos por Nigro não oferecem guia algum para a decisão (mesmo que a espécie <i>fosse</i> um critério relevante!). Nesse caso, a coisa correta a fazer seria “jogar a moedinha”? Mais adiante (em #112, #113, #118 até #125, #156, #157), exporei porque penso que, na maioria das vezes, existem outros critérios melhores do que “jogar a moedinha” (critérios relevantes que não violem a exigência de imparcialidade, que será explicada mais adiante, em #113 e #114).<br />
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<i>#101 – Vínculo afetivo diferenciado, vítimas de espécies diferentes, maior vínculo com o humano</i><br />
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(3) O agente possui maior vínculo afetivo com o paciente A do que com o paciente B. O paciente A é humano, enquanto que o paciente B não é. Nesse caso, mesmo assumindo para efeito de argumentação que o critério do vínculo afetivo é relevante, o que o argumento mostra é que, nesse caso, o agente tem razões para salvar A não por este ser um humano, mas, por ter maior vínculo afetivo com ele.<br />
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<i>#102 – Vínculo afetivo diferenciado, vítimas de espécies diferentes, maior vínculo com o não humano</i><br />
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(4) O agente possui maior vínculo afetivo com o paciente B do que com o paciente A. O paciente A é humano, enquanto que o paciente B é um animal não humano. Fazendo-se a mesma suposição (de que o critério do vínculo afetivo é relevante), então teríamos o resultado de que, nesse caso, o agente está justificado a salvar o animal não humano. Mais uma vez, tal justificativa tem lugar não por se tratar de um animal não humano, mas, devido ao maior vínculo afetivo do agente para com este. Então, se o critério do vínculo afetivo for relevante, ele dá razões para, pelo menos em alguns casos, pensarmos que o agente tem justificativa para salvar o animal não humano.<br />
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<i>#103 – A objeção de que a espécie da vítima anula o critério do vínculo afetivo</i><br />
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Se, nesse ponto, Nigro objetar que o dever é sempre de salvar o humano, independentemente de vínculo afetivo, então não deveria ter apelado a exemplos onde o vínculo afetivo é um dos pontos centrais, como o exemplo da casa em chamas. Para que trazer exemplos com vínculo afetivo se não se considera ele como tendo peso que possa rivalizar com o da espécie, afinal de contas? Nesse caso, o fato de se colocar a filha do interlocutor como exemplo deixa muito clara a tentativa de apelo retórico. E, por tudo o que já vimos anteriormente, o critério da espécie <i>não é relevante</i>, então, mesmo que o do vínculo afetivo seja ou não relevante (e, se for relevante, tenha a importância que tiver), saber a espécie da vítima não nos responde qual a decisão correta<br />
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<i>#104 – Vínculo afetivo diferenciado, ambas as vítimas da mesma espécie (conclusões principais com relação ao argumento da casa em chamas)</i><br />
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(5) O agente tem vínculo afetivo maior com A do que com B, e ambos são da mesma espécie (ambos são humanos, por exemplo). Nesse caso, o exemplo da casa em chamas sugere que o agente tem justificativa para salvar A (assume o critério do vínculo afetivo como relevante). Mas, note a implicação desse raciocínio: se estiver correto (se o vínculo afetivo for um critério relevante), então isso não é um caso particular de “ou salvar o humano ou o não-humano”; tais exemplos se aplicariam quando o caso fosse entre escolher salvar este ou aquele <i>humano</i>. <i>Portanto, isso mostra que o exemplo da casa em chamas não serve para provar que as vidas de humanos valem mais</i>. E, perceba o principal: mesmo que o critério do vínculo afetivo seja relevante para gerar razões agente-dependentes para cada diferente agente, isso não prova que o paciente em questão possui valor maior, objetivamente, enquanto indivíduo (ele só tem esse ‘valor’ devido à sua relação com o agente).<br />
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<i>#105 – Vínculo afetivo igual, ambas as vítimas humanas (comentário sobre critério da posse da razão ser uma racionalização do especismo, e não um critério no qual se acredita realmente) </i><br />
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(6) O agente tem vínculo afetivo igual com A e B, sendo que ambos são humanos. Nesse caso, precisaríamos de um terceiro critério, pois, se o critério do vínculo afetivo for relevante, ele oferece, nesse caso, iguais razões para salvar ou A ou B (e, se o da espécie <i>fosse</i> relevante, também ofereceria iguais razões). Vamos supor que fosse relevante o critério que Nigro sugere, da maior posse da racionalidade. Seria um dever, por exemplo, salvar sempre o adulto e não o bebê, preferir sempre o bebê sem doença mental do que aquele com doença mental, etc. Note que, por esse critério, o dever seria preferir um cão normal ou um peixe normal do que muitos humanos com doenças degenerativas mentais. Pelo critério de Nigro, da maior capacidade racional, ele teria que salvar o chimpanzé adulto, e não o bebê humano. <i>Importante</i>: se ele diz que vai salvar o bebê humano, e admite-se especista (e, portanto, que se baseia num preconceito irracional da mesma ordem do racismo), então admite que o critério da maior capacidade racional foi trazido apenas como manobra retórica.<br />
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Nesse caso, para evitar tais conclusões, talvez o autor aceitasse o “jogar uma moedinha”. Mas, como veremos mais adiante (em #112, #113, #118 até #125, #156, #157), existem outros critérios melhores.<br />
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<i>#106 – Vínculo afetivo igual, ambas as vítimas não humanas</i><br />
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(7) O agente tem vínculo afetivo igual para com A e B, e ambos são animais não-humanos. Idem ao anterior, haja vista que a espécie da vítima não é um critério moralmente relevante, devido às razões expostas anteriormente (#3 até #28).<br />
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<i>#107 – Vínculo afetivo igual, uma vítima humana e outra não humana</i><br />
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(8) O agente tem vínculo afetivo igual para com A e B, sendo que A é humano e B é um animal não-humano. Se o critério do vínculo afetivo for relevante (e, se não houverem outros critérios relevantes), o agente tem iguais razões para salvar ou A ou B. Nigro poderia aqui afirmar que o dever é sempre de salvar o humano. Contudo, como já vimos exaustivamente antes (#3 até #28), os argumentos que ele oferece para sustentar o maior valor da vida de humanos possuem erros graves. Supondo, para efeito de argumentação, que o critério do vínculo afetivo é relevante, então, num caso assim, tanto faz salvar ou A ou B.<br />
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<i>#108 – O preconceito embutido no argumento da casa em chamas, parte 1</i><br />
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Essa última consideração é importante, pois ela mostra que mesmo com a força de uma relação afetiva, o preconceituoso tenta manter o seu preconceito a qualquer custo. Para entender esse ponto, perceba que a estratégia do argumento é utilizar como exemplo alguém com quem tenho um forte vínculo afetivo (minha filha) e alguém que (supostamente, no entender de Nigro), eu não teria esse vínculo (os gatos que eu tivesse adotado). Um exemplo não tendencioso de dilema com relação a vínculos afetivos, envolveria duas vítimas com relação as quais o agente possui igual vínculo afetivo: "salva qual das suas filhas?". Para entender esse ponto, e como o argumento da casa em chamas envolve um preconceito, considere uma modificação no exemplo. Qualquer um com um mínimo de senso moral veria o quão preconceituoso seria um argumento assim: "Imagine que na casa em chamas está a sua filha e dois negros (ou, dois homossexuais, ou duas mulheres, ou dois judeus); é perfeitamente possível salvar o primeiro negro, mas...etc.". Se o que conta são as relações afetivas (como o exemplo da casa em chamas parece sugerir), por que não simplesmente sugerir “salva sua filha ou um estranho?” – sem menção alguma a raça, gênero, opção sexual, espécie, etc? Note que mais ridículo ainda seria utilizar esse tipo de argumento para tentar justificar assassinar e escravizar membros desses grupos (como Nigro pretende com o argumento da casa em chamas, em relação a assassinar e escravizar membros de outras espécies). Nigro poderia dizer “mas, racismo, nazismo, machismo e homofobia são diferentes, pois trata-se de vítimas humanas”. O erro nessa resposta é não perceber que o que nós estamos criticando é exatamente esse ponto: especismo não é um critério melhor do que racismo, homofobia, machismo ou nazismo. E, os argumentos que Nigro endereçou para mostrar que se tratam de coisas diferentes falharam (ou porque mostram que nem todos os humanos se enquadram no critério sugerido por ele – a posse da razão – e porque envolve a confusão entre o critério relevante para ser responsabilizado com o critério relevante para ser respeitado, ou por circularidade, como vimos em #3 até #28). Mas, adentraremos depois em mais detalhes nessa questão (analisaremos outro argumento que Nigro endereça para tentar demonstrar que o especismo é diferente do racismo, machismo, homofobia e nazismo em #158 até #168) nos próximos itens.<br />
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<i>#109 – O preconceito embutido no argumento da casa em chamas, parte 2</i><br />
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Nigro poderia objetar que o exemplo que oferece não é com relação a “salva sua filha ou um estranho?”, mas “salva sua filha ou seus gatos?”. O problema é que, apesar de inicialmente parecer uma saída, isso torna o exemplo de Nigro é mais preconceituoso ainda, pois no caso, não são estranhos a quem eu tenho que escolher salvar, são os "meus" gatos. Para vermos o quão preconceituoso o exemplo é, basta trocarmos o critério com o qual o proponente do argumento distingue as vítimas: “você salva sua filha branca ou sua filha negra?”; “salva seu filho hetero ou seu filho homossexual?”, “salva seu filho homem ou sua filha mulher?”, etc. Para entender melhor a analogia com o exemplo proposto por Nigro, suponha que a escolha se tratasse entre a minha filha biológica e os gatos que adotei. Se eu tivesse adotado tais gatos, o sentimento que eu teria para com eles seria de filhos adotivos. Então, o argumento de Nigro teria de ser re-escrito assim: "Numa casa em chamas, está sua filha biológica e seus dois filhos adotivos..." (note que agora não há referência à espécie, já que isso não influenciaria no vínculo afetivo, e já que é um critério moralmente irrelevante). Veja, não há nada no argumento que prove que a vida de um filho biológico vale mais do que a vida de um filho adotivo.<br />
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<i>#110 – A circularidade do argumento da casa em chamas e a irrelevância da posse da razão como critério de afetividade</i><br />
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Nigro poderia responder: "ah, mas os outros filhos, nesse caso, seriam de outra espécie". Mas isso é circular: é supor aquilo que o argumento pretende provar. Ou seja, o argumento pretende provar que a espécie da vítima é um critério moralmente relevante, mas, ao invés de prová-lo já assume que é relevante. Nigro poderia objetar novamente: “não é possível ter graus de afetividade iguais para com humanos e não-humanos: humanos são mais racionais”. Já vimos que o problema com esse argumento é que isso é simplesmente falso: existem humanos muito menos racionais do que determinados animais não humanos. Será que um pai deveria ser proibido de amar um filho seu, tanto quanto os outros, só porque tal filho sofre de uma doença degenerativa mental? Se isso fosse verdade, seria errado para as mães terem um vínculo afetivo forte com seus bebês, já que ainda não são racionais. Um peixe adulto possui muito mais autonomia prática do que qualquer bebê. Se percebemos claramente que o critério da racionalidade não é um bom critério para descobrir quem precisa de vínculos afetivos, cuidado, proteção e amor no caso de seres humanos, então o mesmo não pode ser utilizado como estratégia de retórica para se afirmar que não se deve ter o mesmo tipo de vínculo para com animais não humanos. Achar ridículo alguém ter com animais não humanos o mesmo grau de vínculo afetivo com que se tem com filhos humanos é de um especismo extremo. Num caso como o exemplo proposto por Nigro, eu veria a escolha como entre ter que salvar três filhos (de espécies diferentes, mas ainda filhos). E realmente, num caso assim, o que eu faria (e também o que penso ser correto fazer) é salvar aquele que conseguisse pegar primeiro, não importa a espécie. Se Nigro retrucar, alegando que é doentio ter um vínculo afetivo igual com animais não humanos, porque esses não são capazes de razão, teremos de lembrá-lo que, então, o mesmo seria verdade para o vínculo afetivo da mãe com o bebê, ou dos pais para com filhos com doenças mentais permanentes, para com idosos senis, etc. Se Nigro, novamente, alegar que “ah, mas nesse caso estamos falando de humanos”, teremos de lembrá-lo mais uma vez da circularidade desse argumento (pois o argumento da razão foi trazido para justificar a superioridade dos humanos), e assim infinitamente, até ele entender essas noções básicas de raciocínio e vencer o preconceito que o impede de pensar com clareza a questão.<br />
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<i>#111 – Por que as únicas condições que tornariam o argumento da casa em chamas minimamente plausível ao mesmo tempo o condenam ao fracasso</i><br />
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Para o argumento de Nigro ter alguma plausibilidade, ele teria que abandonar completamente a idéia de que é justificável se basear nos vínculos afetivos que temos. Ele teria de dizer: (1) Ou que temos o dever de salvar seres humanos, independentemente do grau de vínculo afetivo que o agente tem para com os pacientes. Como vimos, os argumentos oferecidos para justificar o maior valor da vida humana fracassam (#3 até #28), então, essa tentativa não teria sucesso. Ou, (2) Que temos o dever de ter um vínculo afetivo maior para com seres humanos. Essa idéia está também condenada ao fracasso, porque ela depende do sucesso da primeira (a saber, dependeria dos seres humanos possuírem valor maior). Portando, o argumento da casa em chamas está fadado ao fracasso, seja lá a forma que tiver.<br />
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<i>#112 – Mesmo se humanos tivessem valor maior, isso não sustenta a conclusão de que é correto assassinar quem teria valor menor, e nem mesmo que humanos sempre deveriam ter prioridade (devido ao critério do vínculo afetivo) </i><br />
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Mas, vamos supor, para efeito de argumentação, que Nigro conseguisse provar que os seres humanos possuem um valor maior, e que seria um dever optar por salvar o humano numa situação do tipo da casa em chamas. Como já vimos, isso não serviria para justificar o assassinato e outras formas de exploração sobre os animais não humanos. Contudo, existe outro detalhe importante. Como vimos, o <i>status</i> do critério do vínculo afetivo enquanto critério relevante para entrar no cálculo da decisão correta numa situação extrema é duvidoso. Note que não estou a dizer que é irrelevante ou que não é. Não é meu objetivo aqui responder a esse ponto, e nem sei se tenho a resposta. O que parece é que, quase certamente, o critério do vínculo afetivo é um critério relevante para se desculpar alguém por não ter tomado a decisão correta numa situação extrema. Supondo que A tenha o dever de salvar o indivíduo B, mas que, por ter um vínculo afetivo imenso com C, opta por salvar C. Por se tratar de uma situação extremamente difícil para A, mesmo que ele tenha tomado a decisão errada, isso é altamente desculpável. Então, vamos supor, para efeito de argumentação, que Nigro tivesse provado que há sempre dever de salvar os humanos numa situação do tipo da casa em chamas. Supondo que eu tenho que escolher entre salvar A, que é humano mas eu não tenho nenhum vínculo afetivo e B, que é um não-humano com o qual eu tenho um vínculo afetivo forte. Nesse caso, se eu escolher salvar B, mesmo tendo tomado a decisão errada (no nosso exemplo fictício), Nigro não poderia me condenar. Não mais do que pode condenar alguém que, diante da escolha entre salvar alguém supostamente mais valioso (para efeito de argumentação) e salvar o próprio filho, opta por salvar o próprio filho.<br />
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<i>#113 - A exigência de imparcialidade e a questão da prioridade e da justa distribuição</i><br />
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O que é mais ridículo em argumentos do tipo da casa em chamas é que exatamente os critérios relevantes para a moralidade da decisão ficam de fora, e quase nunca são mencionados, ao mesmo tempo que se enfatiza vários critérios que são, ou irrelevantes, ou altamente duvidosos. Um dos pilares centrais que tornam possível o raciocínio moral é a imparcialidade. Por imparcialidade, o que se quer dizer é que, se alguém receberá algum benefício especial (ou, algum dano), o motivo pelo qual isso se justifica não é que tal indivíduo é quem ele é. O motivo precisa residir em uma característica que apareceu nesse indivíduo, mas poderia ter aparecido em outro. Isso mostra o quão confusa é a idéia de que a imparcialidade implica em tratar exatamente igual cada um dos atingidos. Por exemplo: suponha que eu tenho 100 quilos de arroz para distribuir, e os necessitados que eu tenho possibilidade de ajudar sejam apenas dois indivíduos. O indivíduo A já possui 50 quilos, enquanto que o indivíduo B não possui nada. Num caso como esse, a consideração imparcial manda favorecer o indivíduo B (dar a ele 75 quilos e somente 25 para o indivíduo A). Diz-se que essa decisão cumpriu o requisito de imparcialidade porque, embora ele favoreça B, não se favoreceu B porque é B. Se favoreceu B porque ele está na pior situação. Poderia ter sido A o beneficiado, se ele estivesse na pior situação. O que é importante é lembrar que, para um critério ser relevante, ele precisa, no mínimo, ser possível de ser formulado de forma <i>geral </i>(ou seja, sem fazer referência a indivíduos ou grupos específicos que não tenham a ver com o assunto). No caso, se quiséssemos fazer uma divisão em grupos, os únicos grupos relevantes teriam de ser “aqueles que estão na pior situação” e “os que não estão”. Não faria o menor sentido dividir por raça, gênero, ou espécie (a menos que isso indicasse que boa parte dessa divisão em grupos coincide exatamente com a divisão dos que estão na pior situação – nesse caso, seriam características <i>indiretamente</i> relevantes). Por exemplo, na situação atual, o grupo dos que estão na pior situação coincide quase sempre com o grupo dos animais não humanos. Poderiam ser membros de qualquer outro grupo que estivessem na pior situação (se fosse esse o caso, a prioridade seria deles), o que prova a imparcialidade do critério “dar prioridade aos que estão na pior situação”. Mas, é sempre muito melhor dividir os grupos com base na característica diretamente (e não indiretamente) relevante para situação: os que se encontram e os que não se encontram na pior situação. Tal critério cumpre os requisitos de imparcialidade (por ser geral quanto aos indivíduos ou grupos), e por se basear na característica relevante central para a questão: se a questão é distribuir algo, o ponto central é ver quem tem maior necessidade.<br />
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<i>#114 - Por que determinados critérios não cumprem a exigência de imparcialidade e por que determinados critérios são moralmente irrelevantes, e por que outros critérios são arbitrários</i><br />
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Compare com critérios como espécie biológica, raça, gênero, país de nascimento, etc. Existem pelo menos três problemas graves com esse tipo de critério. O primeiro é que ele não cumpre o requisito de imparcialidade. Uma vez que o indivíduo nasceu numa determinada raça, não há como ele mudar para outra. Uma vez que nasceu em determinada espécie, não há como mudar para outra, e assim por diante. O segundo problema, é que a eleição do critério é arbitrário, pois é baseado numa característica moralmente irrelevante. Lembre-se que estamos querendo descobrir quem merece respeito, quem deve ter sua vida protegida, etc. A raça, gênero, espécie, país de nascimento não influenciam no motivo pelo qual alguém precisa de respeito: a possibilidade desse alguém ser prejudicado (por inflição de sensação ruim ou privação de desfrutar algo bom), já que é vulnerável. Então, cabe notar que raça, espécie, gênero são critérios tão moralmente relevantes como o dia do nascimento, o formato da orelha, o número de letras no nome, a data de aniversário, etc. O terceiro problema é que, além do critério mesmo se basear numa característica moralmente irrelevante, a eleição do grupo beneficiado dividido de acordo com esse critério também é arbitrária. Por exemplo, o especismo adota o critério da espécie biológica como se fosse um critério relevante (que, como vimos, não é), e, além disso, assume que a espécie <i>Homo sapiens</i> possui maior valor, mas (isso é postulado, sem motivo algum, como já analisamos anteriormente em #23 até #28). Os argumentos oferecidos para sustentar tal tase são mais racionalizações do que os reais motivos dos seus proponentes acreditarem nela. Como vimos, o argumento da posse da razão não serve para sustentar tal tese (porque existem humanos que não são racionais, e porque a posse da razão também é irrelevante para se saber quem deve ser moralmente considerado). A pergunta a ser feita é: se a espécie é relevante, por que os humanos, e não qualquer outra espécie?<br />
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<i>#115 – Os reais motivos por trás dos argumentos que visam defender o especismo e as “razões do coração”</i><br />
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A resposta mais sincera de Nigro (mas, nem por isso uma boa resposta) é oferecida, depois de perceber que o critério da posse da razão não é moralmente relevante, e de perceber que é circular apontar que “humanos são humanos”: “o coração tem razões que a própria razão desconhece”. E, desconfio eu, ainda que isso seja uma mera especulação, que talvez o motivo real ainda seja outro: a dificuldade em aceitar a conclusão prática de ter que abolir o consumo de produtos de origem animal e de ter que reivindicar igual consideração para todos os seres sencientes. Oferecendo essa resposta (“o coração tem razões que a própria razão desconhece”), o autor admite implicitamente que as razões que oferece não são boas, e que tudo o que ele possui é um sentimento forte de que humanos valem mais (assim como os nazistas possuíam um sentimento forte de que os arianos valiam mais). Na falta de razões em respaldo de uma intuição moral (ainda mais uma intuição moral que causa tanto sofrimento e morte no mundo), temos razões de peso para considerá-la um preconceito eticamente indefensável. Retratá-la poeticamente, chamando-a de “razões do coração” não tem o poder de tornar justificável um preconceito irracional, tem apenas o poder de fazer parecer assim na mente dos ingênuos e facilmente manipuláveis. Felizmente, essa forma de manipulação não funciona com todo mundo.<br />
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<i>#116 - Em defesa do critério da senciência e a relação da senciência com a existência de indivíduos</i><br />
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Uma possível objeção seria dizer que, assim como os critérios da espécie, raça e gênero, o critério da senciência também impossibilita um indivíduo de mudar de grupo. Em outras palavras, alguém poderia dizer: “você está sendo injusto com os vegetais, e os minerais (e as cadeiras e os tijolos) por favorecer os seres sencientes”. O erro com esse argumento é não perceber que, diferentemente dos critérios da espécie, raça e gênero (onde há sempre um <i>indivíduo</i> prejudicado), o critério da senciência não prejudica indivíduos. É inteligível dizer que um racista prejudicou um membro da raça que ele considera inferior, assim como é inteligível dizer que um especista prejudica animais não humanos. Não é inteligível (a não ser de forma metafórica, não literal), dizer que “o limão foi preudicado pelos que acham que a senciência deveria ser o critério moralmente relevante para estabelecer quem merece respeito”. Isso não faz sentido porque não há um indivíduo limão a quem se possa prejudicar. Apenas para relembrar, vimos que existem duas formas básicas de se prejudicar alguém: ou por inflição de <i>sensação</i> ruim, ou por privação de <i>sensação</i> boa. Repare que isso depende da existência da capacidade para sensações. A própria noção de indivíduo remete à existência mental: aqueles seres aos quais a existência da mente proporciona a sensação de que ‘você é um só’ (e não um aglomerado de partes). É possível dizer, de forma metafórica, que a “a cadeira foi prejudicada ao ser quebrada”. Mas, esse “prejudicada” é sempre entre aspas. Não há um indivíduo cadeira que “se lascou” por ter sido quebrada, já que isso não impediu ela de desfrutar (já que tal capacidade nela é impossível) muito menos lhe infligiu sensação ruim alguma (já que ela não depende de sensações). A cadeira é às vezes vista como um indivíduo por algumas pessoas, mas quem faz isso são os seres sencientes humanos. Outro detalhe importante é entender que o critério da senciência é elegido não por ser algo que a maioria dos demais animais possui em comum com os seres humanos (como se acusa freqüentemente, do critério da senciência ser, no fundo, antropocêntrico), mas sim, por ser uma condição necessária para existir prejuízo ou benefício para um indivíduo. Então, também é falsa a acusação de que o critério da senciência é antropocêntrico.<br />
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<i>#117 – A importância de se descobrir quais critérios relevantes para decisões do tipo da casa em chamas</i><br />
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Tendo entendido o que é um critério imparcial, gostaria de apontar agora que existem critérios imparciais moralmente relevantes que nos ajudariam a tomar a decisão correta para casos do tipo da casa em chamas. Muitas pessoas pensam que tais critérios não são necessários, pois raramente nos deparamos com situações desse tipo. Isso é falso por pelo menos dois motivos. Bombeiros e médicos, por exemplo, se deparam diariamente com decisões sobre quem dar prioridade no salvamento da vida. O segundo motivo é que, se levarmos em conta as vidas que podemos salvar com doações de tempo e dinheiro, vamos precisar de um critério assim para tomar uma decisão justa.<br />
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<i>#118 – Critérios moralmente relevantes em situações do tipo da casa em chamas: vulnerabilidade e igualdade de bem-estar ao longo do tempo</i><br />
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Então, melhor do que “atirar uma moedinha para o ar” (critério mencionado por Nigro), outros critérios poderiam entrar em cena. O dilema da casa em chamas deixa de fora exatamente dois outros critérios que penso serem extremamente relevantes para estabelecer a prioridade de socorro numa situação assim: (1) O grau da capacidade de se virar sem ajuda na presente situação (menor ou maior vulnerabilidade) e; (2) a igualdade de bem-estar ao longo do tempo. Tais critérios cumprem as exigências de imparcialidade, pois são gerais (não favorecem tendenciosamente nenhum indivíduo).<br />
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<i>#119 - Prioridade a quem tem menor habilidade para resolver a situação sem ajuda (maior vulnerabilidade)</i><br />
<br />
É importante notar que tais critérios geram razões objeto-dependentes (iguais para todos os agentes), pois se tratam de características que são determinadas unicamente pelas habilidades dos indivíduos atingidos pela decisão (e tais habilidades são independentes de gênero, espécie, raça, etc.). Novamente, apelar à raça, gênero, espécie, nesse caso, só faria sentido se tais critérios coincidissem com as habilidades dos indivíduos em questão (digamos, que os indivíduos da espécie x tivessem sempre menor habilidade de escapar de incêndios, etc.). Contudo, com vistas a prevenir o especismo ou qualquer outro critério tendencioso, melhor nos basearmos unicamente na característica que o princípio propõe: as chances que o indivíduo possui de se virar sem ajuda na presente situação. Ao que parece, é razoável supor que tais critérios são independentes e superam quaisquer considerações sobre o vínculo pessoal do agente para com os pacientes. Ou seja, se são dois estranhos que serão atingidos pela minha decisão, é sempre melhor oferecer ajuda ao que possui menor habilidade na situação (portanto, maior vulnerabilidade). Se, por outro lado, possuo vínculo afetivo com um deles e não com o outro, vale a mesma regra. Se minha filha for uma excelente nadadora e o filho de um estranho não souber nadar, pelo menos à primeira vista parece que a coisa certa a se fazer é tentar salvar primeiro o filho do estranho. E, importante, essa regra se baseia num critério<i> gradual</i>: quanto <i>menor</i> a chance do paciente se livrar sozinho na situação (portanto, quanto <i>maior</i> sua vulnerabilidade),<i> maior</i> o dever de dar prioridade ao seu socorro. Essas capacidades terão de ser sempre pesadas em comparação com as capacidades dos outros pacientes atingidos pela minha decisão. Quanto menores as diferenças de capacidades entre tais pacientes, menores as razões para dar prioridade para este ou aquele. Esse critério nos lembra de outro detalhe importante: quanto maiores as habilidades ou capacidades de alguém, as reivindicações desse alguém para exigir prioridade no socorro terão sempre um peso moral menor, não maior, como pretende Nigro. É por isso que a posse da razão geralmente só deveria gerar mais deveres (porque aumentam as habilidades de alguém), e não, mais direitos.<br />
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<i>#120 - Distribuição eqüitativa de bem-estar e de habilidades para buscar o bem-estar/ linha de suficiência na re-distribuição de bem-estar</i><br />
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Na consideração que fiz acima, na última frase, está implícita um dos objetivos centrais da ética: um tratamento eqüitativo entre os indivíduos. Por que deve ser assim? Por que o egoísmo não se justifica (como esclarecerei em #147 até #157). Por eqüitativo, quer-se dizer igualar tanto as distribuições de bem-estar quanto igualar as habilidades dos indivíduos na busca desse bem-estar. Ou seja, em qualquer uma dessas considerações, o objetivo é neutralizar a sorte. Assim, por exemplo, deveríamos buscar tanto que os indivíduos chegassem a níveis próximos de bem-estar (assim, os que estão na pior situação merecem prioridade nesse atendimento) quanto a níveis próximos de habilidades para buscar esse bem-estar, pois isso aumenta as chances de um resultado mais próximo de níveis de bem-estar. Como atingir o bem-estar almejado tem relação com as habilidades do indivíduo em buscar esse bem-estar, daí a regra de que quem tem menor habilidade deve receber atenção primordial. Quanto ao primeiro ponto, se for necessário tirar um pouco dos que estão na melhor situação para melhorar as do que estão na pior, o princípio da eqüidade na distribuição justifica essa decisão. A própria idéia de impostos e também a do dever moral de ajudar quem está na pior situação se baseia, em parte, nesse princípio. Contudo, em algum ponto, será necessário estabelecer um limite do quanto é justificável tirar de uns para beneficiar outros que estão numa situação pior. É por esse motivo que alguns filósofos estabelecem o que chamam de <i>linha de suficiência</i> – um ponto a partir do qual se pode dizer que, abaixo dessa linha, o indivíduo não está bem (então quanto mais abaixo, é cada vez menos justificável daná-lo para beneficiar os que estão pior do que ele), e acima dessa linha, que o indivíduo está bem (então, quanto mais acima, cada vez mais justificável daná-lo para beneficiar os que estão na situação pior – é por esse motivo que, quanto mais alguém possui, mais dever têm de doar). Note que nada disso justifica assassinar alguns , ou obrigá-los a servir como cobaia – pois isso é colocá-los abaixo da linha de suficiência.<br />
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<i>#121 – Igualdade de bem-estar ao longo do tempo</i><br />
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A distribuição eqüitativa de bem-estar não se deve limitar somente a considerações quanto ao presente. Isso porque seria injusto considerar somente o presente. Ilustrarei esse ponto com exemplos utilizando números. No dia-a-dia, não temos como fazer comparações precisas dessa maneira. Contudo, os números, além de nos ajudarem a entender o princípio em questão, nos lembram que no dia-a-dia, apesar de não utilizarmos números, fazemos, intuitivamente, comparações aproximadas. Considere, por exemplo, os indivíduos A e B. No momento presente, A se encontra no nível de bem-estar +50 e B no nível +55. Se, ao distribuirmos algum bem (seja alimento, seja prioridade na ajuda, seja escolher salvar a vida, por exemplo), dissermos automaticamente que a prioridade é de A, por estar numa situação pior, corremos risco de sermos injustos, pois não consideramos o que aconteceu durante as vidas como um todo, desses indivíduos. Supondo que, se contássemos o que aconteceu durante a vida inteira desses dois indivíduos, o resultado seria que A viveu o tempo todo perto do nível +50, enquanto que B viveu o tempo todo abaixo de –5 e só agora conseguiu um bem-estar razoável. Nesse caso, é razoável concluir que a prioridade é de B, pois, apesar dele estar melhor do que A no momento presente, o momento presente é apenas um dos vários estágios da vida de cada um no total. E, se enxergarmos a vida como um todo, veremos que nenhum dos estágios particulares deve ter um <i>status</i> privilegiado. Obviamente, como acontece com toda visão filosófica, essa também possui objeções (alguns autores reivindicam que devemos considerar somente o momento presente). Não abordo essas objeções aqui. Minha meta nessa resposta é investigar o que devemos fazer em casos de prioridade em salvar vidas se o bem-estar ao longo do tempo (e não somente no momento presente) for um critério moralmente relevante (como penso que seja). <br />
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<i>#122 – A igualdade de bem-estar ao longo do tempo e a prioridade no salvamento de vidas</i><br />
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Como tudo isso se aplica no exemplo da casa em chamas? Da seguinte maneira: teríamos de não apenas fazer considerações sobre quem já viveu maior quantidade de tempo (o que sugeriria à primeira vista que quem viveu mais desfrutou mais), mas como foi a qualidade de vida nesse tempo (o que pode anular ou não a consideração anterior sobre a quantidade do tempo). Quem tivesse desfrutado menos, deveria ter prioridade. Outro critério que poderia entrar na consideração é a possibilidade de desfrute no futuro. Ao que parece, não faz muito sentido dar prioridade a salvar a vida de alguém que já se sabe que vai morrer amanhã, de qualquer forma. Esses critérios me parecem razoáveis, apesar de ter implicações contra-intuitivas para a maioria. Temos de reconhecer que a prioridade entre salvar a vida de uma pessoa que viveu o tempo todo num campo de concentração e a minha ou a sua ou a do Dr. Carlos Nigro, é sempre da pessoa que viveu o tempo todo num campo de concentração (pois essa pessoa desfrutou muito menos). Existe outra implicação, mais contra-intuitiva ainda: se alguém tivesse que escolher entre salvar a sua vida ou a minha ou a do Dr. Carlos Nigro (vidas que possivelmente já tiveram anos de desfrute, e com uma qualidade razoável), e salvar a vida de uma galinha que viveu toda a sua vida numa granja industrial (ou seja, viveu uma vida terrível até agora), a coisa certa a se fazer (independentemente do que eu, você ou qualquer outra pessoa faria), seria salvar a galinha - para proporcionar a distribuição de desfrute de maneira equitativa. É verdade, a maioria das pessoas acharia absurda essa conclusão. Contudo, se não conseguem um bom argumento para explicar o que há de errado com a conclusão, o absurdo é o preconceito dessas pessoas.<br />
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<i>#123 - Por que nossas intuições muitas vezes revelam nossos preconceitos e porque a incoerência de alguém não prova que o princípio que propõe está errado</i><br />
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A maioria das pessoas enxergaria essas implicações contra-intuitivas como gerando um ponto de interrogação nos princípios que sugeri. Contudo, penso que isso só revela os preconceitos das pessoas, em não quererem admitir que máximas que acreditaram durante a vida inteira (“humanos valem mais”, “cada um deve dar prioridade a si próprio”, etc.) são puros preconceitos auto-interessados, que carecem de justificativa. Apenas para relembrar: não sei se eu, ou a maioria de nós, teria uma vontade forte para, numa hora extrema dessas, fazer a coisa certa. Contudo, no máximo, isso serviria para me acusar de hipocrisia, ou de vontade fraca (e, não, uma base para responder qual a coisa certa a se fazer). E, não seria nem base para uma acusação de hipocrisia forte, pois, numa situação extrema dessas (filha em risco de vida, risco de inanição, acidentes com avião, etc.) não faz muito sentido exigir o mesmo que se exige quando as pessoas não estão em pânico. Contudo, mesmo que tais acusações fizessem sentido, elas serviriam para analisar apenas a coerência do agente, e nada diriam com relação ao <i>status</i> do princípio proposto. Em outras palavras, o fato de alguém ser incoerente não prova que o princípio que propôs estava errado. Isso teria de ser provado em outras bases. Note que esse não é o tipo de situação (pânico, risco de vida, acidentes, etc.) que se deparam, por exemplo, as pessoas que vão a um supermercado e precisam escolher se consomem produtos veganos ou oriundos da exploração animal. Faz sentido acusar de hipocrisia forte alguém que diz ser contra causar morte e sofrimento por motivos fúteis mas não é a favor de abolir o uso de animais para produção de alimentos, já que podemos viver sem eles, por exemplo. E, o porquê de ser errado explorar os seres sencientes já foi explicado anteriormente com argumentos independentes (#13 até #22).<br />
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<i>#124 - Outros critérios relevantes além da eqüidade de distribuição (valor indireto dos bons agentes morais)</i><br />
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O objetivo desse artigo, ao propor o critério da distribuição eqüitativa, não é esgotar os critérios relevantes dessa questão. Alguém poderia dizer que determinados humanos deveriam receber prioridade por serem bons agentes morais, e que, portanto, perdê-los faria aumentar significativamente o sofrimento dos seres sencientes no mundo. Essa consideração provavelmente faz sentido, mas é importante lembrar que ela é uma consideração indireta (os agentes valem mais pelo bem que podem proporcionar aos outros, e não, valem mais porque são quem são). É de se esperar que bons agentes morais ajudem os outros, e não, que se desdobrem em racionalizações e estratégias de retórica para continuar a justificar desrespeitar seres sencientes (e, geralmente, altamente vulneráveis) para todo e qualquer propósito (incluindo propósitos fúteis como comê-los quando há tanta comida menos danosa disponível).<br />
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<i>#125 – Conclusão quanto ao argumento da casa em chamas</i><br />
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Então, contrariamente ao que o Dr. Nigro supõe, o argumento da casa em chamas, se prova alguma coisa, prova que o especismo é tão deplorável quanto o racismo, machismo, nazismo, homofobia, etc.<br />
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Notas:<br />
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<br />
[6] Ver, por exemplo, FRANCIONE, Gary L. Introduction to Animal Rights: Your Child or the Dog? Philadelphia: Temple University Press, 2000 e REGAN, Tom. The Case for Animal Rights. 2nd ed. Los Angeles: University of California Press, 2004<br />
<br />
[7] Mais sobre esse ponto e uma refutação ao argumento do grupo em SINGER, Peter - The Significance of Animal Suffering. In: BAIRD, Rober M. & ROSEMBAUM, Stuart E. (Eds.) Animal Experimentation: The Moral Issues. Amherst, NY: Prometheus Books, 1991, pp 57-65.<br />
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Luciano Carlos Cunhahttp://www.blogger.com/profile/11543323145219198300noreply@blogger.com3tag:blogger.com,1999:blog-1743587667987089964.post-28616632737502952242012-12-19T05:28:00.002-08:002012-12-20T06:01:06.049-08:00Parte 4 – A idéia de que animais não possuem valores e a defesa do bem-estarismo<br />
<b>Parte 4 – A idéia de que animais não possuem valores e a defesa do bem-estarismo</b><br />
<br />
<i>#41 – O argumento de que não é errado matar animais não humanos porque eles “não possuem valores”</i><br />
<br />
O Dr. Carlos Nigro parece extrair a conclusão de que é correto matar animais não humanos (para comer sua carne ou matá-los e torturá-los na produção de leite e ovos, por exemplo) do seguinte argumento:<br />
<br />
<i>“Não maltratar animais e matar animais da forma mais indolor possível é um dever moral. Fazer sofrer ou assassinar, por motivos fúteis, é fazer o mal. Mas a própria ideia de que isso seja maldade é fruto apenas da razão humana, os animais não raciocinam e não tem valores”.</i><br />
<br />
A conclusão de Nigro é a postura conhecida como “bem-estarista” (que chamarei de reformista): temos o dever moral de não causar sofrimento ou assassinar animais não humanos, mas apenas quando os motivos dos agentes humanos forem fúteis. Quando os motivos forem importantes, tanto o causar sofrimento quanto assassinar estariam, no entender dessa visão, justificados moralmente. Essa justificativa, como sugere o argumento de Nigro, é extraída da premissa de que os animais não possuem valores, e que não possuem valores porque não racioninam.<br />
<br />
<i>#42 – A conclusão de que não se deve assassinar por motivos fúteis não segue logicamente da premissa de que a morte não é um dano</i><br />
<br />
O primeiro erro com o argumento de Nigro é que parece não ser consistente com o restante das coisas que ele alega sobre animais não humanos. Como vimos anteriomente (em #19), Nigro afirmou que “...os animais não tem um projeto de vida, por isso a morte não lhes tira nada”. Se fosse verdade que a morte não representa um dano para os animais não humanos (e, como vimos em #19, isso é falso porque é confundir sofrer uma perda com ter consciência da perda), então a conclusão que se seguiria desse raciocínio é que não é errado matá-los, seja lá se o motivo for fútil ou não. Consistente com essa premissa, a posição reformista tradicional é exatamente assim: diz que temos dever de não causar sofrimento por motivos fúteis, mas nenhum dever com relação a não matar (seja lá por motivos fúteis ou importantes). Assim, diferentemente do raciocínio de Nigro, a posição reformista tradicional é coerente (não quer dizer que esteja correta, como veremos a seguir). A contradição na posição de Nigro é que não é possível reconhecer que é errado matar por motivos fúteis sem ao mesmo tempo reconhecer que a morte mesma representa algum tipo de dano. Se morte para os animais não humanos não representasse prejuízo algum, então não seria errado matá-los, mesmo por motivos fúteis (já que nada de mal lhes aconteceria). Contudo, se o autor reconhece que é errado matá-los por motivos fúteis, então reconhece que a morte representa dano para eles, o que contraria sua tese de que a morte, por si só, não é um mal para quem não possui um “projeto de vida”.<br />
<br />
<i>#43 – Por que o argumento bem-estarista de que o único dever é não causar sofrimento não é sólido: não reconhece o dano na forma da privação do desfrute/ discutindo a visão epicurista da morte</i><br />
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Obviamente, a posição reformista só faria sentido se a morte mesma, independentemente de existir sofrimento durante a hora da morte, não fosse uma perda para os animais não humanos. Como vimos na sessão 2, isso só seria verdadeiro se a única forma de prejuízo possível fossem inflições de sensações ruins. Pelas razões apresentadas no mesmo item, isso é falso: existe uma forma muito comum de prejuízo, a saber, o dano por privação de desfrute, que é a forma mais clara de explicar onde está o principal mal de morrer. E, muito importante: para padecer desse mal não é necessário ter uma compreensão do que é a morte. A idéia epicurista de que o único mal da morte residiria no medo de morrer (e o erro em matar seria somente devido a inflição da sensação ruim do medo de morrer) envolve o erro de se esquecer da possibilidade de dano pela privação de algo bom. O argumento epicurista central diz o seguinte: não se deve temer a morte, porque, quando existe o vivo, a morte não tem lugar; quando há a morte, o vivo não existe mais. Um epicurista perguntaria: “mas, onde está o mal da morte, se o indivíduo não existe mais?”. Novamente, a confusão presente no argumento epicurista é pensar que a única forma de perda, prejuízo se dá por inflição de sensação ruim, e não por impossibilidade de se desfrutar satisfação. Se a morte não fosse um dano por privação de desfrute, tentar escapar da morte seria irracional, e ninguém deveria se sentir culpado em infligir sofrimento causando medo de morrer (com ameaças de assassinato, por exemplo), já que tal medo seria desprovido de sentido.<br />
<br />
<i>#44 – Entendendo melhor o dano por privação do desfrute</i><br />
<br />
Para entender melhor a idéia de perda por privação, imagine o mesmo indivíduo A, e as possibilidades disponíveis para ele: (1) Ou vive mais 40 anos, com uma qualidade de vida boa; (2) Ou morre agora, de maneira instantânea e sem dor. Se enxergarmos as possibilidades do quadro geral de qual a melhor situação, certamente percebemos que a situação 1 é melhor, e que o indivíduo A é prejudicado se lhe acontece a situação 2 (a saber, perde de desfrutar a possibilidade 1), mesmo que não tenha consciência do que perdeu (mesmo que não tenha consciência alguma, já que estará morto). Para entender o dano por privação, então, é necessário “sair do momento presente”, e sai da percepção individual, e analisar “de cima” o quadro geral de possibilidades. Em teoria, muitas vezes para ganhar o debate, alguns negam essa forma de dano. Na prática, contudo, ninguém quer tomar um “<i>drink letal</i>”, mesmo sabendo que não haverá dor ao morrer.<br />
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<i>#45 – Ambigüidade com o uso do termo “valor”: valor moral ou valores em geral?</i><br />
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Outro problema com o argumento envolve várias confusões e ambigüidade com o conceito de valor (fica vago se o autor se refere a valor moral ou valor em geral). Um quarto problema, derivado deste, consiste em que, seja lá qual for a maneira que interpretemos o que o autor quer exprimir pela palavra “valor”, a conclusão que se segue logicamente deveria ser a oposta à que o autor chega. Analisemos esses dois problemas conjuntamente:<br />
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<i>#46 – O argumento de que, para se possuir valores, é necessário que se seja racional</i><br />
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Nigro nega que os animais não humanos possuam valores. Dando sustentação a essa tese, está a premissa de que, para alguém valorizar algo, esse alguém precisa ser racional. A conclusão a qual Nigro chega, partindo dessas premissas é a de que é errado fazer sofrer ou matar animais não humanos apenas quando os motivos dos humanos são fúteis. Em resumo, Nigro apresenta dois argumentos, um derivado do outro:<br />
<br />
(1) Para alguém possuir valores, é necessário que o indivíduo em questão seja racional;<br />
(2) Os animais não humanos não são racionais;<br />
(3) Logo, os animais não humanos não possuem valores.<br />
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<i>#47 – O argumento de que não precisamos respeitar os animais não humanos porque eles ‘não possuem valores’</i><br />
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O segundo argumento é esse:<br />
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(1) Só quem possui valores deve ser objeto de respeito;<br />
(2) Os animais não humanos não possuem valores;<br />
(3) Logo, devemos respeitar os animais não humanos apenas quando o motivo para desrespeitá-los for fútil.<br />
<br />
<i>#48 - Interpretando “valor”, nos argumentos acima, como qualquer tipo de valor: é falso que para se ter valores precisa-se ser racional</i><br />
<br />
Comecemos por analisar o primeiro argumento. A primeira premissa será verdadeira ou não dependendo do que o autor se refira por valor. Se o autor se refere a valorizar em geral (preferir umas coisas em relação a outras), então a premissa é falsa (como detalharei a seguir) e, mesmo que o argumento tenha forma válida (se a premissa fosse verdadeira, seria impossível a conclusão ser falsa), a conclusão é falsa porque a primeira premissa é falsa. A primeira premissa, se refere-se à valorizar em geral, é falsa porque conduz a conclusões absurdas, como ter que dizer que é indiferente para o animal não humano (ou qualquer humano incapaz de razão) ele ser queimado vivo, ter uma perna arrancada, morrer de inanição, etc. Obviamente, os animais não querem sofrer e querem sentir prazer. Isso mostra que eles têm valores. Se eles não valorizassem o prazer e não desvalorizassem o sofrimento, passariam o tempo todo indiferentes a aquilo que lhes dá prazer ou sofrimento. Mas, não é isso que acontece. E isso não acontece porque para alguém possuir valores, nesse sentido geral de valor, depende apenas desse alguém ser ou não senciente (ser capaz de sofrimento e satisfação), e não, de ser racional (ser capaz de fazer inferências). Todo ser senciente, em termos gerais, busca o prazer e foge do sofrimento. Isso só é possível porque eles valorizam. Mais uma vez, isso não depende da capacidade para a razão, apenas da capacidade de sentir. Assim, a existência de valores, em geral, depende unicamente de se o ser é senciente ou não.<br />
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<i>#49 – Se “valor” refere-se a valores em geral, é falso que animais não humanos não possuem valores</i><br />
<br />
Assim, se “valor” é interpretado nesse sentido, a conclusão do primeiro argumento é falsa porque a primeira premissa é falsa. O argumento não é sólido mesmo que admitamos, para efeito de argumentação, que a segunda premissa (a de que animais não humanos não são racionais) é verdadeira; o que também é discutível. Mantendo então essa interpretação do que o autor quis dizer com “valor”, analisemos o segundo argumento. O segundo argumento tem a primeira premissa verdadeira. Realmente, se um indivíduo não valoriza nada (ou seja, se não prefere alguns estados de coisas em relação a outros), então não há nada que possa lhe prejudicar: qualquer coisa que lhe fizermos ou deixarmos de lhe fazer será indiferente para ele. Então, num caso assim, não haveria necessidade de respeitá-lo. Tijolos, sapatos e canetas (e bolas de sinuca também!) são o melhor exemplo de coisas desse tipo. O problema com o segundo argumento não é, então, na primeira premissa. É na segunda. Como vimos no parágrafo anterior, os animais sencientes possuem valores, nesse sentido geral (de preferirem um estados em relação a outros). O que caracteriza um ser senciente é a aversão pelo sofrimento e a busca pelo prazer. Então, é falso que animais não humanos não possuem valores.<br />
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<i>#50 – Se um objeto não possui preferências (não valoriza algumas coisas e desvaloriza outras), então nada há que considerar, independentemente dos motivos do agente serem fúteis ou não</i><br />
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A parte mais estranha do argumento, contudo, é sua conclusão. Ela não segue das premissas. As premissas não apoiariam a conclusão nem se a segunda premissa fosse verdadeira. <i>Se</i> a segunda premissa fosse verdadeira (<i>se</i> os animais não valorizassem nada), então a conclusão que se seguiria disso é que jamais precisamos respeitá-los, e não apenas quando os motivos dos humanos são fúteis. Não faria sentido afirmar, por exemplo, que, já que o tijolo não valoriza nada, então você não deve chutá-lo quando o seu motivo para isso for fútil. A menos que exista alguém interessado em ver o tijolo intacto, não há motivos para pensar assim (chutar um tijolo, seja lá qual for o motivo que leve alguém a chutá-lo, nunca faz mal algum para o tijolo). Pelo menos, nenhum motivo que gere deveres <i>diretos para com o </i>tijolo (já que nenhum mal é feito ao tijolo, pois o tijolo não prefere uns estados e coisas em relação a outros). Os únicos motivos plausíveis para não se chutar um tijolo seriam de deveres indiretos para com alguém que tivesse interesse (portanto, um ser senciente) em ver o tijolo intacto.<br />
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<i>#51 – A noção de que não devemos causar danos aos animais por motivos fúteis reconhece que eles valorizam </i><br />
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Assim, a conclusão de Nigro é misteriosa. O que dá a entender é que ele mesmo reconhece que os animais valorizam. De que outra forma ele poderia concluir que é moralmente errado causar-lhes sofrimento ou assassinar por motivos fúteis? Se o sofrimento não fosse algo ruim (o que implica valoração) para os animais, de onde viria esse dever? Nigro reconhece que os animais sofrem. Deve provavelmente reconhecer que sofrer é algo muito ruim (já deve ter sofrido antes, para saber isso). Então, como pode concluir que os animais não valorizam nada e, ao mesmo tempo, dizer que temos um dever moral de não causar sofrimento desnecessário para os animais? A menos que Nigro enxergue esse dever de não causar sofrimento aos animais por motivos fúteis como um dever <i>indireto</i> a humanos que tenham interesse em tais animais. Mas, penso que não é esse o caso. Penso que Nigro reconhece que o sofrimento é algo ruim <i>para os animais</i> (assim como é intrinsecamente ruim para qualquer um que o sinta), e que é isso que dá origem ao dever de não causar sofrimento “por motivos fúteis”. O problema para o argumento de Nigro, é que isso implica em reconhecer que os animais possuem valores.<br />
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<i>#52 - Interpretando “valor”, nos argumentos acima, como valor moral: o primeiro argumento se torna sólido às custas de sacrificar a solidez do segundo argumento</i><br />
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Uma possível saída para Nigro, com vistas a evitar reconhecer que os animais possuem valores, é definir “valor” como sinônimo de valor moral. Ou seja, como sinônimo de reconhecer que determinadas coisas são justificáveis, outras injustificáveis, ter um senso de dever, saber distingüir o moralmente opcional do moralmente obrigatório, ter senso de justiça, etc. Vejamos como o argumento seria reformulado para adequar o termo “valor” a essa nova definição:<br />
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Primeiro argumento reformulado:<br />
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(1) Para alguém possuir valores <i>morais</i>, é necessário que o indivíduo em questão seja racional;<br />
(2) Os animais não humanos não são racionais;<br />
(3) Logo, os animais não humanos não possuem valores <i>morais</i>.<br />
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O segundo argumento ficaria assim:<br />
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(1) Só quem possui valores <i>morais</i> deve ser objeto de respeito;<br />
(2) Os animais não humanos não possuem valores <i>morais</i>;<br />
(3) Logo, devemos respeitar os animais não humanos apenas quando o motivo para desrespeitá-los for fútil.<br />
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<i>#53 – O primeiro argumento, reformulado dessa maneira, fica sólido: para alguém possuir valores morais, é necessário ser capaz de razão</i><br />
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Se reformulado dessa maneira, assumirei, para efeito de argumentação, que todo o primeiro argumento está correto – embora a segunda premissa não seja isenta de sérias dúvidas. A primeira premissa está correta. É difícil imaginar como alguém conseguiria entender as idéias de dever, certo, errado, justo, injusto, se não conseguisse raciocinar de forma alguma. Diferentemente de outros valores (como aversão ao sofrimento e atração pelo prazer), valores morais dependem da capacidade de fazer inferências (dependem, por exemplo, de se compreender que você é apenas mais um entre os demais, e que não possui maior valor por ser você mesmo – o que desembocará no princípio da imparcialidade; depende de reconhecer que casos relevantemente similares devem ser tratados de maneira similar; que deveres morais são o tipo de coisas que devemos fazer independentemente de desejarmos fazê-lo ou não, etc.). Quanto à segunda premissa, existem dúvidas sobre se não existe nenhum animal não humano que compreenda essas noções. De acordo com o primatólogo Frans de Waal[2] , muitos primatas possuem, intuitivamente, o equivalente aos conceitos de justiça, bem, mal, certo, errado, etc. Contudo, não me deterei a discutir essa premissa porque ela não é relevante para o restante do argumento. Assumirei que a maioria dos animais não humanos não possuem valores morais. Sendo assim, a conclusão segue-se logicamente das premissas, e o primeiro argumento, além de logicamente válido, é também sólido por ter premissas verdadeiras.<br />
<i><br /></i>
<i>#54 – Primeira premissa do segundo argumento é falsa: não é necessário que alguém seja um agente moral para haver um dever respeitá-lo</i><br />
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O erro todo está no segundo argumento. Para começar, é formalmente inválido: <i>se</i> as suas premissas <i>fossem </i>verdadeiras, ainda assim, aquela conclusão não se seguiria das premissas. Como já vimos, <i>se fosse</i> verdade que só temos dever de respeitar alguém que possui valores morais, então poderíamos fazer o que bem entendêssemos com quem não possui valores morais, independentemente do motivo que nos levasse a isso, e não somente quando o motivo não fosse fútil. Em segundo lugar, apesar de sua segunda premissa ser verdadeira (ela é a conclusão do primeiro argumento: animais não humanos não possuem valores morais), a sua primeira premissa é falsa (é falso que só quem possui valores morais deve ser objeto de respeito). Como vimos na primeira sessão, a primeira premissa envolve confundir o que seriam os critérios relevantes para alguém ser um agente moral (ou seja, saber quais seres devemos responsabilizar pelas suas escolhas) com os critérios relevantes para alguém ser um paciente moral (ou seja, saber quais seres devemos respeitar). O que é relevante para saber se alguém deve ou não ser respeitado depende do que influencia na possibilidade desse alguém ser prejudicado. Para alguém ser prejudicado, precisa valorizar alguma coisa e desvalorizar outras (que é o primeiro sentido do termo “valor”, analisado anteriormente). Assim, alguém poderia ser prejudicado pela presença daquilo que desvaloriza ou pela falta daquilo que valoriza. Nesse sentido do termo “valor”, que é relevante para saber quem devemos respeitar (porque é possível de os prejudicarmos), os animais não humanos têm valores (valorizam a satisfação e desvalorizam o sofrimento). Então, seja lá de que forma que interpretemos o termo “valor”, o argumento de Nigro para excluir os animais não humanos da igual consideração não é bom.<br />
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<i>#55 – A maior posse de racionalidade não indica que tal ser tem maior valor, em termos de prioridade: quanto maior a capacidade racional, maiores seus deveres; quanto maior a vulnerabilidade, maior sua prioridade: </i><br />
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Nigro está certo ao apontar que o reconhecimento de algo ser uma maldade depende da capacidade de razão (não exatamente da razão <i>humana</i>, como ele diz, mas da razão, ponto). Não é a razão humana que “cria” a maldade; a maldade já está lá, e através da razão é que podemos ter acesso, julgar quando um estado de coisas é moralmente um mal (injustificável) e quando não é. Mesmo concordando com Nigro que, para reconhecer que algo é moralmente um mal é necessário a capacidade de razão, como já foi mencionado anteriormente (#21), quanto maior o entendimento racional de alguém, maiores são os seus <i>deveres</i> morais (faz mais sentido cobrar responsabilidade de uma pessoa com grande entendimento), e não, maiores os seus <i>privilégios</i> morais (porque geralmente, quanto mais racional alguém é, menor sua vulnerabilidade, então não faz sentido afirmar que deveriam ter mais proteção). Com relação à necessidade de cuidado e proteção, quanto menor a capacidade racional de alguém, maiores deveriam ser seus privilégios morais, pois, quase sempre, maior sua vulnerabilidade. Da mesma maneira que reconhecer que um adulto tem maior capacidade racional não indica que sua vida vale mais do que o de uma criança, reconhecer o mesmo com relação às maiores capacidades racionais dos humanos perante aos animais não humanos não serve como sustentação para a tese de que a vida dos humanos vale mais.<br />
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<i>#56 – O fato de alguém ser mais racional não lhe dá direito de assassinar outros indivíduos; e nem serve como sustentação para a tese de que a vida humana possui maior valor</i><br />
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Já que tal constatação não serve para sustentar que a vida dos seres racionais vale mais, em termos de receber prioridade de socorro, serve muito menos para sustentar que é correto assassinar os menos racionais (seja lá se o motivo do assassino é fútil ou não). E, apenas para lembrar, bebês e crianças muito pequenas, e muitos adultos portadores de certas doenças mentais têm uma capacidade racional muitíssimo menor do que muitos animais não humanos. Se o argumento de Nigro estivesse correto, ele teria que sustentar que é correto matar esses seres humanos para beneficiar os animais não humanos mais racionais (quando o motivo não fosse fútil, pelo menos). Se fica claro que o argumento não se sustenta quando os humanos são as vítimas, então o mesmo argumento não faz sentido quando os animais não humanos são as vítimas – já que ambos os tipos de vítima possuem uma característica moralmente relevante que os coloca sob um mesmo grupo: são capazes de sofrer dano por inflição de sofrimento ou por privação de desfrute (além de sua vulnerabilidade similar, em boa parte dos casos).<br />
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<i>#57 – A denúncia da confusão entre o critério relevante para alguém ser responsabilizado e o critério relevante para alguém ter seus interesses considerados</i><br />
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Nigro padece da mesma confusão feita ao longo da história da filosofia, de trocar os critérios moralmente relevantes para se saber quem deve ser responsabilizado pelas suas escolhas (aqueles capazes de refletir sobre o que é justificável e o que não é, o que depende da capacidade racional) com os critérios relevantes para se saber quem deve ser respeitado (aqueles capazes de serem prejudicados, o que depende da capacidade de senciência). Tal confusão foi denunciada pela primeira vez em 1776, pelo filósofo Humphry Primatt (<i>The Duty of Mercy</i>), seguido depois por Jeremy Bentham, em 1789 (<i>The Principles of Morals and Legislation</i>). A denúncia de tal confusão foi amplamente difundida na filosofia a partir da publicação de <i>Libertação Animal</i>, de Peter Singer, em 1975. De lá para cá, centenas de livros e artigos têm sido publicados discutindo a questão, tendo como foco central essa confusão feita tradicionalmente na filosofia. Assim, alguém poderia ser desculpado por fazer essa confusão em um artigo publicado antes de 1776. Contudo, Nigro faz a mesma confusão hoje, em 2012 (já se passaram mais de duzentos anos); confusão que poderia ter sido evitada se ele tivesse lido com atenção qualquer livro introdutório ou artigo sobre ética animal (incluindo aquelas centenas de páginas que ele afirma ter lido, referindo-se aos artigos que já publiquei, em conjunto). Fazer essa confusão hoje em dia (e, ainda mais, apresentá-la como se fosse um argumento nocauteante contra a consideração pelos animais, como se não tivesse sido refutado centenas de vezes) não é tão perdoável para quem escreve sobre o tema, porque é sinal de não ter lido com atenção sobre o tema que escreve.<br />
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<i>#58 – O argumento de que é errado causar dano (por inflição ou privação) por motivos fúteis dá um argumento a favor do veganismo, não contra</i><br />
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O próximo problema com o argumento de Nigro é que, sem o autor perceber, ele fornece um argumento <i>a favor</i> do veganismo, e não, contra, como quer o autor. Isso porque, se concordarmos com a conclusão de Nigro, de que “fazer sofrer ou assassinar, por motivos fúteis, é fazer o mal”, então temos boas razões para praticar o veganismo, haja vista que comer comida de origem animal é um capricho fútil e banal. Isso porque nosso corpo não necessita de comida de origem animal. É possível ter uma vida perfeitamente saudável com uma dieta vegana. É verdade, comer <i>algum</i> tipo de comida é uma necessidade. Agora, comer <i>este</i> tipo de comida específico (comida de origem animal), que causa tantas mortes e tamanho sofrimento, mesmo havendo outro tipo de comida que cause um dano muito menor, só pode ter como motivação o gosto pelo sabor de tais alimentos – portanto, não é uma necessidade, e sim, uma futilidade. <i>Se</i> tal futilidade fosse inofensiva, a questão da escolha de praticá-la ou não <i>seria</i> moralmente opcional. O problema é que é o tipo de interesse fútil que causa trilhões de mortes e imensa quantidade de sofrimento por indivíduo, então, só pode ser considerado, como concorda Nigro, um mal (e, eu acrescentaria, um grande mal), portanto, moralmente obrigatório abolir. Assim, se Nigro realmente levar a sério o princípio de não causar mal por motivos fúteis, então se tornará vegano. Se não o fizer, é sinal de que aceita apenas na teoria, e não na prática do dia-a-dia, o princípio de que é moralmente errado causar mal por motivos fúteis. O mesmo se pode dizer do vegetariano que postou um comentário no blog de Nigro, que assina apenas como Régis, elogiando suas colocações contra o veganismo. Tal pessoa possui uma dificuldade em compreender que, se o erro moral em comer carne está que causa danos graves (e, pior ainda, por motivos fúteis), as mesmas razões se aplicam à questão sobre o consumo de ovos, leite ou qualquer outro produto de origem animal. O consumo de leite ou ovos é até pior, pois provavelmente causa mais mortes e um número maior de sofrimento por indivíduo, do que com o consumo de carne (quem conhece as granjas industriais sabe do que estou falando[3]). Isso não quer dizer que o consumo de carne é justificável, devido a ser menos pior do que o consumo de leite e ovos. Pelo contrário: todas essas práticas são moralmente hediondas, mas umas são mais hediondas do que as outras, em termos de conseqüências danosas para as vítimas. Contudo, são todas injustificáveis, devido às razões que venho expondo do início do texto até agora.<br />
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<i>#59 – O erro em assassinar não depende dos benefícios para quem assassina</i><br />
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A próxima coisa que temos de nos perguntar é o tamanho desse mal e a importância moral que devemos dar a ele, em termos de prioridade em aboli-lo. Comecemos por notar que o argumento de Nigro não mostra que é correto matar ou fazer sofrer quando o motivo não é fútil. Ele apenas postula que é errado causar dano por motivos fúteis, mas não oferece uma razão para explicar por que seria justificável causar dano sempre que o motivo não é fútil. Concordo que existam exceções à regra contra não matar (casos que comentarei em outra sessão, sobre a questão da eutanásia), contudo, nenhuma dessas exceções depende do que Nigro pensa que depende (a importância do benefício para de quem assassina). Se o erro em matar ou fazer sofrer depende crucialmente do que acontece com a vítima dessa morte ou sofrimento (depende disso ser algo ruim para ela, e do quão ruim isso é), e não do tamanho do benefício resultante para o agente ao matar ou fazer sofrer, então, que diferença faz, para a vítima, se foi morta por um motivo fútil ou por um motivo "importante" para o agente? Uma experiência ajuda a clarear o pensamento: é errado eu assassinar outro ser humano apenas se eu quiser me divertir com um maçarico ou para eu comer a carne dele (motivos fúteis) ou também é errado se eu quiser fazer uma pesquisa científica com ela para curar o câncer de outras pessoas (motivo importante)? Parece que é errado em qualquer caso, independentemente do motivo.<br />
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<i>#60 – Diferença entre valor do indivíduo e qualidade da vida do indivíduo</i><br />
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Para entender melhor o erro envolvido no raciocínio, temos de observar uma diferença importante, que normalmente é perdida de vista nos debates sobre igualdade: a diferença entre o <i>valor do indivíduo</i>, e a <i>qualidade da vida</i> desse indivíduo. Atentar para essa diferença será muito importante para nossa discussão seguinte, que diz respeito ao entendimento do princípio da igualdade, enquanto princípio ético. Muitas vezes, é comum que se tome considerações sobre a qualidade de vida um indivíduo como fornecendo base para considerações sobre o maior ou menor <i>valor do indivíduo</i> que vive tal vida. Por exemplo, comumente se aponta que alguns indivíduos são dignos de maior consideração moral por serem capazes de experiências mais valorosas (por exemplo, serem capazes de fazer matemática avançada ou compor música). O erro envolvido aqui é saltar da constatação de que esses indivíduos provavelmente são capazes de terem vidas mais significativas do que indivíduos que não possuem tais capacidades; para a conclusão de que, então, os indivíduos portadores de tais qualidades valem mais, enquanto indivíduos (e que então é correto utilizar de outros indivíduos como se fossem recursos para esses, desde que o interesse envolvido seja importante).<br />
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<i>#61 – Existem situações onde a desigualdade de bem-estar se justifica?</i><br />
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Por que a premissa que envolve constatar que determinados indivíduos tem maiores chances de ter uma vida mais significativa não apóia a conclusão de que tais indivíduos, não apenas tem vidas melhores, mas também são mais valiosos? Para entender por que, é necessário fazer duas perguntas: (1) “Alguns indivíduos <i>estão</i> em melhor situação que outros, mas, eles <i>deveriam</i> estar?”. (2) “Alguns indivíduos <i>estão</i> em pior situação do que outros, mas, eles <i>deveriam</i> estar?”. Para encontrar a resposta correta, temos de perguntar se há justificativa, e do que características moralmente relevantes elas dependem, para alguém estar melhor ou pior, comparativamente a outros. Caso houverem tais justificativas, temos de perguntar se o caso em questão que estamos a analisar (alguém ter uma vida valiosa em maior ou menor grau, de acordo com o que sua constituição biológica permite) apresenta alguma das características relevantes para justificar a desigualdade de bem-estar. Minha conclusão será a de que, embora existam situações onde seja justificável alguém estar melhor do que outro indivíduo, o caso em questão não é um deles. Então, a conclusão prática é que temos de neutralizar, através da ação moral, essas desigualdades devido à biologia, como será explicado nos parágrafos a seguir.<br />
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<i>#62 – Falácia naturalista</i><br />
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Comecemos por perguntar o que não justifica a desigualdade de bem-estar. A partir da constatação de que alguns <i>estão</i> melhor e outros estão pior, muitas pessoas deduzem que, então, é assim mesmo que <i>deveriam</i> estar. Exemplos de frases comuns que exprimem essa crença são “temos que aceitar; é assim que a vida é” ou “a desigualdade se justifica porque na natureza é assim que é mesmo”. Essa constatação não sustenta a conclusão. Ela é um exemplo da famosa <i>falácia naturalista</i> (deduzir do fato de que algo <i>é</i>, então que, por isso mesmo, <i>deveria</i> ser). Tal inferência é uma falácia porque, obviamente, o fato de que algo acontece não nos diz nada sobre se é certo, justo, injusto, etc. Se fosse assim (se tudo o que acontecesse fosse exatamente aquilo que deveria acontecer, que fosse justo, correto que acontecesse), jamais faria sentido dizer que aconteceu uma injustiça, ou de que algo que existe é um mal. Mas, obviamente, faz sentido dizer que algumas coisas são um mal, injustas, etc.<br />
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<i>#63 – Existem situações onde se justifica alguém estar numa condição melhor do que outros?</i><br />
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Comecemos por perguntar: “o que poderia justificar alguém estar melhor do que outro?”. A única idéia plausível que me vêm à mente refere-se ao mérito. Supondo duas pessoas que possuem <i>exatamente as mesmas oportunidades</i> para conseguir um determinado nível de bem-estar. Supondo que uma das pessoas se esforça para conseguir o nível de bem-estar (digamos que ambos sejam funcionários da mesma empresa), enquanto que a outra não se esforça nem um pouco. Se o resultado disso for que a primeira consegue um bem-estar maior do que o da Segunda (digamos que uma consegue um aumento e a outra não), parece um resultado justo, haja vista que depende unicamente do mérito. Contudo, existem duas observações importantes: (1) Não se pode deduzir do fato de que alguém está numa situação melhor, então que merece (chegou até ali por mérito) estar. Isso porque pode acontecer (e, geralmente acontece) exatamente o contrário: alguém se esforçar mais (e, portanto, merecer mais) e, no final das contas, ficar numa situação pior do que a que não se esforçou. Então, não podemos deduzir, do fato de que alguém possui uma qualidade de vida melhor, que “fez por merecer” essa qualidade. (2) Observe que a justificativa para o bem-estar desigual baseada no mérito depende crucialmente de que todos tenham tido <i>exatamente oportunidades iguais</i> para atingir determinado nível de bem-estar. O que acontece é que na vida real raríssimamente é assim. Geralmente quem têm uma qualidade de vida melhor contou (geralmente numa porcentagem altíssima) com a sorte. Isso acontece, por exemplo, com alguém ter nascido numa família mais rica ou numa mais pobre. Para alguém que nasce numa família mais pobre, é mais difícil conseguir chegar a um determinado nível de bem-estar, pois as oportunidades que teve não foram tantas quanto às que teve quem já nasceu numa família mais rica (ou, menos pobre, já que esse raciocínio é sempre comparativo entre dois níveis de oportunidades resultantes da sorte). Então, não se pode deduzir, do fato de que alguém está numa situação melhor, que chegou em tal situação porque se esforçou mais do que os que estão numa situação pior. No mundo em que vivemos, a desigualdade dos pontos de partida é tão grande, que normalmente quem está na pior situação se esforça (em termos de trabalho) para melhorar sua situação inúmeras vezes mais do que quem está numa situação melhor. Esse é um dos motivos pelo qual geralmente é uma injustiça que alguém esteja numa situação melhor do que outro: mesmo que alguém tenha se esforçado para conseguir tal situação boa (mesmo que tenha algum mérito): os indivíduos não partiram do mesmo ponto de bem-estar (uns começaram mais acima, às vezes bem mais acima, e outros abaixo, às vezes bem mais abaixo – isso tudo devido à sorte ou azar), e também não tiveram oportunidades iguais de atingir determinado nível de bem-estar.<br />
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<i>64 – Existem situações onde se justifica que alguém esteja numa condição pior do que outros?</i><br />
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Quando fazemos a segunda pergunta “o que poderia justificar alguém estar pior do que outro?”, acredito que, pelo menos dois critérios sugiram alguma consideração relevante. O primeiro deles diz respeito também a merecimento (mérito), na verdade, demérito. Ou seja, é a idéia de que alguém merece estar numa situação pior, comparativamente a outros, devido a alguma escolha deliberada que fez anteriormente. Novamente, supondo que haja duas pessoas com oportunidades iguais para uma determinada coisa (digamos, um certificado de doutor em alguma área), e acontece que a primeira pessoa se dedica, enquanto que a segunda não. É justo dizer que a segunda não merece o título, enquanto que a primeira merece. Essa mesma idéia de merecimento forneceria base não apenas para dizer que alguém não merece um determinado aumento de bem-estar, mas que merece uma diminuição do seu bem-estar, como punição pelo que fez de injusto anteriormente. Supondo, por exemplo, que um determinado político tenha conseguido um nível de bem-estar alto devido a roubar dinheiro público. É justo que ele tenha sua qualidade de bem-estar diminuída devido a ter que devolver o dinheiro. Seria ridículo que ele alegasse, por exemplo “não retirem o dinheiro de mim, vocês estão me prejudicando!”. Já o segundo critério que sugere uma consideração relevante para justificar que alguém esteja numa situação pior diz respeito à proteção de outros inocentes, em não serem danados com o seu movimento. Por exemplo, uma das razões principais para se prender um psicopata é a proteção para as vítimas. Essa consideração não deve ser confundida com a consideração sobre a punição. Na idéia de punição, o ponto de partida central é que alguém merece estar numa situação pior devido a algo de ruim que fez deliberadamente antes. As características moralmente relevantes na idéia de punição dizem respeito ao passado: alguém é punido pelo que fez. A preocupação não é prevenir novos danos no futuro. Já nesse segundo critério, se dá o inverso: a preocupação é prevenir novos danos no futuro, e não, punir o atacante devido a este merecer. Obviamente, o atacante será “punido”, no sentido de perder sua liberdade, por exemplo, mas isso se dá não porque ele merece (como veremos a seguir, talvez ele não mereça), e sim, para impedir novos danos causados por ele mesmo. Essas duas considerações podem estar presentes ou não em conjunto, ou separadamente. Considere os três exemplos a seguir. (1) A justificação para prender alguém que enlouqueceu e coloca em risco a vida de outros se dá exclusivamente a partir do critério “prevenir novos danos devido ao movimento do indivíduo que terá sua liberdade retirada”. Faz sentido dizer que é justificável causar um dano a esse indivíduo, apesar de ele não “merecer”. . Ele não “merece” o dano porque não fez nada deliberadamente para danar os outros, já que estava louco, portanto, não tem como ser responsabilizado pelo que escolhe. Ou seja, ele não está sendo punido por algo que fez anteriormente; está sendo impedido de causar danos futuros com o seu movimento. (2) Considere outro caso, onde a justificativa para diminuir o bem-estar de alguém se dá exclusivamente a partir da idéia de punição por se desmerecer a situação boa. Suponha que alguém mate outra pessoa para ficar com o seu dinheiro. Se alguém assim for preso, apesar de aparentemente um dos motivos ser o de prevenir novos danos que esse alguém possa causar, a razão principal é que ele não merece estar com o dinheiro que roubou. A vítima já está morta, portanto, a razão para prendê-lo não pode ser a de devolver o dinheiro para a vítima. Note que mesmo que ficasse provado que tal indivíduo jamais faria algo de ruim novamente, ainda assim seria injusto que ele ficasse com o dinheiro. Portanto, nesse caso, a justificativa para lhe causar um dano (retirar-lhe o dinheiro, obrigar-lhe a fazer algo de bom para compensar o que fez de ruim, e outros tipos de punição) seria extraída unicamente a partir de considerações sobre o desmerecimento do bem em questão. (3) Na maioria dos casos onde se justifica que alguém fique numa situação pior estão presentes tanto a preocupação em evitar que o indivíduo em questão cause novos danos e também o desmerecimento da situação boa ou merecimento da situação ruim, devido ao que fez de injusto no passado. Por exemplo, pode-se justificar prender um político corrupto para que ele não cometa novos danos no futuro, e também pode-se justificar retirar-lhe alguns bens por punição pelo que fez anteriormente.<br />
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<i>#65 Aquilo que poderia tornar justificável uma situação desigual não sustenta a conclusão de que seres mais racionais possuem maior valor</i><br />
<br />
Como conclusão do raciocínio anterior, vimos então que: (1) Só seria talvez justificável alguém estar numa situação melhor do que a de outros se essa situação fosse resultado de mérito, sendo que todos os outros tiveram oportunidades iguais de chegar no mesmo lugar (ou seja, que não partiram de níveis diferentes de bem-estar e de habilidades diferentes para busca do bem-estar); (2) As duas maneiras de justificar que alguém esteja numa situação pior do que a dos outros depende, ou (2.1) da situação ruim ser resultado de uma prevenção contra esse indivíduo causar dano a outros inocentes; (2.2) ou da situação ruim ser resultado de uma justa punição para compensar algo de injusto praticado anteriormente pelo próprio indivíduo. A consideração 2.1 se aplica igualmente a indivíduos capazes e incapazes de agência moral (ter consciência da justificação ou não de suas decisões), já que, para se causar um dano não justificado a outro indivíduo, não é necessário que o atacante seja um agente moral (que tenha compreensão do mal que faz). Já a consideração 2.2 só faz sentido para agentes morais (já que não faz sentido punir alguém por fazer algo que não tinha como saber que era algo errado. O ponto que é importante retermos, dessa análise é que, mesmo se ela estiver correta, e essas considerações justificarem mesmo uma situação desigual de distribuição de bem-estar, isso não se aplica ao caso em questão colocado por Nigro, a saber, de que os seres mais racionais, além de terem vidas mais significativas, são seres com maior valor. Veremos por que a seguir:<br />
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<i>#66 – O fato de os animais não humanos estarem numa situação ruim não é justa/ alguém não possui maior valor por ser racional</i><br />
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O principal erro consiste em não incorporar uma percepção sobre nós mesmos fundamental para tornar possível qualquer raciocínio em ética: perceber que eu sou (ou, que cada um é) apenas mais um dentre tantos outros indivíduos com necessidades, e que, por isso, de um ponto de vista objetivo, ninguém possui valor maior. Esse ponto será melhor exemplificado em outra sessão, quando discutiremos o egoísmo (#147 até #157). Outra percepção fundamental que é perdida de vista, é que a qualidade de vida atual de cada indivíduo depende, em alto grau, da sorte. Isso porque, para alguém ser um indivíduo com alta capacidade racional, do tipo defendido por Nigro como indicando que seus portadores possuem maior valor, ele precisa ser membro da espécie <i>Homo sapiens</i>, e ter chegado até à idade adulta sem sofrer doença, acidente ou qualquer outro evento que o impedisse de adquirir tal capacidade racional. Todas essas condições dependem da sorte do agente, não do seu mérito. E, dependem em alto grau da sorte, porque a probabilidade de alguém que nasceu com uma qualidade de vida razoável ter nascido com uma muito pior é altíssima. Isso é devido à imensa quantidade de indivíduos sencientes existentes no mundo com uma qualidade de vida muito abaixo de qualquer coisa que se possa de chamar de minimamente boa. Já podemos constatar isso mesmo entre os humanos, onde muitos morrem de fome. Mas, pense, por exemplo, nos bilhões de animais existentes nas granjas industriais, vivendo em gaiolas onde não podem se mover, sendo debicados a ferro em brasa, com doenças não tratadas, ossos quebrados, ou nos trilhões de animais morrendo de inanição, ou sendo devorados vivos por parasitas, ou sendo predados, ou que nascem com sérias deformidades por obra da “mãe” natureza. O fato de eu ou você termos nascido como pertencendo a uma parcela mínima (que quase desaparece, em termos de porcentagem, se contarmos a totalidade de indivíduos), depende de muita sorte, não de mérito algum. Supondo que fosse diferente: que minha qualidade de vida atual dependesse exclusivamente de mérito meu (que nenhuma parcela de sorte tivesse tido influência; exatamente o contrário do que acontece na vida real), mesmo assim isso não seria razão para pensar que eu possuo valor maior do que os outros indivíduos. Isso porque, como vimos, uma possível justificativa para se estar numa situação pior dependeria de mérito, mas com a condição essencial que todos partissem do mesmo nível de bem-estar e tivessem iguais oportunidades para conseguir o bem-estar que consegui. Sabemos que a vida real está perto do oposto disso (alguns nascem em situações muito boas, enquanto que a imensa maioria dos seres sencientes, em situações beirando ao inferno). Num caso assim, eu teria dever de melhor a situação de quem está numa situação pior. Como vimos, a única maneira de se dizer que os que estão na situação pior devem continuar nessa situação pior, é se a mesma situação é justa (ou seja, se existe para impedir que esses indivíduos causem mal a outros, ou se é uma punição por uma injustiça cometida no passado). Nenhuma dessas situações se aplicam à nossa desconsideração pelos seres sencientes não humanos. Para começar, os dois motivos pelos quais se explica os animais não humanos estarem numa situação péssima são o desejo dos humanos em explorá-los e a loteria natural (a maneira como acontecem os processos naturais, que favorece os genes às custas de prejudicar em alto grau os indivíduos portadores dos genes). Assim sendo, o fato de alguns indivíduos estarem numa situação melhor devido à posse da racionalidade, ou a pertencerem a determinado grupo (uma espécie, por exemplo), enquanto que outros estão numa situação terrível, não é justa. É dever moral modificá-la.<br />
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<i>#67 – Meta de neutralizar a sorte</i><br />
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Todas as considerações acima em conjunto formam a base para a conclusão de que um dos objetivos principais da moralidade é<i> neutralizar a sorte</i>, dando uma oportunidade eqüitativa de cada indivíduo estar com a qualidade de vida melhor possível, pesando imparcialmente as qualidades de vida de cada um dos indivíduos sencientes existentes (ou seja, como tendo o mesmo valor). Essa é uma característica do princípio ético igualitarista, como veremos em outra sessão (#68, #73, #74, #113, #118 até #125, #156, #157) , e sua justificativa depende do egoísmo ser injustificável, como também veremos adiante (#147 até #157). Agora deve estar claro onde está o erro com o argumento de Nigro. O erro consiste em constatar que “esse indivíduo teve a sorte de ter uma qualidade de vida melhor do que a dos outros” (alguém ser racional, por exemplo); e, daí, saltar para a conclusão de que “então, esse indivíduo possui maior importância moral do que os outros, uma importância tão grande que torna justificável assassinar os outros para melhorar sua situação”. Esse mesmo erro, visto de outra forma, seria constatar que “esse indivíduo está numa situação ruim” e daí saltar para a conclusão de que, “então, é justo que esteja nessa situação”. Como vimos anteriormente, não há nada na constatação de que alguém teve sorte que dê suporte à conclusão de que esse alguém é mais especial, de um ponto de vista moral, do que outros. A conclusão moral que deveria se seguir disso é exatamente o contrário. Ao invés de ser correto prejudicar os outros para aumentar ou manter a qualidade de vida do indivíduo na melhor situação; é dever de tal indivíduo diminuir um pouco a sua qualidade de vida com vistas a aumentar a qualidade de vida dos indivíduos que estão na pior situação. Consegue-se, assim, no final das contas, um resultado mais igualitário entre níveis de qualidade de vida, entre os indivíduos.<br />
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<i>#68 – Questões com relação à meta igualitarista e com relação ao argumento da importância do mérito/sorte</i><br />
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Nesse ponto surgiriam novas perguntas: (1) Onde traçar a linha sobre o quanto um indivíduo que está na melhor situação deve doar para melhorar a situação de quem está na pior situação? (2) A igualdade (uma noção <i>comparativa </i>entre a qualidade de vida dos indivíduos) é importante nela mesma, ou apenas porque melhora a situação daqueles que estão na pior da situação? Ou seja: é importante que os indivíduos estejam tão bem <i>quanto os outros</i>, ou é importante que os indivíduos estejam tão bem quanto seria possível estar (sem comparação com o nível dos outros)? O objetivo desse artigo não é adentrar nessas importantes questões. O objetivo de mencionar esse assunto é mostrar que não há nada no fato de alguém ter nascido como membro da espécie humana (com todas as qualidades que tornam uma vida humana boa) – um fato meramente dependente da sorte, e não do mérito - que sirva como razão para sustentar a tese de que indivíduos assim valem mais. E, outro detalhe importante: mesmo se fosse algo que resultasse de mérito, ainda assim não se deveria concluir que indivíduos assim deveriam ser intitulados a um <i>status</i> maior. Isso porque, é falso que todos tiveram oportunidades iguais para chegar no nível de bem-estar onde se encontram, e, mais importante, também é falso que os que estão na situação pior estão nela ou porque a merecem ou porque ela existe para impedir que estes causem danos a outros.<br />
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<i>#69 – Os que estão na situação melhor tem dever de melhorar a qualidade de vida dos que estão na situação pior</i><br />
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Essa conclusão a qual se chega por meio do raciocínio acima é exatamente a conclusão oposta do raciocínio de Nigro. Ao invés de ser justificável matar um indivíduo para beneficiar outro, que supostamente teria maior valor por ter uma vida com qualidade maior, o indivíduo numa situação melhor tem o dever de ajudar a aumentar o nível de bem-estar de quem está na pior situação. Temos então um argumento que explica o erro <i>prima facie</i> de assassinar. O argumento parte da constatação de que matar alguém é, geralmente, lhe prejudicar (o que envolve principalmente o dano por privação do desfrute, quando não também a inflição de sofrimento), e prejudicar de maneira grave (impede totalmente qualquer desfrute futuro). Em seguida, constata-se que, de um ponto de vista racional, não existem bons motivos para supor que um indivíduo seja mais especial do que outros (como veremos mais detalhadamente na discussão sobre o egoísmo, em #147 até #157). Daí, segue-se a regra moral contra assassinar, baseada na idéia de que o prejuízo por privação causado a alguém é uma razão <i>suficiente</i> (mas não <i>necessária</i>, como veremos no parágrafo a seguir) para haver mal em matar.<br />
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<i>#70 – Exemplos de exceções à regra contra matar: legítima defesa e eutanásia</i><br />
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Note que essa regra é <i>prima facie</i>, ou seja, existem razões para supor que nem sempre seja errado matar. Vejamos dois exemplos. Um bem conhecido é o princípio da <i>legítima defesa</i>. Se um indivíduo, (planejadamente ou não) coloca a vida e integridade física de outro em risco, esse outro (ou terceiros), tem justificativa para defendê-lo, e utilizar a força necessária para neutralizar o ataque. Se for necessário tirar a vida do atacante, ainda assim o causar a morte se justifica, pois o problema ético em questão surge exatamente do comportamento (intencional ou não) do atacante. Outro exemplo conhecido é o da <i>eutanásia</i>. Existem, infelizmente, situações onde um indivíduo está com uma qualidade de vida extremamente ruim (a única coisa que ele sente são sofrimentos extremos a cada instante, e nada de desfrute), e, sem possibilidade alguma de melhora. Mesmo nesses casos, existem raros indivíduos que possuem uma preferência por continuar vivendo. Nesses casos raros onde o indivíduo, mesmo assim deseja continuar vivendo, parece razoável enxergar o respeito pela preferência do indivíduo (ainda que não haja possibilidade de desfrute no futuro) como gerando uma razão contra matar. Contudo, a maioria dos casos onde a vida em questão está numa situação onde chega se cogitar a eutanásia (ou seja, onde não é mais a vida que representa um bem para o indivíduo que a vive – esta representa um grande mal - mas sim a morte), vêm acompanhada de uma preferência do próprio indivíduo em morrer. A questão específica da eutanásia será melhor discutida em uma sessão posterior (#70 até #72, #175 até #179).<br />
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<i>#71 – Impossibilidade de desfrute, satisfação de preferências, e a justificação da eutanásia</i><br />
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O erro em matar parece se configurar, pelo menos, a partir de duas razões <i>suficientes</i>, mas não <i>necessárias</i>: o prejuízo pela privação do desfrute futuro, ou o prejuízo pela violação de uma preferência. Contudo, existem casos onde nenhuma dessas duas condições está presente: não há possibilidade de desfrute no futuro, e o próprio indivíduo expressa uma preferência por morrer. Existem casos também onde não há nenhuma possibilidade de desfrute no futuro, mas o indivíduo não é capaz de formular preferências (pense, por exemplo em um bebê que irá sobreviver por mais algumas semanas apenas, com a espinha para fora do corpo, não sentindo outra coisa a não ser um sofrimento extremo). Em casos assim, o respeito por esses indivíduos e por seu sofrimento nos indica que a coisa certa a se fazer é tirar suas vidas. Nesses casos, a morte não lhes é um prejuízo. Prejudicados eles serão (e de maneira muito grave) se continuarem vivos. Alguém teria de ter uma veia muito sádica para prolongar sofrimentos desse tipo, sabendo que não existem chances de recuperação.<br />
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<i>#72 – Os casos onde se justifica matar não violam a exigência de imparcialidade</i><br />
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Assim, temos pelo menos duas situações (legítima defesa, e determinados casos de impossibilidade de algum desfrute no futuro) onde se justifica eticamente matar. Mas, perceba que, embora essas situações dependam do motivo não ser fútil, não são o que Nigro entende por “motivo importante” (danar um ou alguns indivíduos de maneira extrema para beneficiar outros, que se pensa ter valor maior por ter nascido em determinada espécie). O erro de Nigro ao acessar as motivações é violar a imparcialidade: nos casos onde ele pensa que é correto matar, extrai tal “justificação” do pensar que determinados indivíduos valem muito e outros valem quase nada. Como vimos (#3 até #28), as razões que ele endereça para sustentar essa conclusão (o pertencer a espécie humana e a posse da racionalidade) não conseguem êxito.<br />
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<i>#73 – O quão erradas são as conseqüências do especismo? Qual a prioridade moral em aboli-las?</i><br />
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Se perguntarmos que indivíduos se encontram na situação pior (levando-se em conta todos os seres sencientes de que temos notícia), sem dúvida a grande maioria dos animais não humanos se encontra nessa situação. Quem sabe o que é uma granja industrial, e quem sabe como são os processos da vida na natureza [4] sabe que não houve nenhuma outra ocorrência ao longo da história conhecida que se compare a tamanho inferno. Geralmente, quando queremos lembrar de algo horrível, mencionamos o holocausto. Mesmo concordando que o holocausto foi uma das coisas mais moralmente horríveis que já aconteceu, a questão é que, como apontou o filósofo Stuart Rachels[5] , se levarmos em conta o nível de sofrimento por indivíduo, o número de indivíduos mortos, e o nível de sofrimento agregado, se contarmos somente a carnificina produzida pelas granjas industriais nos últimos vinte anos, isso já é o equivalente a <i>cinco mil holocaustos</i>.<br />
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<i>#74 – A comparação entre granjas industriais e o holocausto e a questão da prioridade</i><br />
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Alguém poderia objetar, nesse ponto, que a vida dos humanos vale mais, e que a comparação não vale. Como foi discutido detalhadamente até aqui, nenhum argumento oferecido até agora para sustentar essa tese teve êxito. Isso porque, no que é relevante para alguém ser considerado moralmente (a possibilidade de alguém ser prejudicado; que depende unicamente da capacidade de desfrutar e sofrer), humanos e não humanos sencientes estão em pé de igualdade. Contudo, para efeito de argumentação, vamos supor que alguém provasse que os animais não humanos possuem um valor, enquanto indivíduos, de apenas 10% do que valem os humanos. Mesmo assim, teríamos de assumir que as granjas industriais, por exemplo, são muito piores do que o holocausto (se levarmos em conta número de vítimas, quantidade de sofrimento por indivíduo, sofrimento agregado, etc.). Isso porque, mesmo concedendo, para efeito de argumentação, que os animais não humanos valem dez vezes menos, as granjas industriais, somente nos últimos vinte anos, seriam o equivalente a 500 holocaustos, em termos de sofrimento e mortes. Então, mesmo que os animais não humanos valessem apenas 10% dos humanos, o holocausto ainda assim seria algo não tão ruim quanto as granjas industriais (as granjas industriais seriam 500 vezes pior). Antes que se distorça minha conclusão, o que quero dizer não é que o holocausto não foi uma coisa moralmente hedionda, e nem diminuir a importância dessa questão; o que quero dizer é que as granjas industriais (e outras conseqüências do especismo) são muito mais moralmente hediondas do que se imagina. A conclusão a ser tirada aqui é que levar a ética a sério (e não apenas como um palavreado retórico) implica em ver a situação dos animais não humanos como prioritária. Enxergar a coisa assim, por mais estranho que pareça à primeira vista, é cumprir com a imparcialidade (como será mais detalhado em outras sessões: #113, #118 até #125, #156 e #157): a situação atual dos animais não humanos deve ser vista como prioritária não porque eles são animais não humanos; mas porque estão atualmente na pior situação. Se fossem outros indivíduos na situação pior, a prioridade deveria ser deles.<br />
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Notas:<br />
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[2]Ver, por exemplo o trabalho do primatologista Frans, de WAAL (1996). Good Natured: The Origins of Right and Wrong in Humans and Other Animals. London: Harvard University Press...Entrevista com o autor disponível em <a href="http://www.comciencia.br/comciencia/?section=8&edicao=17&tipo=entrevista">http://www.comciencia.br/comciencia/?section=8&edicao=17&tipo=entrevista</a>. Um filósofo que defende que animais não humanos possuem capacidade para agência moral é Steve Sapontizs. Cf. SAPONTZIS, Steve F. Morals, Reason and Animals. Philadelphia: Temple University Press, 1987 pp. 30, 31.<br />
<br />
[3]Para uma boa descrição, assista o documentário <a href="http://www.youtube.com/watch?v=tZ8oxD9WLNo" target="_blank">Terráqueos </a>(Earthlings) ou leia SINGER, P., Libertação Animal, Porto Alegre/São Paulo: Lugano, 2004.<br />
<br />
[4]Sobre como é a vida na natureza, ver DAWRST, Alan, “How Many Animals are There?”, Essays on Reducing Suffering, 2009a. <a href="http://www.utilitarian-essays.com/number-of-wild-animals.html">http://www.utilitarian-essays.com/number-of-wild-animals.html</a>; DAWKINS, R., River Out of Eden: A Darwinian View of Life, New York: Harper Collins Publishers, 1996; DAWRST, Alan, “The predominance of wild-animal suffering over happiness: An open problem”. Essays on Reducing Suffering, 2009b, <a href="http://www.utilitarian-essays.com/wild-animals.pdf">http://www.utilitarian-essays.com/wild-animals.pdf</a>. GOULD, Stephen. J., Hen's Teeth and Horse's Toes: Further Reflections in Natural History, New York: W. W. Norton, 1994, pp. 32-44. HORTA, Oscar, “Disvalue in Nature and Intervention”, Pensata Animal, 2010. <a href="http://www.pensataanimal.net/painel/138-devemos-intervir-na-predacao/350-oscar-horta">http://www.pensataanimal.net/painel/138-devemos-intervir-na-predacao/350-oscar-horta</a>. MILL, J. S., Nature, The Utility of Religion and Theism, Rationalist Press, 1904, pp. 07-33.<br />
<br />
[5]Cf. Rachels, Stuart. Vegetarianism. In: Beauchamp, T. e Frey, R. The Oxford Handbook of Ethics and Animals [a ser publicado]. Disponível em <a href="http://www.jamesrachels.org/stuart/veg.pdf">http://www.jamesrachels.org/stuart/veg.pdf</a><br />
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Luciano Carlos Cunhahttp://www.blogger.com/profile/11543323145219198300noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-1743587667987089964.post-7255283427260609182012-12-19T04:59:00.005-08:002012-12-19T05:01:16.383-08:00Parte 3 – A (ir)relevância das intuições<br />
<b>Parte 3 – A (ir)relevância das intuições</b><br />
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<i>#29 – O argumento de que a crença no status superior dos humanos é uma intuição básica</i><br />
<br />
O terceiro argumento de Nigro para tentar demonstrar o maior status moral dos membros da espécie humana apela a intuições, não a razões:<br />
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<i>“... e somos especiais também por motivos que sinto, que intuo, que não sei verbalizar nem racionalizar porque “o coração tem razões que a própria razão desconhece” - no sentido original pascaliano. A razão é uma ferramenta humana para descrever a realidade que intuimos e sentimos por experiência direta. [...]Na verdade, as razões do coração são princípios que não são demonstráveis; escapam à razão, mas não os admitir como verdades impossibilitaria qualquer raciocínio”.</i><br />
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<i>#30 – Mesmo que o apelo a intuições básicas inescapáveis para o raciocínio seja legítimo, a intuição de que humanos são superiores não é esse tipo de intuição legítima</i><br />
<br />
O que Nigro quer dizer com o que foi exposto acima é que ele possui uma intuição muito forte de que os humanos possuem maior valor. A discussão sobre o <i>status</i> e a relevância das intuições em um raciocínio sério é objeto de amplo debate na filosofia. Sem querer entrar detalhadamente nesse debate no presente artigo, o que pretendo fazer é expor o que penso que seja a melhor defesa de que algumas intuições são relevantes para o raciocínio, para em seguida, mostrar que, mesmo que algumas intuições sejam relevantes, a intuição de que humanos são superiores não é uma delas.<br />
<br />
<i>#31 – O fato de algo ser uma intuição não diz se ela condiz com a verdade ou se é um preconceito</i><br />
<br />
A oposição que muitos filósofos, mais notadamente Peter Singer e James Rachels fazem ao apelo a intuições começa por notar que diferentes indivíduos possuem diferentes intuições. Algumas pessoas têm a intuição de que humanos são superiores; outras têm a intuição de que humanos não são superiores. Teríamos de investigar: quem possui a intuição correta? Assim, a questão mais central é essa: como distinguir intuições que condizem com a verdade de intuições que são fruto de preconceitos? Não há outro meio senão apelar à razão e testar essas intuições com base em argumentos. Não devemos esquecer de que, há poucas décadas atrás, era amplamente difundida a idéia de que pessoas de pele branca valiam mais do que pessoas de pele negra. Hoje, é muito fácil, para quem quer descobrir a verdade, ver que tais intuições eram apenas o reflexo do condicionamento a preconceitos culturais ou da pura maldade mesmo. Assim, de acordo com os filósofos que rejeitam o apelo a intuições, não haveria uma conclusão final inatacável: sempre deveríamos testar novamente nossas crenças (inclusive aquelas mais básicas, de onde partimos para formar os outros raciocínios), afim de ver se não estamos a reproduzir, novamente, um preconceito.<br />
<br />
<i>#32 – Princípios de raciocínio derivados e básicos (auto-evidentes)</i><br />
<br />
O que penso ser a melhor defesa da relevância das intuições, por outro lado, é a que está exposta a seguir. Os defensores do apelo a intuições começam por apontar que aquelas coisas que consideramos como razões secundárias tem apoio em princípios mais básicos e mais gerais que dão sustentação a essas razões secundárias. Talvez um princípio que enxergamos como básico seja, na verdade, produto de outro princípio mais básico. Após investigação, talvez descobríssemos outro mais básico, que dava sustentação aos outros e serviria para justificá-los e assim, por diante. Contudo, em algum momento, o apelo a outros princípios precisa parar. Alguns princípios básicos de raciocínio terão de extrair sua justificação deles próprios, e não de outros. É o que se comumente chama de princípios auto-evidentes.<br />
<br />
<i>#33 – “Intuições” básicas que estão presentes em qualquer raciocínio que faça sentido: por que rejeitar a razão por completo é auto-refutante</i><br />
<br />
Dentre esses princípios estariam, por exemplo, as regras básicas da lógica. Quanto a isso, Nigro está correto ao apontar que as intuições justificáveis seriam aqueles “princípios que não são demonstráveis; escapam à razão, mas não os admitir como verdades impossibilitaria qualquer raciocínio”. Para entender que princípios são esses, imagine que alguém está tentando oferecer um argumento para provar que jamais devemos confiar na razão (que a razão é uma <i>mera</i> construção social, ou uma <i>mera</i> ferramenta evolutiva, por exemplo). O argumento diz o seguinte: “Justificar a razão na própria razão é circular; justificar a razão na desrazão (intuições) é contraditório – logo, devemos descartar a razão”. Para entender por que esse argumento não tem sucesso, perceba que ele só faz sentido se apelar à razão. Afinal de contas, não-contradição e não-circularidade são dois princípios básicos da razão e que, portanto, só tem validade se a razão tiver (se a razão não for uma <i>mera</i> construção social ou <i>mera</i> ferramenta que nos ajudou no curso da evolução). Argumentos desse tipo só conseguem exemplificar que, toda vez que tentamos afirmar, negar, criticar algo, temos de nos apoiar em determinados princípios para dar sustentação ao que está sendo reivindicado. É por esse motivo que não é possível descartar a razão por completo. Embora as regras de não-contradição e não-circularidade não possam, aparentemente, ser justificadas com base em outros princípios mais básicos (ao que parece, eles são dos mais básicos possíveis), não admiti-los impossibilitará de pensar qualquer outra coisa que faça sentido. Penso que é esse tipo de intuição que se tem em mente na segunda metade do argumento de Nigro.<br />
<br />
<i>#34 – Mesmo princípios básicos podem ser aprimorados com base em outros princípios básicos</i><br />
<br />
É importante lembrar, contudo, que isso não significa que as regras de lógica e outros princípios racionais básicos não estejam abertos à dúvida. É possível colocá-los todos sob dúvida, mas, um de cada vez; nunca todos ao mesmo tempo. Isso porque, temos de nos basear em um para colocar o outro em dúvida. Não é possível criticar algo munido de nada. À medida que fazemos essa atividade auto-corretiva (como tem sido feito ao longo da história da filosofia), melhoramos nossas ferramentas de raciocínio.<br />
<br />
<i>#35 – A crença de que humanos são superiores não é uma “intuição” básica da razão</i><br />
<br />
Contudo, mesmo admitindo o <i>status</i> dessas regras básicas de lógica, às quais Nigro chama pelo nome “intuições” (a saber, como aquilo que, embora não possa ser demonstrado, não os admitir como verdadeiros impossibilitaria qualquer raciocínio), daí não se segue que a intuição de que seres humanos possuem <i>status</i> moral superior seja uma dessas intuições. É perfeitamente possível pensar qualquer coisa, fazer qualquer bom raciocínio, analisar criteriosamente qualquer argumento e ao mesmo tempo negar que os seres humanos possuem <i>status</i> moral superior. Negar que humanos são superiores é muito diferente de querer oferecer um argumento para negar a razão como um todo, por exemplo. Ao que parece, a intuição de que seres humanos possuem maior valor moral está mais perto da intuição de que humanos de pele branca possuem maior valor moral do que humanos de pele negra – ou seja, puro preconceito irracional – do que uma verdade básica da razão, embutida em qualquer pensamento com sentido.<br />
<br />
<i>#36 – A crença de que humanos são superiores não é uma intuição básica do raciocínio moral</i><br />
<br />
Nigro poderia replicar aqui que a intuição de que humanos são superiores é uma intuição básica <i>moral</i>, ainda que não seja uma intuição básica da razão <i>em geral</i>. Assim, o <i>status</i> de tal intuição dependeria não da impossibilidade de se pensar <i>qualquer coisa</i> sem ela, mas, da impossibilidade de <i>qualquer pensamento sobre ética</i> sem ela. Mesmo concedendo essa chance ao argumento, ele não funciona. É perfeitamente possível a construção de teorias éticas que não incorporem (inclusive rejeitem) a intuição de que humanos são superiores. Basta dar uma olhada, por exemplo, nas teorias de Bentham, Primatt, Singer, Regan, Sapontzis, Francione, etc. Mesmo a teoria de Kant, que rejeitava deveres diretos aos animais não humanos, também não se baseava na idéia de que alguém possuía <i>status</i> moral superior por ser membro da espécie humana, mas sim, por ser racional (o que abre a possibilidade para haverem seres com tal <i>status</i> que não pertencem à espécie humana, e seres pertencentes à espécie humana que não gozem de tal <i>status</i>). A crença de que humanos são superiores é que, na maioria das vezes, impede as pessoas de fazerem bons raciocínios morais (como vimos, os argumentos que visam dar sustentação a essa crença são culpados de circularidade, irrelevância, arbitrariedade, etc.).<br />
<br />
<i>#37 – Por que relevância e coerência são dois princípios básicos da forma do raciocínio moral e por que é irracional rejeitá-los</i><br />
<br />
Em comparação a outros princípios básicos morais, tanto quanto à <i>forma</i> do raciocínio moral quanto à <i>substância</i> (como veremos em exemplos a seguir), a idéia de que seres humanos são superiores com certeza não possui o mesmo <i>status</i>. Considere novamente a exigência formal de <i>coerência</i> (que casos relevantemente similares sejam tratados de maneira similar). É irracional se alguém afirmar: “esses dois casos são exatamente iguais em tudo o que é relevante para saber como devemos tratá-los; contudo, penso que devemos tratá-los de maneira diferente”. É por esse motivo que, embora não se possa provar com base em outro princípio mais básico que “casos relevantemente similares devam ser tratados de maneira similar”, tal “intuição” precisa ser aceita, devido a ser irracional rejeitá-la. Considere outra exigência formal da ética: a <i>relevância</i>. Seria igualmente irracional se alguém dissesse: “Para saber o que devemos fazer em cada situação, temos de pegar somente o que for <i>irrelevante</i> para o que queremos descobrir, e descartar tudo o que for relevante”. Esse também é o tipo de “intuição” que precisa ser aceita, pois, mesmo não sendo possível explicar com base em outro princípio mais básico por que o correto é pegar apenas o que é relevante e descartar o que é irrelevante (já que isso é muito básico para qualquer raciocínio, não apenas o raciocínio moral, fazer sentido), rejeitar tal suposição impede alguém de fazer qualquer raciocínio com sentido.<br />
<br />
<i>#38 – Por que a o dano por inflição de sofrimento ser algo de valor negativo é um princípio substancial básico da moralidade</i><br />
<br />
Considere outro princípio básico da ética, porém, dessa vez, um princípio <i>substancial</i>: o de que o sofrimento é algo <i>intrinsecamente</i> ruim e a felicidade algo <i>intrinsecamente</i> bom. Por<i> intrinsecamente</i>, o que se quer dizer é que as únicas situações onde existem razões para se pensar que o sofrimento foi bom e a felicidade foi ruim, é se forem, respectivamente, uma ponte para se chegar em outras coisas, respectivamente, boas e ruins (se o sofrimento for ponte para algo bom, ou se a felicidade for ponte para algo ruim). Se perguntarmos a alguém: “o que torna errado estuprar?”, é possível citar inúmeros motivos, mas, à medida que procuramos sempre por um princípio mais básico que sustente os outros, acabaremos chegando, inevitavelmente, no sofrimento que a vítima recebe (ainda que isso não esgote a possibilidade de haverem outros princípios básicos, como a violação das preferências da vítima, por exemplo), e que sofrer é algo ruim. O reconhecimento de que sofrer é algo ruim (de valor negativo), juntamente com a noção de que nenhum de nós é mais especial por ser quem é (de que cada um é apenas mais um indivíduo entre outros), é o que nos permite que concluamos que causar sofrimento em outro ser é moralmente errado.<br />
<br />
<i>#39 – Por que o desfrute (satisfação) ser algo de valor positivo (e, respectivamente, o dano por privação de desfrute ser algo de valor negativo) é um princípio substancial básico da moralidade</i><br />
<br />
Da mesma maneira, quando tentamos explicar o que há de errado em assassinar, é possível chegarmos em muitas explicações, mas, inevitavelmente, chegaremos na idéia de que a perda do que a vítima teria ainda por desfrutar é algo de ruim. Desfrutar felicidade é algo bom; não desfrutar aquilo que poderia ser desfrutado de felicidade é algo ruim. Isso não é justificado com base em outra coisa, já que são sensações de valor mais básicas possíveis. Contudo, devemos aceitar tais intuições porque não faz sentido duvidar da validade de tais princípios –não há uma razão para duvidar disso. Qualquer um que já sentiu imensa felicidade reconhece que ela é boa; qualquer um que já teve um acidente ou doença terríveis sabe o quão ruim é o sofrimento.<br />
<br />
<i>#40 – A idéia de que alguém merece maior consideração por pertencer à espécie humana é um preconceito irracional</i><br />
<br />
Sem as idéias de prejuízo e benefício se torna impossível qualquer raciocínio moral. Portanto, são “intuições” básicas. Note que isso é muito diferente da suposição de que humanos são superiores, e de que é correto matar animais não humanos. Existem inúmeras razões para se duvidar dessa intuição. Uma delas, é exatamente que entra em conflito com esses princípios básicos (de que a perda por inflição de sensação ruim ou privação de sensação boa são, por si só, coisas de valor negativo, e que o desfrute de felicidade tem valor positivo). O que acontece é que tais coisas são ruins ou boas por serem o tipo de experiência que são (na verdade, uma é uma experiência mental negativa; a outra, a ausência da experiência mental positiva; e a outra a presença da experiência mental positiva) – e a capacidade para tais experiências não depende do indivíduo pertencer à espécie humana; depende apenas que ele seja capaz de experiências (que seja senciente).<br />
<br />
Assim, parece que a “intuição” de que humanos são superiores é mesmo como a intuição de que algumas raças de humanos valem mais do que outras: mero preconceito irracional.Luciano Carlos Cunhahttp://www.blogger.com/profile/11543323145219198300noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-1743587667987089964.post-72028983268762831002012-12-19T04:51:00.001-08:002012-12-19T05:00:48.607-08:00Parte 2 – A crença de que um indivíduo possui maior valor moral por ser membro da espécie humana<br />
<b>Parte 2 – A crença de que um indivíduo possui maior valor moral por ser membro da espécie humana</b><br />
<i><br /></i>
<i>#23 – O argumento de que alguém possui maior valor por pertencer à espécie humana</i><br />
<br />
Talvez por perceber que o argumento da posse da racionalidade não funciona para defender a idéia de que todos os seres humanos (e somente os seres humanos) são dignos de consideração moral, é que Nigro apele a um segundo critério: o de pertencer à espécie humana.<br />
<br />
Nigro escreve:<br />
<br />
<i>Os animais não tem um projeto de vida, por isso a morte não lhes tira nada - é chocante, mas é verdade. Aquelas pessoas que por alguma infelicidade não podem raciocinar e de planejar seu futuro continuam <span class="Apple-tab-span" style="white-space: pre;"> </span>sendo seres-humanos como nós.</i><br />
<br />
<i>#24 – O critério “pertencer à espécie Homo sapiens” é trazido à tona quando se percebe que o critério “posse da razão” não serve para se defender que é um erro matar todo e qualquer ser humano</i><br />
<br />
Em resumo, o argumento de Nigro visa explicar onde está o erro em matar seres humanos. Num primeiro passo, a razão oferecida é a de que os humanos “têm um projeto de vida”. No entender de Nigro, isso explica porque é errado matar todo e qualquer ser humano e explica também porque é certo matar todo e qualquer animal não-humano. Como vimos na análise do argumento anterior, esse critério não serve para se defender a idéia de que é errado matar todo e qualquer ser humano (e, Nigro percebeu esse ponto!), porque tal critério exclui exatamente aqueles humanos incapazes de planejar o futuro e, portanto, terem um projeto de vida. Novamente, se tal argumento estivesse correto, então seria moralmente correto matar bebês, crianças pequenas, idosos senis, portadores de determinadas doenças mentais, etc. Nigro, percebendo que o critério que adota para explicar o erro em matar humanos na verdade aponta para a conclusão contrária (de que é correto matar alguns humanos), tenta colocar uma condição <i>ad hoc</i> (digamos, um “remendo”) em sua teoria: o erro em matar humanos se dá por frustrar um projeto de vida quanto ao futuro, mas aqueles humanos que não apresentam capacidade de planejar o futuro devem, contudo, receber a mesma proteção, devido a serem membros da espécie humana.<br />
<br />
<i>#25 – A circularidade do uso do critério “pertencer à espécie humana” para explicar o erro em matar</i><br />
<br />
Se não está claro ainda o porque desse ser um mau argumento, atente para o círculo vicioso no qual tal argumento se baseia. O argumento visa responder: “O que torna errado matar humanos?” com a resposta “É a capacidade para fazer planos para o futuro” e, responde à seguinte pergunta “e, aqueles humanos que não possuem capacidade para fazer planos para o futuro?” com a resposta “Também é errado matar, porque são seres humanos”. Ora, se o que explica o erro em matar seres humanos é a capacidade para fazer planos para o futuro (que, como vimos anteriormente, em #20 e #21, é uma explicação equivocada, que reside na confusão entre o critério relevante para considerar alguém como agente moral, com o critério relevante para considerar alguém como paciente moral), e não o fato dos seres humanos serem o que são (seres humanos, o que é verdadeiro, porém irrelevante), então não seria errado matar os seres humanos que não possuem capacidade para fazer planos para o futuro. Se, por outro lado, se mantém que é errado matar os seres humanos que não possuem a capacidade para fazer planos para o futuro, então é falso que o erro em matar humanos dependa frustrar planos quanto ao futuro. O que a lógica não permite é as duas respostas serem verdadeiras ao mesmo tempo, haja vista que uma nega a outra.<br />
<br />
<i>#26 – Se o erro em matar não reside na capacidade de ter um projeto de vida, então é errado matar seres sencientes não humanos também </i><br />
<br />
A única maneira de tornar plausível o argumento de Nigro, se ele pretende afirmar que é errado matar todo e qualquer ser humano, é abandonar a idéia de que o erro em matar dependa do indivíduo ter a capacidade de fazer planos quanto ao futuro. É exatamente isso que penso que ele deva fazer porque, como vimos, esse critério é irrelevante para explicar o dano da morte. Mas, como vimos, adotar o critério relevante para explicar o dano da morte (a possibilidade da vítima sofrer um dano por privação) implica em reconhecer que é errado matar qualquer ser senciente cuja morte lhe cause um dano por privação – o que incluirá reconhecer o erro em matar animais não humanos sencientes.<br />
<br />
<i>#27 – A circularidade do critério “pertencer à espécie humana” para explicar o erro em matar seres humanos</i><br />
<br />
A única maneira de Nigro defender o erro em matar todo e qualquer ser humano e que é certo matar todo e qualquer animal não humano é se basear na única característica que realmente consiga com sucesso colocar todos os humanos de um lado, e todos os animais não humanos de outro. Porém, a única característica capaz disso é o fato de uns pertencerem à espécie humana, e outros não. Assim, reformulando nesse sentido, o argumento de Nigro se torna esse: “o que explica o erro em matar seres humanos é que seres humanos pertencem à espécie humana”. Perceba como esse argumento é circular. Embora a circularidade não seja exatamente uma falácia formal, perceba que um argumento assim é realmente muito pouco informativo. A única coisa que afirma é que seres humanos são seres humanos. Disso, ninguém discorda (uma coisa é ela mesma, isso é óbvio!). Porém, apesar disso ser verdadeiro, não ajuda nada a descobrirmos onde está o erro em matar (seres humanos ou quaisquer outros seres). O que alguém quer descobrir é o que há nos seres humanos que torna errado matá-los. O próprio fato de eles pertencerem à espécie <i>Homo sapiens</i> não ajuda a responder isso.<br />
<br />
<i>#28 – A arbitrariedade do critério “pertencer à espécie humana” para explicar o erro em matar </i><br />
<br />
Alguém poderia, legitimamente, perguntar: “por que humanos e não indivíduos de qualquer outra espécie?”. Quando alguém faz essa pergunta, o que quer dizer é “<i>o que há de especial </i>nos humanos que não há em indivíduos de nenhuma outra espécie?”. Seja lá o que houver de especial (<i>se houver</i>), não pode ser o mero fato de humanos serem humanos. Isso é verdadeiro, porém, irrelevante, haja vista que qualquer coisa é ela mesma. Se alguém dissesse a Nigro que “os únicos seres onde há erro em matar são as amebas”, obviamente ele gostaria de saber por que. Se a resposta fosse “ora, é simples: é que amebas são amebas” ele consideraria, com razão, essa resposta insatisfatória. Ele queria saber, com a pergunta, o que há nas amebas que as torna tão especiais. Mas, o mesmo se sucede com os seres humanos. Eu gostaria de saber o que há neles que os torna tão especiais. E é isso que se quer saber de alguém que diz que é errado matar apenas quando as vítimas são humanos. Note que, percebendo a circularidade em se responder “o que torna os humanos mais especiais é que eles pertencem à espécie <i>Homo sapiens</i>”, geralmente os defensores do especismo partem então para o argumento de que seres humanos são mais racionais. Mas, essa saída não está disponível para Nigro, pois, foi exatamente para evitar as implicações dessa saída que ele apelou ao argumento circular. Então, a tentativa terminou num beco-sem-saída.<br />
<br />Luciano Carlos Cunhahttp://www.blogger.com/profile/11543323145219198300noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-1743587667987089964.post-65110920913762464962012-12-19T04:46:00.003-08:002012-12-20T06:03:14.451-08:00Esclarecendo confusões freqüentes – um FAQ sobre anti-especismo<br />
<b>Esclarecendo confusões freqüentes – um FAQ sobre anti-especismo</b><br />
<b><br /></b>
<b>(Respondendo as objeções levantadas pelo Dr. Carlos Eduardo Nazareth Nigro)</b><br />
<br />
Luciano Carlos Cunha<br />
<br />
<i>#1 – Os velhos argumentos novamente</i><br />
<br />
Em 29 de maio de 2012, o <a href="http://www.blogger.com/profile/00548611718399630684" target="_blank">Dr. Carlos Eduardo Nazareth Nigro</a> postou como <a href="http://www.lucianoccunha.blogspot.com.br/2010/08/links-para-textos-essenciais.html#comment-form" target="_blank">comentário</a> em meu blog alguns argumentos que, em seu entender, mostram que o especismo é justificável. Nigro, em seguida, fez do seu comentário uma <a href="http://www.voceacreditamesmonisso.blogspot.com.br/2012/05/veganos-voce-acredita-mesmo-nisso.html#comment-form" target="_blank">postagem em seu próprio blog</a>. Os argumentos que o Dr. Carlos Nigro apresenta como se fossem novidades são, contudo, os mesmos argumentos que todo defensor dos animais já está acostumado a ouvir e responder: o argumento de que os humanos são moralmente superiores por serem racionais; o argumento da casa em chamas; o de que aumentar a consideração moral pelos animais não humanos diminuirá a consideração pelos humanos; o de que a igualdade humana é uma igualdade factual; a confusão entre ética animal e ética ambiental; o da ladeira escorregadia para a eugenia nazista; entre outros velhos conhecidos, para os quais esse FAQ é uma resposta.<br />
<br />
<i>#2 - Qual a importância de se responder novamente aos velhos argumentos</i><br />
<br />
Apesar de Nigro não apresentar nenhuma novidade (e eu mesmo já ter respondido quase todos esses argumentos em outros artigos[1]), a análise de tais argumentos vale a pena, com vistas a entendermos o que há de errado com eles. No final das contas, é um bom exercício de lógica e de raciocínio moral tentar responder, mais uma vez, aos velhos argumentos. Eles contêm tantos erros básicos, que se tornam ótimos exemplos práticos de como ilustrar falácias formais e informais, como a da falsa dicotomia, petição de princípio, falsa analogia, falácia naturalista, apelo à galeria, ladeira escorregadia sem base factual, irrelevância, incoerência, entre tantos erros de raciocínio. Outro motivo da importância em se responder a tais argumentos é que muitos dos defensores dos animais, apesar de se pronunciarem contrários a esses argumentos, parecem não saber explicar o que há de errado com eles, muitas vezes por não saberem como avaliar argumentos. Isso os conduz muitas vezes a utilizarem, também, argumentos muito ruins para defender os animais não humanos.<br />
<br />
Antes de iniciar, contudo, gostaria de agradecer à postura do Dr. Carlos Nigro, enquanto debatedor. Embora eu discorde quase que totalmente dos argumentos que endereçou (e, a razão disso será explicada a seguir), não posso negar que o Dr. Carlos Nigro é uma pessoa intelectualmente honesta, algo raríssimo de se ver nos debates. Isso porque o Dr. Nigro atacou os meus argumentos, e em nenhum momento fez acusações à minha pessoa ou utilizou de argumentos <i>ad hominem</i>. É nesse mesmo espírito que ofereço uma resposta aos argumentos de Nigro, para que possamos continuar um debate intelectualmente saudável cujo objetivo é descobrir a verdade (no caso, a verdade sobre o que temos ou não justificativa para fazer aos animais não humanos), e não qualquer outra coisa. Gostaria de agradecer inclusive a uma contribuição trazida por Nigro em uma de suas críticas. Ele me mostrou que nem todos os preconceitos derivam do egoísmo (como irei explicar na parte 7, sobre a diferença entre preconceitos agente-centrados e objeto-centrados). Contudo, mostrarei também porque o especismo, tal como praticado pelos humanos, é derivado do egoísmo, e por que, independentemente de derivarem do egoísmo ou não, um preconceito, por outras razões, é sempre injustificável. De qualquer forma, um obrigado ao Dr. Carlos Nigro pela honestidade intelectual de fazer um debate centrado em críticas aos argumentos. É com essa mesma honestidade intelectual em mente que respondo às suas objeções, com vistas a que possamos, juntos, chegar mais perto da verdade.<br />
<br />
A resposta será dividida por assunto, em 10 postagens.<br />
<br />
<b>Parte 1 – A crença de que um indivíduo possui maior valor moral por ser mais racional</b><br />
<br />
<i>#3 - A crença de que, se existem alguns indivíduos mais valiosos do que outros, então que os mais valiosos têm direito de fazer o que bem entenderem com os menos valiosos</i><br />
<br />
Para entendermos de onde Nigro parte toda a sua crítica que faz à visão anti-especista, basta darmos uma olhada no seguinte trecho de sua resposta:<br />
<br />
<i>“...toda a discussão a respeito dos animais parte do princípio de que uma pessoa vale tanto quanto um peixe ou uma formiga porque não existiria nada que justifique ‘a crença de que os animais humanos tenham status superior’. E é esse o ponto que deve ser discutido porque todo o resto deriva dele. Para quem discorda disto todo o artigo não serve para nada”.</i><br />
<br />
<i>#4 – Risco de ambigüidade: dois sentidos para o termo “pessoa”</i><br />
<br />
Para entendermos melhor a posição de Nigro, é necessário entender que o mesmo está a se referir pelo termo “pessoa” o mesmo que “membro da espécie biológica <i>Homo sapiens</i>”. Então, para evitarmos confusões (e, para detectarmos a confusão envolvida no argumento de Nigro), é necessário entender que o termo “pessoa”, nesse primeiro momento, não está se referindo ao que geralmente se refere pelo mesmo termo na tradição filosófica anglo-saxônica, que tem seu uso difundido desde John Locke até pensadores dos nossos dias como Peter Singer. <br />
<br />
<i>#5 - O termo “pessoa” para se referir a um indivíduo autônomo, com consciência temporal e capacidade para agência moral</i><br />
<br />
“Pessoa”, de acordo com esse segundo uso do termo, diz respeito a um indivíduo autônomo, com um sentido temporal de si (ou seja, percebe o presente, se lembra do passado e faz planos para o futuro). Muitas vezes, acrescenta-se outra característica: uma pessoa é alguém que possui um senso de justiça, a quem faz sentido fazer uma reivindicação moral. Nesse segundo sentido, “pessoa” é quase um sinônimo para “agente moral”. É claro, alguém poderia “suavizar” a definição de pessoa nesse segundo sentido, mantendo algumas características da definição mas não outras. Se for mantido apenas a exigência de que seja um indivíduo com sentido temporal de si (descartando a exigência de que possua um senso de justiça), então a definição do termo é quase que sinônimo de “agente” (ainda que não agente moral). Com vistas a evitar confusão entre os dois conceitos que utilizam a mesma palavra, me referirei por “pessoa(h)” para sinalizar esse uso quando referente à membros da espécie humana, e “pessoa(a)” para se referir a um indivíduo agente (moral ou não) no sentido descrito acima.<br />
<br />
<i>#6 – O erro em se dar um salto do primeiro sentido do termo “pessoa” para o segundo, e vice-versa</i><br />
<br />
Um dos principais argumentos de Nigro para explicar o porquê de, no seu entender, os membros da espécie humana valerem mais, de um ponto de vista da consideração moral envolve dar um salto do primeiro sentido do termo “pessoa” para o segundo, concluindo então que todos os que pertencem ao primeiro grupo automaticamente pertencem ao segundo, o que é claramente falso. Considere o seguinte trecho de sua resposta:<br />
<br />
<i>“A noção da própria existência e da morte, a cultura, as escolhas, as responsabilidades e a liberdade por não sermos determinados geneticamente a agir da mesma forma que todos os outros indivíduos torna a espécie humana especial e superior às outras espécies. Somente a consciência humana é capaz de ter conhecimento aproximado da realidade, da verdade”.</i><br />
<br />
<i>#7 – Erro em pensar que todos os membros da espécie Homo sapiens são pessoas (no segundo sentido do termo)</i><br />
<br />
Note que, nesse momento, ao oferecer uma razão explicando porque os membros da espécie humana valeriam mais, ele apela à noção de pessoa no segundo sentido. No argumento de Nigro, este parece pressupor que <i>todos </i>os humanos possuem as habilidades listadas (noção da própria existência e da morte, responsabilidade moral, conhecimento da verdade, etc.). De que outra maneira poderia concluir que todos os seres humanos valem mais exatamente por esse motivo? Note que as características listadas são as envolvidas na definição de um agente moral.<br />
<br />
<i>#8 – Resumo do argumento “humanos valem mais por serem mais racionais”</i><br />
<br />
Existem dois problemas graves com esse argumento. O primeiro é factual, o outro é moral. Para melhor entendermos esse ponto, reformulemos o argumento assim:<br />
<br />
(1) O relevante para saber se a vida de alguém deveria ser mais protegida são suas capacidades de autonomia (prática ou moral);<br />
(2) Apenas os humanos e todos os humanos são autônomos no sentido descrito acima (ou que, pelo menos, qualquer humano se situa acima, no que diz respeito à posse daquelas habilidades, a qualquer animal não humano);<br />
(3) Logo, a vida de humanos deveria ser mais protegida do que a de animais não humanos.<br />
<br />
<i>#9 – Erro factual com o argumento de que “humanos valem mais por serem mais racionais”</i><br />
<br />
O problema factual se encontra na premissa número 2. Ela envolve duas falsidades factuais. A primeira: é falso que todos os humanos possuem as habilidades listadas. Já foi apontado corretamente e exaustivamente por Singer, Regan, Sapontzis, entre outros, que bebês, crianças muito pequenas, idosos senis, comatosos, e portadores de determinadas doenças mentais não possuem aquelas habilidades. Então, é falso que todos os membros da espécie humana são autônomos no sentido descrito por Nigro. A segunda falsidade factual envolvida no argumento é que, mesmo que fôssemos considerar a posse daquelas habilidades em alguns aspectos (como a noção da própria existência e da morte) e fossem descartados outros aspectos (como a habilidade para agência moral), ainda assim existiriam humanos que se situam abaixo da linha, em comparação a determinados indivíduos pertencentes a outras espécies biológicas. Um chimpanzé ou gorila adulto possui, por exemplo, maior compreensão do que é estar vivo, sentido temporal de si e capacidade de comunicação do que um bebê humano.<br />
<br />
<i>#10 – Manobra retórica envolvida no argumento que conduz a crenças factuais falsas</i><br />
<br />
A manobra retórica nesse argumento consiste em se referir a “membro da espécie humana” por “pessoa” (que é o uso freqüente no senso comum), para então dar a entender que todos os seres humanos são “pessoas” no sentido de serem agentes autônomos. Os leitores menos atentos tenderão a, devido a se usar a mesma palavra para se referir a dois conceitos totalmente diferentes, concluir que todos os que pertencem ao grupo que se encaixa na primeira definição também se encaixam na segunda e vice-versa. Dessa confusão de ambigüidade chega-se geralmente a conclusões factualmente falsas. Uma é pensar que todos os seres humanos são agentes morais (pensar que todas as pessoas ‘h’ são pessoas ‘a’). Outra é pensar que apenas os seres humanos podem ser pessoas no sentido de serem agentes (pensar que apenas as pessoas ‘h’ são pessoas ‘a’).<br />
<br />
<i>#11 – Nenhuma das duas saídas disponíveis sustenta a tese de que humanos valem mais</i><br />
<br />
Note que, exposto esse ponto, Nigro só tem duas saídas, e nenhuma delas é boa para o que pretende. (1) Ou mantém que o critério da posse da racionalidade é relevante para saber o grau de respeito que alguém merece. Nesse caso, terá de admitir que, então, alguns animais não humanos merecem mais respeito do que alguns seres humanos, devido aos primeiros serem mais racionais do que os segundos. (2) Ou abandona o critério da posse da racionalidade como relevante para sabermos o grau de respeito que alguém merece. Nesse caso, não tem mais motivos para acreditar que, devido à maior capacidade racional de <i>alguns </i>membros da espécie humana, então que <i>todos</i> os membros da espécie humana (incluindo aqueles que não possuem tais capacidades) devam receber <i>status </i>moral superior devido à capacidade de alguns. Note que, se adotada essa saída, nem mesmo os que possuem tais capacidades deveriam ser vistos com maior valor, haja vista ter-se reconhecido que tais habilidades são irrelevantes para o grau de consideração moral que é devido a alguém.<br />
<br />
<i>#12 – A possibilidade do argumento do grupo (e sua circularidade) e por que pertencer à espécie humana é irrelevante</i><br />
<br />
Outra saída disponível para Nigro seria manter que a posse de racionalidade é um critério relevante para saber quem deve ser considerado moralmente, e, mesmo reconhecendo que alguns humanos não a possuem, afirmar que esses humanos (destituídos de razão) deveriam, contudo, receber consideração, porque outros membros dessa mesma espécie são capazes de razão. Esse é o conhecido “argumento do grupo”. O argumento do grupo só faria sentido se pertencer à espécie humana fosse moralmente relevante. Como o autor não apela ao argumento do grupo, deixarei a análise desse argumento para mais adiante. Nesse primeiro argumento, é exatamente o oposto que Nigro parece reconhecer: que pertencer à espécie humana não é suficiente para explicar o motivo pelo qual alguém deveria valer mais. Por isso, o seu argumento tenta trazer à tona outra característica (presumidamente possuída apenas por seres humanos, e por todos os seres humanos em grau similar), para explicar por que os humanos valeriam mais, que não o mero fato de serem humanos. O problema é que tal característica mostra exatamente o contrário: que, para além de não ser possuída em <i>igual grau</i> por todos os seres humanos, sequer é possuída por <i>grau algum </i>por todos os seres humanos. Isso sugere uma circularidade no argumento do grupo: primeiro, a posse da razão é trazida como razão para explicar o erro em não se considerar os humanos; depois, o pertencimento à espécie humana é trazido como razão para explicar o erro em não se considerar os que não tem a posse da razão.<br />
<br />
<i>#13 – Erro moral com o argumento de que “humanos valem mais por serem mais racionais” e as implicações danosas de se aplicar esse princípio coerentemente</i><br />
<br />
O erro moral se encontra na premissa número 1. Vamos supor que Nigro, ao terminar de ler os parágrafos acima, que apontam para o erro factual, acuse-me do seguinte: “então, você está a dizer que não devemos respeitar aqueles humanos que não possuem aquelas capacidades racionais?”. Isso só seria se verdade se eu, como Nigro, concordasse que a capacidade racional de alguém é relevante para saber se esse alguém deve ou não deve ser respeitado, e o grau de respeito que esse é devido a esse alguém. Mas, é exatamente desse ponto que discordo radicalmente. Como exporei a seguir, a capacidade racional nada tem de relevante para saber se alguém deve ser considerado moralmente (e o grau de consideração que lhe é devido); é relevante apenas para saber o grau de deveres morais que alguém possui. Então, o que quero apontar é que é Nigro, não eu, que tem que admitir que o critério moral do qual parte tem como implicação o desrespeito por seres humanos que não possuem as habilidades racionais listadas por eles.<br />
<br />
<i># 14 – Duas exigências formais do raciocínio moral: relevância e coerência</i><br />
<br />
Para explicar o porquê de a capacidade racional ser um critério irrelevante para se saber o grau de respeito que alguém merece, é necessário alguma explicação sobre teoria ética. Na ética, boa parte do que queremos descobrir é como tomar a decisão correta (outra coisa que se quer descobrir geralmente é ‘que virtudes cultivar para conseguir tomar a decisão correta’). Descobrir qual decisão correta geralmente é tentado a partir da aplicação de princípios gerais a casos práticos particulares. Esses princípios sugerirão alguns critérios que indicarão qual decisão deve ser tomada. O que se procura descobrir, então, para cada questão moral, são as características relevantes para decidir a questão. A partir disso, tenta-se chegar a um princípio (ou vários) que incorpore essas características relevantes e sirva como guia para decidir, descartando as características irrelevantes. Geralmente tal princípio também hierarquiza o peso das características relevantes, e, no caso desse peso variar, indica do que depende essa variação, em termos das circunstâncias da situação. Irei me referir a essa exigência do raciocínio moral por <i>relevância</i>. Uma vez tendo analisado das melhores maneiras disponíveis e chegado a um princípio que abarque aquilo que é relevante, busca-se que o princípio a qual se chega sirva de guia não apenas para um caso, mas para outros casos relevantemente similares (ou seja, casos nos quais estejam presentes aquelas características moralmente relevantes). Nesse caso, supondo que alguém se baseia num critério relevante, é possível que erre moralmente por aplicá-lo de maneira incoerente (aplica-o corrretamente em alguns casos, mas não em outros). Irei me referir a essa exigência do raciocínio moral por <i>coerência</i>.<br />
<br />
<i>#15 – O erro de se aplicar um critério irrelevante de maneira coerente</i><br />
<br />
Na discussão acima, do problema factual do argumento de Nigro, expus o que aconteceria se o princípio que ele sugere fosse aplicado coerentemente. Um detalhe importante é que não significa que, se o critério fosse aplicado coerentemente, então que as decisões morais de Nigro estariam, automaticamente, corretas. Isso porque o critério pode se revelar baseado numa característica moralmente irrelevante (como pretendo mostrar a seguir). Então, supondo, para efeito de argumentação, que Nigro aceita aplicar coerentemente o critério que sugere como moralmente relevante (a capacidade racional, para determinar quem merece consideração), e, então, exclui da consideração moral, juntamente com os animais não humanos, todos aqueles seres humanos que não possuem as capacidades racionais listadas por ele. Sua decisão agora é coerente. É moralmente correta? Não. Porque se baseia, ainda, num critério irrelevante. Um critério baseado numa característica irrelevante aplicado de maneira coerente continua sendo um mau critério, mesmo aplicado coerentemente. As únicas chances de se tomar a decisão correta, baseando-se numa característica irrelevante, seria por coincidência (talvez alguns casos daqueles também tenham a característica relevante, perdida de vista pelo princípio sugerido por Nigro).<br />
<br />
<i>#16 – O que é relevante (vulnerabilidade) e o que é irrelevante (capacidade para razão) para saber quem devemos considerar moralmente</i><br />
<br />
Como saber, então, que o princípio sugerido por Nigro baseia-se numa característica relevante ou irrelevante? Temos de nos perguntar, em primeiro lugar, o que faz surgir a questão moral específica sobre a qual estamos nos debruçando. A questão específica, nesse caso, é: “o que torna alguém digno de respeito?”. Para responder a essa pergunta, é preciso fazer, antes, outra: “por que alguém precisa de respeito?”. À medida que respondemos a essa pergunta, fica claro que ela não depende, em grau algum, da capacidade racional de alguém (talvez até dependa de maneira inversa). A primeira resposta óbvia é que alguém precisa de respeito porque é <i>vulnerável</i>, ou seja, é possível de alguém prejudicá-lo. Imagine, por exemplo, a figura de um indivíduo onipotente, que jamais fosse possível prejudicá-lo (seja física, seja psicologicamente, moralmente, etc.): nada do que fizermos poderia lhe atingir (ele não sofreria danos, seja por inflição de sensação ruim nem privação de sensação boa, nem nunca acreditaria numa mentira; na verdade, ele sempre teria a melhor vida possível). Faria sentido, diante de tal ser, dizer que ele <i>precisa</i> de respeito? Não. Simplesmente porque não temos poder o bastante para fazer-lhe algo de mal. Então, veja: uma característica moralmente relevante e central com relação ao dever de respeitar é a <i>vulnerabilidade</i> do paciente da nossa decisão. Definirei vulnerabilidade como a possibilidade de ser prejudicado.<br />
<br />
<i>#17 – Duas formas básicas de prejuízo: por inflição de sensação ruim ou privação de sensação boa</i><br />
<br />
Com vistas a responder mais especificamente a presente questão moral (para sabermos exatamente quais seres precisam de respeito, e em qual grau), temos de nos perguntar o seguinte: quais as principais maneiras de alguém ser prejudicado? Existem pelo menos duas maneiras básicas em que se pode dizer que alguém foi prejudicado. A primeira é por <i>inflição de sensação ruim</i>. É por isso que dizemos que alguém foi prejudicado quando, por exemplo, sofre física ou psicologicamente. A inflição de sensação ruim não esgota as possibilidades de se prejudicar alguém. É possível alguém ser prejudicado também por <i>privação de sensação boa</i>. Suponha que alguém possui uma vida da qual gosta muito e que, numa noite, após ir dormir, morre sem dor alguma, nem física nem psicológica. Não faz o menor sentido dizer que essa pessoa não foi prejudicada pela morte prematura, mesmo que não tenha sofrido prejuízo por inflição. A explicação do prejuízo, nesse caso, se dá por privação. A pessoa em questão foi privada de todas as sensações que ela gostava de desfrutar. Note que nem a inflição de sensação ruim nem a privação de sensação boa precisam de um agente deliberador para acontecer. As próprias circunstâncias e eventos da vida de alguém podem fazer acontecer algo que lhe prejudica. “Prejuízo” é um conceito centrado no paciente: para alguém ser prejudicado, não é necessário a ação de alguém.<br />
<br />
<i>#18 – Defesa do critério da senciência: ele é relevante para saber quem é capaz de ser prejudicado por inflição de sensação ruim ou privação de sensação boa</i><br />
<br />
Assim, se o que queremos saber é quais seres merecem respeito, precisamos apenas nos perguntar quais seres são capazes de serem prejudicados. Para respondermos a essa segunda pergunta, termos de nos perguntar quais seres são capazes de sofrerem inflição de sensação ruim ou privação de sensação boa. A resposta será: apenas aqueles seres capazes de sensações. Por esse motivo, o critério da senciência (ou seja, aqueles seres capazes de sentir e desfrutar) não é apenas mais um critério arbitrário ou irrelevante para responder quem deve ser respeitado e quem não deve. Isso porque, se o que cria a necessidade de um respeito é a possibilidade de prejuízo, a capacidade da senciência está atrelada às duas formas básicas nas quais é possível de alguém sofrer um prejuízo: por inflição de sensação ruim ou privação de sensação boa.<br />
<br />
<i>#19 – Diferença entre sofrer uma perda e ter consciência da perda: a morte é principalmente um dano por privação</i><br />
<br />
Isso mostra que o critério sugerido por Nigro para haver erro em matar (“a noção da própria existência e da morte”) envolve uma confusão entre ser prejudicado (no caso, por privação) e ter consciência do prejuízo que sofrerá. No caso de alguém saber de antemão o prejuízo que sofrerá por privação (como alguém que sabe que irá morrer), isso geralmente faz surgir um prejuízo por inflição de sensação ruim, por saber do prejuízo por privação que o espera. Mas, note que isso só é possível devido à privação da sensação boa ser um prejuízo de maneira independente (de outra maneira, não haveria razões para alguém ficar triste por saber que será assassinado); o que mostra que não é necessário ter consciência da perda para sofrer tal perda. Temos, então, boas razões para considerar que é um erro <i>prima facie</i> (ou seja, existem exceções, como a legítima defesa e a eutanásia, por exemplo, tratadas mais adiante), matar um ser senciente. De acordo com Nigro, <i>“...os animais não tem um projeto de vida, por isso a morte não lhes tira nada - é chocante, mas é verdade”</i>. Como vimos nos argumentos expostos acima, isso é confundir <i>sofrer uma perda</i> com <i>ter consciência da perda</i>. Chocante é descobrir como alguém pode acreditar que uma afirmação desse tipo, que não resiste a um parágrafo de exame crítica, possa ser verdade.<br />
<br />
<i>#20 – Quanto menor a racionalidade, geralmente maior a vulnerabilidade, então maior o dever de prioridade no respeito</i><br />
<br />
Perceber que o que é relevante para saber se alguém deve ser respeitado ou não é sua vulnerabilidade mostra que o critério sugerido por Nigro, o da posse da racionalidade, não só é irrelevante para saber o grau de respeito que alguém merece, como também é inversamente proporcional: quanto maior a racionalidade (pelo menos, no sentido instrumental) de alguém, geralmente (ainda que nem sempre) menor sua vulnerabilidade (pois, sabe melhor ‘se virar sozinho’), portanto, de menor proteção precisa. No dia-a-dia, todos nós já reconhecemos esse fato. É por isso que damos mais cuidado a um bebê (que, devido à sua falta de racionalidade e autonomia, necessita de maiores cuidados por possuir uma vulnerabilidade maior) do que a um adulto. Só uma mente moralmente perversa poderia pensar que a falta de racionalidade e a conseqüente vulnerabilidade de um bebê gera uma razão para fazer churrasco desse bebê ou usá-lo em experimentos. O problema é que, quando as vítimas são os animais não humanos, infelizmente a maioria dos humanos se baseia nesse erro de raciocínio, que é moralmente perverso. Se a falta de racionalidade dos animais não humanos mostra alguma coisa de moralmente relevante, é que geralmente precisam de uma proteção maior, devido à sua vulnerabilidade maior. Eles não podem, diferentemente de alguns humanos adultos, por exemplo, lutarem por seus direitos. Isso só mostra que temos um dever maior ainda de lutar por eles, do que por humanos que têm condições de se defender sozinhos.<br />
<br />
<i>#21 – A posse da razão é relevante apenas para saber quem deve ser responsabilizado</i><br />
<br />
No que é relevante a capacidade racional então? Ela é relevante quando tentamos responder à seguinte questão moral: “o que torna alguém responsável pelas suas escolhas e qual o grau de responsabilidade que faz sentido cobrar de alguém?”. Nesse caso, é a posse da racionalidade que é relevante, pois, se alguém não entende a noção, por exemplo, de deveres morais, não faz sentido responsabilizá-lo pelo que faz. Novamente, é por esse motivo que não é racional ficar bravo com um bebê de alguns meses que espalhou comida por toda a casa. Igualmente, não faz sentido cobrar de um animal não humano que responda pelo que faz (nesse quesito, assim como na vulnerabilidade, novamente, estão em pé de igualdade com bebês humanos, portadores de determinadas doenças mentais, idosos senis, etc.). Isso não quer dizer, obviamente, que devemos deixar os seres destituídos de razão, sejam humanos ou não humanos, fazerem todo e qualquer ato – haja vista que alguns de seus atos podem ser nocivos a outros indivíduos sencientes. E, uma vez reconhecendo que a presença da capacidade racional é relevante para saber se devemos ou não responsabilizar alguém pelo que escolhe, faz todo sentido pensar que, quanto maior essa capacidade (o que proporciona maior entendimento das questões morais), maiores as responsabilidades morais que alguém têm. Como diria o tio Ben, “com grandes poderes vêm grandes responsabilidades”.<br />
<br />
<i>#22 – Confusão entre sofrer uma perda e ter consciência da perda</i><br />
<br />
O raciocínio de Nigro parte do pressuposto de que o dano da morte depende da compreensão do que é morrer. Isso é confundir "sofrer uma perda" com "ter consciência da perda que irá sofrer". Novamente, da mesma maneira, se o mal de morrer dependesse da compreensão do que é a morte, teríamos de defender que matar (sem causar dor) qualquer criança pequena que possui uma vida significativa, e que ainda não entende o que é estar morto, não causa perda alguma a essa criança. Mas, obviamente, a criança perde algo, não perde? Ela perde de desfrutar. E desfrute só depende da capacidade da senciência. Portanto, é falso que os animais não humanos sencientes não perdem nada ao serem mortos, mesmo os que não possuem consciência da perda.<br />
<div>
<br /></div>
<div>
[1] Os artigos estão divididos com índices nos seguintes endereços: <a href="http://www.olharanimal.net/pensadoresetica-e-animais/luciano-cunha">www.olharanimal.net/pensadoresetica-e-animais/luciano-cunha</a> e <a href="http://www.anda.jor.br/category/colunistas/questionando-o-obvio">www.anda.jor.br/category/colunistas/questionando-o-obvio</a> </div>
<div>
<br /></div>
Luciano Carlos Cunhahttp://www.blogger.com/profile/11543323145219198300noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-1743587667987089964.post-24416449554648496102011-01-26T16:25:00.000-08:002011-01-26T16:25:51.715-08:00Dois trabalhos meus disponíveis no blog de Oscar HortaOlá a todos!<br />
<br />
Meu amigo, o filósofo Oscar Horta, publicou em seu blog dois trabalhos meus em formato pdf. Para quem tiver interesse, abaixo estão os links:<br />
<br />
1) Minha dissertação de mestrado, intitulada <a href="http://masalladelaespecie.files.wordpress.com/2011/01/luciano-carlos-cunha-consequencialismo-dentologia.pdf">O consequencialismo e a deontologia na ética animal: uma análise crítica comparativa das perspectivas de Peter Singer, Steve Sapontzis, Tom Regan e Gary Francione. </a><br />
<br />
2) Meu artigo intitulado <a href="http://masalladelaespecie.files.wordpress.com/2011/01/luciano-carlos-cunha-sobre-danos-naturais.pdf">Sobre danos naturais</a>, onde aponto problemas com os argumentos comumente endereçados contra a idéia de que temos o dever de minimizar os danos que animais silvestres sofrem não por ações humanas, mas pelas próprias forças da natureza (predação, inanição, parasitismo, doenças, etc.).<br />
<br />
O blog do Oscar também traz outras discussões muito importantes. Dentre elas, destaco inicialmente essas duas entradas:<br />
<br />
<a href="http://masalladelaespecie.wordpress.com/2010/04/20/el-igualitarismo-y-los-animales-no-humanos-i/">http://masalladelaespecie.wordpress.com/2010/04/20/el-igualitarismo-y-los-animales-no-humanos-i/</a><br />
<br />
<a href="http://masalladelaespecie.wordpress.com/2010/04/30/el-igualitarismo-y-los-animales-no-humanos-ii">http://masalladelaespecie.wordpress.com/2010/04/30/el-igualitarismo-y-los-animales-no-humanos-ii</a>/<br />
<br />
É comum, dentro do movimento anti-especista, pensarmos que as únicas abordagens normativas possíveis ao problema sejam ou o utilitarismo (como o de Singer, por exemplo), ou uma teoria de direitos (como a de Regan ou Francione, por exemplo). Contudo, existem outras abordagens normativas que podem ter muito a contribuir em pontos problemáticos das duas anteriores. Nesses dois artigos, Oscar Horta nos dá uma introdução sobre o<i> igualitarismo</i>, em suas várias formas (normalmente tais formas são uma combinação entre o <i>princípio da igualdade</i>, o <i>princípio do prioritarismo</i> e o <i>princípio da utilidade</i>) e como lidariam com as questões éticas envolvendo animais não-humanos. <br />
<br />
Vale a pena conferir!<br />
<br />
Abraços a todos!Luciano Carlos Cunhahttp://www.blogger.com/profile/11543323145219198300noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-1743587667987089964.post-84587751090698543362010-08-18T19:58:00.000-07:002011-03-23T18:47:23.230-07:00Links para textos essenciais!<div style="text-align: justify;">Uma das discussões centrais da ética contemporânea é sobre a consideração moral dos animais não-humanos. Animais não-humanos devem ser considerados moralmente? Se sim, a vida deles vale tanto quanto a de um ser humano? Devemos então parar de comê-los? Devemos então parar de fazer experimentos neles? Devemos parar de usá-los para nos servir, seja lá em qual área for? </div><br />
Segundo entendo os argumentos endereçados por ambos os lados da questão, todas as respostas para essas perguntas é "sim". Mas, que tal dar uma olhada nos argumentos com os próprios olhos, a partir de textos de filósofos que iniciaram a discussão?<br />
<br />
Textos clássicos introdutórios sobre ética animal: <br />
<br />
A Significância do Sofrimento Animal (Peter Singer):<br />
<br />
<a href="javascript:void(0);" onclick="_linkInterstitial('http://www.pensataanimal.net/artigos/34-\74wbr\76petersinger/47-a-significancia-do-sofrim\74wbr\76ento'); return false;" target="_blank">http://www.olharanimal.net/capa/1034-petersinger/1047-a-significancia-do-sofrimento</a><br />
<br />
O Caso dos Direitos Animais (Tom Regan):<br />
<br />
<a href="javascript:void(0);" onclick="_linkInterstitial('http://www.pensataanimal.net/artigos/58-\74wbr\76tomregan/71-o-caso-dos-direitos-animais'); return false;" target="_blank">http://www.olharanimal.net/capa/1058-tomregan/1071-o-caso-dos-direitos-animais</a><br />
______________________________________________________________<br />
<br />
<br />
<div style="text-align: justify;">Uma pergunta que sempre surge é: "se levarmos os interesses dos animais a sério, deveríamos impedir os danos que eles sofrem e que não são causados por nós? Por exemplo, na natureza há predação, inanição, parasitismo, doenças, morte por queimadura, frio, etc. Deveríamos tentar minimizar esses males?</div><div style="text-align: justify;"><br />
</div><div style="text-align: justify;">A maioria dos filósofos da ética animal (e a maioria das pessoas, incluindo a maioria dos defensores dos animais) endereça alguns argumentos para dizer que não temos esse dever. É aí que minha posição se distancia da posição dessas pessoas, porque, em meu entender, nenhum dos argumentos realmente procede. Uma análise desses argumentos eu fiz aqui: http://lucianoccunha.blogspot.com/2010/08/sobre-danos-naturais.html</div><br />
E agora, que tal dar uma olhada no que outros filósofos, que também defendem que temos esse dever, tem a dizer sobre a questão? Abaixo, coloquei alguns links com textos sobre o assunto.<br />
<br />
Antes de entrarmos no debate ético sobre a questão, é importante ter em mente como é realmente a vida dos animais no mundo natural. Infelizmente, tal vida não é o paraíso que gostamos de imaginar - pelo contrário. Portanto, abaixo estão alguns links de textos que descrevem a vida natural:<br />
<br />
<a href="http://www.blogger.com/goog_1631363856"><span style="font-size: small;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif";">DAWRST, Allan. </span><span lang="EN-US" style="font-family: "Times New Roman","serif";">How Many Animals are There? Disponível em http://www.utilitarian-essays.com/number-of-wild-animals.html</span></span></a><br />
<a href="http://www.blogger.com/goog_1631363856"><span style="font-size: small;"><br />
</span></a><br />
<a href="http://www.blogger.com/goog_1631363856"><span style="font-size: small;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif";">DAWRST, Allan. </span><span lang="EN-US" style="font-family: "Times New Roman","serif";">The Predominance of Wild-Animal Suffering over Happiness: An Open Problem. </span><span style="font-family: "Times New Roman","serif";">Disponível em http://www.utilitarian-essays.com/wild-animals.pdf</span></span></a><br />
<a href="http://www.blogger.com/goog_1631363856"><br />
</a><br />
<span style="font-size: small;"><span lang="EN-US" style="font-family: "Times New Roman","serif";">DAWRST, Allan The Importance of Wild-Animal Suffering. </span><span style="font-family: "Times New Roman","serif";">Disponível em <a href="http://www.blogger.com/goog_1631363865"><span style="color: black;"><span style="color: black; text-decoration: none;">http://www.utilitarian-essays.com/suffering-nature.html</span></span></a></span></span><a href="http://www.utilitarian-essays.com/suffering-nature.html%20"><span style="font-size: small;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif";"> </span></span></a><br />
<br />
<div style="text-align: justify;">«A quantidade total de sofrimento por ano no mundo natural está para lá de toda a contemplação decente. Durante o minuto que me leva a compor esta frase, milhares de animais são comidos vivos, outros correm pelas suas vidas, a gemer de medo, outros são lentamente devorados por dentro por parasitas vorazes, milhares de todos os tipos morrem de fome, sede e doença". (Richard Dawkins).</div><div style="text-align: justify;"><br />
</div><div style="text-align: justify;">Tendo em mente já os fatos sobre o mundo natural, que tal entrar agora no debate ético sobre a questão?</div><div style="text-align: justify;">Abaixo estão alguns excelentes artigos que podemos encontrar na internet sobre o tema:</div><div style="text-align: justify;"><br />
Textos sobre intervenção na natureza e minimização do sofrimento:</div><br />
<br />
Salvando o Coelho da Raposa (Steve F. Sapontzis):<br />
<br />
<a href="http://www.pensataanimal.net/artigos/145-steve-f-sapontzis/358-salvando-o-coelho-da-raposa-1">http://www.olharanimal.net/capa/1145-steve-f-sapontzis/1358-salvando-o-coelho-da-raposa-1</a><br />
<br />
Contra o Apartheid das Espécies (Yves Bonnardel):<br />
<br />
<a href="javascript:void(0);" onclick="_linkInterstitial('http://www.pensataanimal.net/artigos/119\74wbr\76-yvesbonnardel/121-contra-o-apartheid'); return false;" target="_blank">http://www.olharanimal.net/capa/1119-yvesbonnardel/1121-contra-o-apartheid</a><br />
<br />
Disvalue in Nature and Intervention (Oscar Horta):<br />
<br />
<a href="javascript:void(0);" onclick="_linkInterstitial('http://www.pensataanimal.net/painel/138-\74wbr\76devemos-intervir-na-predacao/350-oscar-h\74wbr\76orta'); return false;" target="_blank">http://www.olharanimal.net/pensata-painel/1138-devemos-intervir-na-predacao/1350-oscar-horta</a><br />
<br />
<div style="text-align: justify;">"Quando nossos interesses, ou os interesses daqueles que nos importamos serão danados, não reconhecemos uma obrigação moral de 'deixar a natureza seguir o seu curso', mas, quando não queremos ser importunados com uma obrigação, 'esse é o jeito que o mundo funciona' provê uma boa desculpa" (Steve Sapontzis)<br />
<br />
"Tivesse sido a 'Mãe Natureza' uma mãe real, ela estaria na cadeia por abuso infantil e assassinato" (Nick Bostrom) </div><div style="text-align: justify;"><br />
</div><div style="text-align: justify;"></div><div style="text-align: justify;"></div>Já o texto abaixo é para termos uma melhor compreensão do que nos ensina a teoria proposta por Darwin. É comum que muitas pessoas, inclusive algumas que afirmam aceitarem a teoria de Darwin, afirmarem que há, por trás dos processos naturais, uma inteligência guiando tais processos e uma meta nos mesmos. Nada poderia estar mais distante, e ser mais contrário, ao que Darwin quis mostrar com sua teoria. O artigo abaixo esclarece alguns desses equívocos:<br />
<br />
A Natureza não Escolhe (David Olivier):<br />
<br />
<a href="javascript:void(0);" onclick="_linkInterstitial('http://www.pensataanimal.net/artigos/136\74wbr\76-david-olivier/327-a-natureza-nao-escolh\74wbr\76e'); return false;" target="_blank">http://www.olharanimal.net/capa/1136-david-olivier/1327-a-natureza-nao-escolhe</a><br />
<br />
______________<br />
<div style="text-align: justify;"><br />
</div><div style="text-align: justify;">"Seja lá qual tiver sido o começo desse mundo, o final será glorioso e paradisíaco, para além do que nossa imaginação pode conceber" (Joseph Priestley)</div><div style="text-align: justify;"><br />
</div><div style="text-align: justify;">Já imaginou um mundo real (e não imaginário) onde não houvesse sofrimento algum, e a felicidade fosse tão extrema que fizesse parecer quase nada o maior pico de felicidade que alguém já sentiu até hoje? Imagine que, além disso, nós manteríamos (aumentaríamos, na verdade) nossa inteligência, criatividade artística e senso crítico? Imagine que, além disso, não apenas os humanos, mas todas as criaturas sencientes também viveriam em paz, sem nenhum sofrimento.</div><div style="text-align: justify;"><br />
</div><div style="text-align: justify;">Ficção? Não. Um filósofo inglês chamado David Pearce propõe exatamente isso, e argumenta que a construção de tal paraíso será tecnicamente possível num futuro não muito distante. O autor oferece razões também do porquê temos o dever de criar tal mundo. </div><div style="text-align: justify;"><br />
</div><div style="text-align: justify;">(Em tempo: David Pearce estará no Brasil em Novembro de 2010, discutindo sua proposta).</div><br />
Textos sobre transhumanismo e abolição do sofrimento:<br />
<br />
O Projecto Abolicionista (David Pearce):<br />
<br />
<a href="javascript:void(0);" onclick="_linkInterstitial('http://www.abolitionist.com/portuguese/i\74wbr\76ndex.html'); return false;" target="_blank">http://www.abolitionist.com/portuguese/i<wbr></wbr>ndex.html</a><br />
<br />
Reprogramar os Predadores (David Pearce):<br />
<br />
<a href="javascript:void(0);" onclick="_linkInterstitial('http://www.abolitionist.com/reprogrammin\74wbr\76g/portugues/index.html'); return false;" target="_blank">http://www.abolitionist.com/reprogrammin<wbr></wbr>g/portugues/index.html</a><br />
<br />
Neurociência Utopista (David Pearce):<br />
<br />
<a href="javascript:void(0);" onclick="_linkInterstitial('http://www.superhappiness.com/portugues/\74wbr\76index.html'); return false;" target="_blank">http://www.superhappiness.com/portugues/<wbr></wbr>index.html</a><br />
<br />
Entrevista com Nick Bostrom e David Pearce:<br />
<br />
<a href="javascript:void(0);" onclick="_linkInterstitial('http://www.hedweb.com/transhumanism/port\74wbr\76ugues.html'); return false;" target="_blank">http://www.hedweb.com/transhumanism/port<wbr></wbr>ugues.html</a><br />
<br />
<br />
<br />
___________<br />
<div style="text-align: justify;">"Não há argumentos biológicos, físicos, matemáticos ou históricos contra a filosofia. Qualquer argumento contra a filosofia teria de ser filosófico. Portanto, para rejeitar a filosofia temos de filosofar. O que demonstra que a filosofia é inevitável. Argumentar contra a filosofia é como gritar "Não estou a gritar!" (Desidério Murcho)</div><div style="text-align: justify;"><br />
</div><div style="text-align: justify;">Infelizmente, vivemos em um mundo onde o pensamento crítico é algo raro. A maioria das pessoas sustenta com uma convicção gritante a idéia de que disputas sobre determinados assuntos como "o que é o certo/errado?", "o que é possível conhecermos?", "temos livre arbítrio ou somos determinados?", "O que sou eu?" não passam de meras questões de opinião pessoal. Talvez essas pessoas nunca tenham examinado mais de perto e com rigor metodológico essas crenças, e infelizmente continuam a pensar que a filosofia não passa de devaneios. Portanto, pra desfazer tais equívocos, deixo abaixo os links de dois textos ótimos, de autoria do filósofo Desidério Murcho, que esclarecem muito sobre o que é a filosofia e como o pensamento crítico pode desfazer alguns equívocos graves que costumamos sustentar:</div><br />
<br />
ótimas introduções sobre filosofia em geral, argumentação e pensamento crítico:<br />
<br />
A Inevitabilidade da Filosofia (Desidério Murcho):<br />
<br />
<a href="javascript:void(0);" onclick="_linkInterstitial('http://criticanarede.com/html/inevitavel\74wbr\76.html'); return false;" target="_blank">http://criticanarede.com/html/inevitavel<wbr></wbr>.html</a><br />
<br />
Zen e a Arte de Manutenção da Filosofia (Desidério Murcho):<br />
<br />
<a href="javascript:void(0);" onclick="_linkInterstitial('http://criticanarede.com/zen.html'); return false;" target="_blank">http://criticanarede.com/zen.html</a>Luciano Carlos Cunhahttp://www.blogger.com/profile/11543323145219198300noreply@blogger.com3tag:blogger.com,1999:blog-1743587667987089964.post-83657057066600207582010-08-18T19:23:00.001-07:002010-08-18T19:23:10.004-07:00Raciocínio Ético: Conteúdos (parte 7)<meta content="text/html; charset=utf-8" http-equiv="Content-Type"></meta><meta content="Word.Document" name="ProgId"></meta><meta content="Microsoft Word 12" name="Generator"></meta><meta content="Microsoft Word 12" name="Originator"></meta><link href="file:///C:%5CDOCUME%7E1%5CXP-PC%5CCONFIG%7E1%5CTemp%5Cmsohtmlclip1%5C01%5Cclip_filelist.xml" rel="File-List"></link><link href="file:///C:%5CDOCUME%7E1%5CXP-PC%5CCONFIG%7E1%5CTemp%5Cmsohtmlclip1%5C01%5Cclip_themedata.thmx" rel="themeData"></link><link href="file:///C:%5CDOCUME%7E1%5CXP-PC%5CCONFIG%7E1%5CTemp%5Cmsohtmlclip1%5C01%5Cclip_colorschememapping.xml" rel="colorSchemeMapping"></link> <m:smallfrac m:val="off"> <m:dispdef> <m:lmargin m:val="0"> <m:rmargin m:val="0"> <m:defjc m:val="centerGroup"> <m:wrapindent m:val="1440"> <m:intlim m:val="subSup"> <m:narylim m:val="undOvr"> </m:narylim></m:intlim> </m:wrapindent><style>
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<div align="center" class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: center;"><b><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt;">PARTE 7 - SOBRE O RACIOCÍNIO ÉTICO: OS CONTEÚDOS<o:p></o:p></span></b></div><div class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><br />
</div><div align="right" class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: right;"><b><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt;">Luciano Carlos Cunha<o:p></o:p></span></b></div><div class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt;">Dando continuidade à lista de metas válidas para a ética que delimitam, umas, os excessos de outras:<o:p></o:p></span></div><div class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><b><i><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt;">6) Preocupação com os meios</span></i></b><b><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt;">: </span></b><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt;">Como vimos, muitas das metas da ética passam nos testes formais. Contudo, na busca dessas metas, os meios utilizados podem não necessariamente estarem de acordo com esses testes formais. Assim, diminuir o sofrimento é uma meta louvável, mas fazer isso através de causar dano a outros indivíduos não é. Assim, é sempre preferível buscar aliviar sofrimento sem causar danos a ninguém. <o:p></o:p></span></div><div class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt;">Contudo, aqui os filósofos também discordam sobre se essa regra deve ser absoluta e sobre quando é legítimo quebrá-la. Por exemplo, defensores dos direitos dirão que é sempre errado aliviar um sofrimento grande em muitos indivíduos causando um dano (seja lá qual o tamanho do dano) a poucos indivíduos. Por exemplo, parece óbvio que é errado matar um indivíduo para salvar outros. Outros filósofos, mais consequencialistas, dirão que a preocupação imparcial exige que os danos sejam quantificados. Por exemplo, não é tão óbvio que seria errado causar um dano <i>pequeno</i> a poucos (ou mesmo muitos) indivíduos com vistas a aliviar um sofrimento <i>muito maior</i> em muitos outros. <o:p></o:p></span></div><div class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt;">Um exemplo fictício pode ajudar a clarear as coisas aqui: supondo que fosse descoberto que a cura do câncer estaria num remédio feito com cabelos. Para tal, seria preciso toneladas de cabelo, de tal forma que a única maneira disponível fosse obrigar as pessoas a doarem seus cabelos. Os filósofos consequencialistas apontariam, penso eu, que ficar careca é um dano menor do que morrer de câncer, portanto, teríamos obrigação de doar o cabelo – do contrário estaríamos sendo egoístas. Por outro lado, poderia-se objetar que, se o necessário fosse doar uma perna ou um braço talvez a resposta não fosse tão óbvia. Novamente, o que esse exemplo ilustra é que as discordâncias surgem nem tanto com relação a metas totalmente divergentes, mas sobre onde traçar a linha do dano admissível.<o:p></o:p></span></div><div class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><b><i><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt;">7) Direitos</span></i></b><b><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt;">:</span></b><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt;"> Como vimos, alguns filósofos defendem que certas coisas jamais deveriam ser feitas, de tão ruins que são, mesmo que com isso a conseqüência não traga a maior felicidade nem traga o maior alívio de sofrimento possível para todos os atingidos. Os teóricos dos direitos defendem que certos interesses deveriam ter uma proteção especial, de tão importantes que são, e que não podem ser sacrificados apenas porque isso diminuiria muito sofrimento de muitos inocentes - como o <i>direito à vida</i> e à <i>integridade física</i>. Os teóricos utilitaristas, ao contrário do que comumente se coloca, não precisam rejeitar por completo a idéia de direitos, pois, pode ser que a maior felicidade/diminuição de sofrimento seja alcançada, <i>em longo prazo</i>, se certas coisas que, aparentemente trariam maior felicidade em curto prazo, forem proibidas. Por exemplo, manter a idéia de um direito à vida pode incentivar os cientistas a buscarem novas formas de curarem doenças sem que tenham de matar ninguém para chegar nisso. <o:p></o:p></span></div><div class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt;">Nessa mesma linha, alguns defendem que temos direito também a outras coisas, como em terem cumpridas as promessas que nos foram feitas ou em receber a verdade. Por exemplo, supondo que conheçamos um caso de alguém que diz amar a esposa, mas, na verdade, está apenas a usando para conseguir dinheiro. Pode ser que sua esposa fosse mais feliz se nunca soubesse que aquele que ela ama e diz corresponder esse sentimento, na verdade, está mentindo. Contudo, alguns teóricos dos direitos diriam que tal pessoa tem o direito moral de saber a verdade, mesmo que isso a faça sofrer muito. Vale lembrar aqui que os utilitaristas diriam que, se realmente estamos preocupados com ela, e sabemos que dizer a verdade poderia até matá-la ou deixá-la louca, então seria melhor não dizer a verdade. Mais uma vez, aqui, a discussão parece depender da quantidade de dano tolerada por se dizer a verdade.<o:p></o:p></span></div><div class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><i><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt;">Direitos morais e direitos legais: </span></i><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt;">Até agora falamos de <i>direitos morais</i> (direitos que existem independentemente de leis). Pode ser que determinados direitos morais não estejam positivados na forma de lei, e que determinadas leis não sejam direitos morais (ou não sejam nem éticas). Contudo, pode ser que direitos morais sejam utilizados como justificativa para a criação de direitos legais. Por exemplo, poderíamos dizer que, se é válida uma idéia como o direito moral à vida de todos os pacientes de uma decisão, então são esses pacientes que portam esses direitos; e os portam independentemente do que pensam os outros agentes. Assim, se conclui que é legítimo existir uma lei obrigando todos os agentes a cumprirem tal direito, pois seria violar a imparcialidade se déssemos mais peso ao interesse do agente em violar tal direito (ou, ao nosso interesse em não obrigar os outros a cumprir os princípios éticos) do que à proteção do interesse que é base para a existência de tal direito. Assim, por exemplo, não faz sentido dizer que “reconheço que animais não-humanos tem direitos morais, mas sou contra existir uma lei que obrigue as pessoas a pararem de comê-los <i>porque é sempre errado impedir os humanos de realizarem suas preferências</i>”. Se é dito isso, não se reconhece os direitos morais, nem se está sendo imparcial (pois dá mais peso ao interesse injustificável dos humanos). <o:p></o:p></span></div><div class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><b><i><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt;">8) Justiça</span></i></b><b><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt;">:</span></b><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt;"> Como vimos anteriormente, essa meta diz respeito a <i>eqüidade</i>, e está no cerne da ética, pois pode ser derivada diretamente da exigência de imparcialidade. O fomento da justiça pode ser dividido em: (a) <i>Distributiva</i>: quando há certa quantidade de benefícios (ou danos) a serem distribuídos. Pode parecer estranho a justiça mandar distribuir danos, mas é que existem algumas decisões onde todas as opções disponíveis inevitavelmente danam alguém. (b) <i>Retributiva</i>: onde a preocupação com a justiça dependerá do merecimento dos que serão atingidos pela decisão. Daí vem a idéia de, por exemplo, recompensar alguém que fez algum bem para além do que era devido, e punir com o impedimento da liberdade corporal (prender) alguém que, com seu movimento, causa danos a outros. (c) <i>Restitutiva</i>: quando trata de restabelecer benefícios que foram perdidos. Essa última vertente é similar ao princípio da restituição de beneficência, com a diferença que a preocupação maior aqui é com como fazer isso eqüitativamente.<o:p></o:p></span></div><div class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><b><i><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt;">9) Relação x imparcialidade</span></i></b><b><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt;">: </span></b><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt;">A maioria dos pensadores da ética concorda que devemos ter uma preocupação com a <i>imparcialidade</i>, mas concorda também que as <i>relações especiais </i>(por exemplo, familiares e de amizade) são coisas muito importantes na vida. O que discordam é o quanto de peso deve ter cada preocupação. Do lado das relações pessoais, pode-se apontar que aquele que tem uma preocupação excessiva em tratar por igual todos indivíduos afetados pela sua decisão, e que por isso deixa de se dedicar para sua família ou amigos, não está agindo bem – como apontam algumas feministas da <i>ética do cuidado</i>. Contudo, do lado da imparcialidade, podemos dizer também que aquele que favorece alguém, em um concurso público, só porque é seu parente, comete uma injustiça. Ainda, do lado da imparcialidade, muitos pensadores apontariam que aquele que compra coisas para os familiares além do que necessitam ou dedica tempo demais para si ou para os que mantém uma relação especial, enquanto poderia ajudar indivíduos que morrem de fome com tal tempo e tal dinheiro, também não age bem - como diriam os <i>utilitaristas</i>. A grande pergunta é então buscar um meio termo, sobre o quanto se dedicar às relações pessoais e o quanto se dedicar à imparcialidade.<o:p></o:p></span></div><div class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><b><i><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt;">10)Altruísmo x preocupação consigo</span></i></b><b><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt;">: </span></b><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt;">Vimos que, no cerne da ética, está o bem do outro, haja visto que o egoísmo trata interesses semelhantes com consideração diferenciada, por isso não pode estar correto. Contudo, uma preocupação legítima é “o quanto devo me dedicar para os outros?”. Aqui também, uma resposta exata é sempre difícil de ser dada, mas podemos traçar alguns extremos. Se alguém se dedica tanto para os outros a ponto de causar mais dano a si mesmo do que beneficiar os outros, está fazendo algo que está para além do seu dever (sendo, portanto, um ato heróico, supererrogatório). Por outro lado, aquele que se nega a pedir socorro aos bombeiros enquanto vê uma casa em chamas também está exagerando ao extremo sua falta de preocupação com os outros. Os filósofos utilitaristas têm, ao longo das décadas, sustentado a tese de que o padrão geral atual da maioria das pessoas é demasiadamente preocupado consigo mesmo, pois nos damos ao luxo de gastarmos muito com coisas das quais não necessitamos realmente ou gastarmos tempo demais com a preocupação conosco quando existem indivíduos que estão em situação de miséria absoluta e sofrimento absoluto das quais poderíamos, com pouco custo, diminuir drasticamente.<o:p></o:p></span></div><div class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><b><i><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt;">11) Fomento de sentimentos morais (compaixão, bondade, etc.). </span></i></b><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt;">Essa categoria não é exatamente um conteúdo para a moralidade, mas sim, virtudes que podem facilitar o cumprimento dos conteúdos do que a ética prescreve. Alguém que conhece racionalmente os conteúdos da moralidade, mas não possui tais sentimentos, pode ter maior dificuldade em realizar tais conteúdos, embora, alguém que consiga realizar tais conteúdos sem ter tais sentimentos possua uma força moral maior ainda. Pode acontecer também que um sentimento vá contra o que o raciocínio aparentemente prescreve fazer. Pode ser que o sentimento seja um preconceito, mas pode ser que o sentimento revele, no final da análise minuciosa racional, que era o raciocínio anterior que estava movido por preconceitos. <o:p></o:p></span></div><div class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><b><i><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt;">12) Fomentar o uso do raciocínio ético.</span></i></b><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt;"> Como vimos acima, o raciocínio crítico é essencial para compreendermos o que a ética prescreve e para não cairmos em preconceitos, falácias, distorções, etc. Aqui, no entanto, o fomento do raciocínio aparece também como uma virtude, pois como o raciocínio ético está fundado na imparcialidade, e como nossos sentimentos dificilmente são imparciais (tendemos, por exemplo, a ter mais compaixão por determinados seres em detrimento de outros), o fomento do raciocínio pode denunciar que há problemas éticos graves onde o sentimento ainda não percebeu. Pode também mostrar que é possível causar mal a alguém mesmo que estejamos movidos pelos melhores sentimentos, o que deve ser um sinal de alerta.<o:p></o:p></span></div><div class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt;">Com a coluna de hoje terminamos a longa exposição sobre as características centrais de um raciocínio ético. Trabalhamos muitos conceitos e talvez alguns deles sejam um pouco complicados, então talvez ler novamente do início até aqui ajude a clarear as coisas e facilite o entendimento do que virá depois. Na próxima coluna daremos início à parte prática: analisaremos alguns argumentos comumente utilizados contra a idéia de igualdade para os animais não-humanos.<o:p></o:p></span></div><div class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt;">Até lá!<o:p></o:p></span></div><div class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><br />
</div><div class="MsoNormal"><br />
</div>Luciano Carlos Cunhahttp://www.blogger.com/profile/11543323145219198300noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-1743587667987089964.post-3289648713574891232010-08-18T19:21:00.001-07:002010-08-18T19:21:55.525-07:00Raciocínio Ético: Conteúdos (parte 6)<meta content="text/html; charset=utf-8" http-equiv="Content-Type"></meta><meta content="Word.Document" name="ProgId"></meta><meta content="Microsoft Word 12" name="Generator"></meta><meta content="Microsoft Word 12" name="Originator"></meta><link href="file:///C:%5CDOCUME%7E1%5CXP-PC%5CCONFIG%7E1%5CTemp%5Cmsohtmlclip1%5C01%5Cclip_filelist.xml" rel="File-List"></link><link href="file:///C:%5CDOCUME%7E1%5CXP-PC%5CCONFIG%7E1%5CTemp%5Cmsohtmlclip1%5C01%5Cclip_themedata.thmx" rel="themeData"></link><link href="file:///C:%5CDOCUME%7E1%5CXP-PC%5CCONFIG%7E1%5CTemp%5Cmsohtmlclip1%5C01%5Cclip_colorschememapping.xml" rel="colorSchemeMapping"></link> <m:smallfrac m:val="off"> <m:dispdef> <m:lmargin m:val="0"> <m:rmargin m:val="0"> <m:defjc m:val="centerGroup"> <m:wrapindent m:val="1440"> <m:intlim m:val="subSup"> <m:narylim m:val="undOvr"> </m:narylim></m:intlim> </m:wrapindent><style>
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<h1 style="text-align: justify;">Sobre o raciocínio ético: os conteúdos (Parte 6)<o:p></o:p></h1><h4 id="data_" style="text-align: justify;">Luciano Carlos Cunha<o:p></o:p></h4><div style="text-align: justify;"><iframe frameborder="0" height="61" scrolling="no" src="http://api.tweetmeme.com/button.js?url=http%3A%2F%2Fwww.anda.jor.br%2F%3Fp%3D81663&source=ANDAnews&style=normal&service=TinyURL.com" width="50"></iframe> Na coluna anterior, após termos concluído que o benefício/malefício sobre os atingidos pelas nossas decisões deve ser o ponto central do raciocínio ético, preparamos terreno para investigar a possibilidade da existência de outros conteúdos válidos para a ética.</div><div style="text-align: justify;"><br />
</div><div style="text-align: justify;">Abaixo, encontra-se uma lista de conteúdos que serão utilizados ao longo dessa análise. Estes, em meu entender, passam nos testes formais e são metas válidas para a moralidade (ainda que nenhum deles seja absoluto). E não são absolutos justamente porque um tipo de preocupação pode limitar os excessos de outra. Assim, nos comentários abaixo citarei algumas críticas quanto a essas metas, mas isso não significa que devamos descartá-las; significa apenas que essas críticas apontam os excessos que devem ser evitados na busca de tais metas. </div><div style="text-align: justify;"><br />
</div><div style="text-align: justify;">Vale lembrar que todos esses conteúdos precisam ser universalizados, ou seja, se alguém adota, por exemplo, o conteúdo do fomento da liberdade como meta da ética, só entra aquela liberdade que é conseguida sem impedir a liberdadede outros indivíduos, e, essa liberdade dos outros indivíduos deve seguir o mesmo critério. Se a meta é a autonomia, não pode violar outras escolhas autônomas universalizáveis; se a meta é a felicidade, não pode violar outras satisfações da felicidade que também são universalizáveis, etc. Seguem-se exemplos disso abaixo:</div><div style="text-align: justify;"><br />
</div><div style="text-align: justify;"><b>1) Satisfação/felicidade. </b>A maioria dos filósofos não usa esses termos como sinônimos. Por falta de espaço, aqui, no entanto, serão utilizados assim. Tal preocupação pode ser dividida, de acordo com o que o agente terá de decidir, da seguinte maneira: (a) <i>Não-maleficência: </i>todos aqueles atos que visam não causar mal aos atingidos. Esse princípios diz respeito a algumas coisas que os agentes devem deixar de fazer (omissão), a fim de evitar causar danos. Os danos podem vir na forma de uma inflição de algo ruim, ou de uma privação de algo bom, sendo que na privação, não necessariamente há percepção do dano por parte do indivíduo prejudicado (como, por exemplo, quando alguém é assassinado enquanto está inconsciente). (b) <i>Beneficência: </i>envolve produzir um benefício, o que geralmente vêm com uma ação (mas também pode acontecer por parte de omissões). Pode ser dividida em: (b1) <i>curar um dano já existente </i>(b2)<i> prevenir que novos danos aconteçam; </i>(b3) <i>restaurar um benefício que foi perdido; </i>(b4)<i> aumentar benefícios a partir do nível que estão.</i></div><div style="text-align: justify;"><br />
</div><div style="text-align: justify;">Como vimos, a preocupação com a satisfação pode indicar limites em várias outras preocupações: (a) pode mostrar que seguir uma regra que cumpre os critérios formais causará mais danos do que benefício, em determinados casos, como vimos com o exemplo da regra “jamais tirar uma vida humana”; (b) pode mostrar que uma preocupação excessiva em fomentar a liberdade corporal pode trazer mais danos do que benefícios, caso outros interesses importantes não estejam sendo satisfeitos. Por exemplo, não é exatamente verdade que todos os casos de animais domesticados estariam melhor na rua, por estarem livres – a satisfação de outros interesses como viver livre de sofrimento, fome, frio, doenças, etc. poderiam estar em falta. (c) Pode mostrar que uma preocupação excessiva com satisfazer preferências pode danar estes mesmos indivíduos. Por exemplo, uma criança pode preferir brincar em um lugar onde poderá ser atropelada; (d) Uma preocupação excessiva com que “a justiça seja feita, sejá lá quais forem os custos” pode gerar conflitos futuros intermináveis, ainda piores; (e) Atos danosos podem vir de boas motivações (“de boas intenções, o inferno está cheio”) e alguns atos, mesmo com motivações ruins, podem causar benefícios. Contudo, um proponente do critério da satisfação reconheceria aqui que decisões movidas por motivações boas têm chances muito maiores de terminarem em boas conseqüências; (e) Uma preocupação excessiva com dizer a verdade pode ser a ruína do recebedor da verdade, como, por exemplo, quando contamos a alguém que está muito doente e isso afeta de tal modo seu estado psicológico que o impede de se recuperar.</div><div style="text-align: justify;"><br />
</div><div style="text-align: justify;"><b>2) Preferências:</b> Pode ser extremamente difícil, em muitos casos, determinar o que vai fazer alguém feliz, ou o que vai aliviar seu sofrimento. Com base nisso, alguns filósofos sugerem que devemos perguntar a tal indivíduo o que ele prefere, independentemente de sabermos se isso será o melhor para ele a longo prazo ou não. Embora ajude em muitos casos, um problema com essa visão é que certamente certas preferências que dão satisfação a curto prazo causam sofrimento a longo prazo – como, por exemplo, fumar. Alguns autores, que vêem a satisfação de preferências como algo bom em si mesmo, dirão que é melhor permitir à pessoa satisfazer seu desejo por fumar, mesmo que isso venha lhe causar câncer. Outros, que vêem a satisfação de preferências como um caminho para garantir a felicidade, teriam de admitir que fomentar a preferência nesse caso não é caminho para fomentar a felicidade a longo prazo, ou, até mesmo, para fomentar outras preferências. Outro limite dessa visão é que existem indivíduos que sabemos que possuem preferências (crianças muito pequenas, animais não-humanos) mas não podem, em muitos casos, nos comunicá-las. Pode acontecer ainda, que eles nos comuniquem, mas certamente satisfazer tal preferência irá daná-los. Por exemplo, um cão que pede para ir brincar na rua, quando sabemos que certamente será atropelado. </div><div style="text-align: justify;"><br />
</div><div style="text-align: justify;"><b>3) Autonomia:</b> Com base nos problemas da <i>satisfação de preferências x satisfação da felicidade</i>, alguns filósofos sugerem o seguinte: com relação a indivíduos que possuem capacidade para compreender e julgar as conseqüências de suas escolhas (possuem autonomia), devemos respeitar suas escolhas, mesmo que isso venha a lhes causar sofrimentos futuros; já indivíduos que estão destituídos de autonomia (temporariamente ou permanentemente), devemos adotar uma posição mais paternalista e buscar sua felicidade (o que, às vezes, irá nos colocar contra a sua satisfação de preferências quanto ao momento presente). Uma forte crítica a essa visão diz respeito à dificuldade de saber se alguém, mesmo sendo um humano adulto, compreende as conseqüências de suas escolhas e os possíveis danos envolvidos. Outra crítica diz respeito a algumas visões restringirem a moralidade ao respeito pela autonomia. Sabemos que alguém ter liberdade para fazer escolhas autônomas não é o bastante para alguém se sentir razoavelmente bem, pois todas as escolhas disponíveis podem ser muito ruins. Assim, muitos filósofos defendem que, além de respeitarmos a autonomia, teríamos deveres de, por exemplo, beneficência, ou seja, ajudar outros indivíduos. A autonomia, em alguns autores, aparece como sendo boa em si mesma (mesmo que não traga felicidade) ou como derivada da felicidade (“as pessoas se sentem melhor quando suas escolhas autônomas são respeitadas”).</div><div style="text-align: justify;"><br />
</div><div style="text-align: justify;"><b>4) Liberdade corporal.</b> A liberdade corporal é vista, em alguns pensadores, como boa em si mesma; em outros, como condição para o fomento da felicidade. Os do primeiro tipo podem apontar que mesmo que, por exemplo, um animal não-humano seja extremamente feliz sendo cuidado por humanos, algo a que lhe é devido está faltando, que é viver solto, mesmo que isso for deixá-lo numa condição pior. Os do segundo tipo diriam que a liberdade corporal só é importante enquanto for condição necessária para a busca de satisfação e que, quando se torna um inferno (como pode ser o caso de um animal que viva livre mas não tenha o que comer, nem com quem se relacionar e esteja vulnerável a doenças ou predação), deixa de ser um bem. Como vimos, a do primeiro tipo entra em conflito direto com a exigência conseqüencial, por pretender ser independente de preferências, satisfação, felicidade, dos atingidos – portanto, deveria ser descartada.</div><div style="text-align: justify;"><br />
</div><div style="text-align: justify;"><b>5) Motivação correta.</b> Como falamos, é possível causar um mal, mesmo tendo uma boa intenção. Contudo, não é verdade que o valor moral de uma decisão reside todo nas suas consequências. Se assim o fosse, uma ação que visa uma preocupação consigo próprio, e que por acaso evita a morte de alguém, seria tão recomendável quanto uma que tem realmente a intenção de evitar a morte desse alguém. Podemos citar como exemplo o veganismo motivado pela preocupação com a saúde do próprio agente e o veganismo motivado por evitar a morte dos animais. A preocupação com a motivação correta também pode estar sendo vista ou como boa em si mesma ou como fundada nas conseqüências. No primeiro caso, uma decisão que começa com uma intenção ruim já é errada. No segundo, aponta-se que é mais fácil resultarem boas conseqüências de boas intenções. Contudo, os defensores dessa última posição têm de admitir também que, se de uma intenção ruim estiverem saindo boas conseqüências, e a outra opção com boa intenção tiver conseqüências não tão boas, então a <i>consequência boa</i> da <i>intenção ruim</i> é melhor.</div><div class="MsoNormal"><br />
</div>Luciano Carlos Cunhahttp://www.blogger.com/profile/11543323145219198300noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-1743587667987089964.post-69059540025419578062010-08-18T19:19:00.001-07:002010-08-18T19:19:42.876-07:00Raciocínio Ético: Conteúdos (parte 5)<meta content="text/html; charset=utf-8" http-equiv="Content-Type"></meta><meta content="Word.Document" name="ProgId"></meta><meta content="Microsoft Word 12" name="Generator"></meta><meta content="Microsoft Word 12" name="Originator"></meta><link href="file:///C:%5CDOCUME%7E1%5CXP-PC%5CCONFIG%7E1%5CTemp%5Cmsohtmlclip1%5C01%5Cclip_filelist.xml" rel="File-List"></link><link href="file:///C:%5CDOCUME%7E1%5CXP-PC%5CCONFIG%7E1%5CTemp%5Cmsohtmlclip1%5C01%5Cclip_themedata.thmx" rel="themeData"></link><link href="file:///C:%5CDOCUME%7E1%5CXP-PC%5CCONFIG%7E1%5CTemp%5Cmsohtmlclip1%5C01%5Cclip_colorschememapping.xml" rel="colorSchemeMapping"></link> <m:smallfrac m:val="off"> <m:dispdef> <m:lmargin m:val="0"> <m:rmargin m:val="0"> <m:defjc m:val="centerGroup"> <m:wrapindent m:val="1440"> <m:intlim m:val="subSup"> <m:narylim m:val="undOvr"> </m:narylim></m:intlim> </m:wrapindent><style>
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<h1 style="text-align: justify;">Sobre o raciocínio ético: os conteúdos (Parte 5)<o:p></o:p></h1><h4 id="data_" style="text-align: justify;">Luciano Carlos Cunha<o:p></o:p></h4><div style="text-align: justify;"><iframe frameborder="0" height="61" scrolling="no" src="http://api.tweetmeme.com/button.js?url=http%3A%2F%2Fwww.anda.jor.br%2F%3Fp%3D73279&source=ANDAnews&style=normal&service=TinyURL.com" width="50"></iframe> Na última coluna, vimos que temos, diante de nós, duas opções: ou adotamos a visão de que, além de levarmos em conta as exigências formais, devemos levar em conta também o bem dos atingidos pela decisão ou adotamos a visão de que devemos cumprir as exigências formais, sem nos preocuparmos com as consequências.<br />
<b><br />
<b>Defesa da exigência consequencial: </b></b>Peter Singer, em <i>The Expanding Circle</i>¹ oferece um argumento em defesa da preocupação com as consequências , observando em primeiro lugar que existem duas possibilidades do princípio formal absoluto (um que não leve em conta benefício/malefício sobre os atingidos) ser recomendado: ou ele está sendo recomendado como uma preferência pessoal (uma mera opinião pessoal de quem está falando), ou como tendo validade universal (algo que deveria ser válido para todos cumprirem). Todas as duas maneiras falham. Vejamos por que:</div><div style="text-align: justify;"><br />
</div><div style="text-align: justify;">(1) Se é uma preferência pessoal (“eu acho que a vida humana jamais deveria ser abreviada, mesmo quando a pessoa está suplicando para morrer há meses, porque me deixa mais satisfeito ver a vida humana preservada”), então lidamos adequadamente com ela pesando-a contra preferências contrárias, afinal de contas, ela é apenas uma opinião pessoal (não um argumento), que foca no interesse pessoal – não é um princípio ético. Com isso, vemos que não há por que dar mais peso à preferência desse alguém e não a qualquer outra preferência contrária, já que sua decisão irá atingir outros, não somente ele. A posição subjetiva acaba, ironicamente, na imparcialidade. Poderíamos dizer que, no exemplo acima sobre a eutanásia, embora devamos levar em conta a preferência de alguém por ver uma regra jamais ser violada, temos de levar em conta também a preferência daquele que vive tal vida e suplica por ela ser abreviada. Qual sofrimento é maior?</div><div style="text-align: justify;"><br />
</div><div style="text-align: justify;">(2) Se é uma recomendação em bases universais (que todos devem cumprir, independentemente do que achem ou prefiram) e não leva em conta se os afetados pela decisão vão ser atingidos maleficamente por ela, então precisa supor que existe uma esfera de fatos éticos no universo que prescreve o que devemos fazer, sendo esta uma esfera com total independência do que é melhor para os atingidos (independentemente de seus interesses, preferências, sofrimentos etc.). No dia a dia não pensamos assim. Consideramos errado, por exemplo, maltratar um cachorro porque ser maltratado é ruim para ele, e não devido a alguma intuição misteriosa que independe da consequência sobre ele. Na falta de provas a favor da existência da misteriosa esfera de fatos éticos independentes de consequências, devemos ficar com a explicação mais simples de que a ética visa trazer felicidade ou satisfazer preferências de uma maneira imparcial, universal, geral etc. – é o que nos diz o argumento de Singer.</div><div style="text-align: justify;"><br />
</div><div style="text-align: justify;"><b>Juntando as duas classes de exigências:</b> Concordar que a ética deve reconhecer como conteúdo uma preocupação com a satisfação/frustração dos atingidos pela decisão não nos compromete ao consequencialismo estrito (atingir as melhores consequências finais, seja lá por que meios forem), já que as outras exigências formais também estão sendo levadas em consideração. As exigências formais apresentam ainda a preocupação deontológica de fazer a coisa certa pelo motivo certo. Portanto, ao incorporarmos a exigência consequencial (causar benefício, evitar malefício) não significa que uma ação que causa benefício, mas, pelo motivo errado, seja ética. Por exemplo, ser vegano por motivos de saúde não demonstra uma preocupação ética, embora possa ter boas consequências. Por outro lado, com a adição da exigência consequencial, uma ação que é feita pela motivação correta, mas causa mais danos do que benefícios, não é ética (como diz o ditado, “de boas intenções o inferno está cheio”). O que diferentes pensadores discordarão nesse sentido é sobre o quanto de peso devem ter as consequências e sobre o quanto de peso devem ter outras considerações (por exemplo, a motivação do agente, os meios usados para chegar nas boas consequências etc.). É raro encontrarmos posições extremas, seja defendendo que apenas consequências contam, seja defendendo que apenas as outras considerações contam. Discordância entre as posições que dão peso às consequências também surgem: consequências sobre quem devem ser consideradas? – Todos os atingidos? Apenas os diretamente atingidos? O quanto considerar os desdobramentos de consequências? Apesar da discordância sobre o ponto exato onde traçar a linha, é possível delinear pontos extremos dos dois lados onde com certeza nenhum raciocínio ético bom pretende cair.<br />
<b><br />
<b>O ponto de vista do paciente da decisão: </b></b>Outra observação importante é que, se adicionamos a preocupação com o bem/mal que os afetados pela decisão podem sofrer, deixa de haver uma distinção rígida entre ação e omissão. Não cabe mais dizer que é errado eu prejudicar alguém, mas não tenho nada a ver com isso se o prejuízo for causado por outro alguém (supondo que eu poderia impedir esse prejuízo sem graves conseqüências para mim). Não cabe mais distinguir, por exemplo, se um ato é matar ou deixar morrer, mas sim, ver se o resultado final (morte) é benéfico ou maléfico para aquele que morre, quer por minha ação, quer por minha omissão. Como vimos, também não cabe mais distinguir entre males causados por minha ação ou pela ação de pacientes morais (forças naturais, animais não humanos, crianças etc.) porque se eu tenho condições de intervir num resultado maléfico e me omito, a decisão a favor do estado maléfico também é minha embora não tenha origem na minha ação (teve continuidade na minha omissão). Juntando todas essas exigências, vemos que, na ética, é o ponto de vista do paciente da decisão (que pode incluir também aquele que decide, caso seja atingido pela decisão) que é o centro de toda a questão – por exemplo, para um animal que vai ser morto, tanto faz se ele vai ser morto por mim, por outro humano, por outro animal, ou por um raio ou vulcão.</div><div style="text-align: justify;"><br />
</div><div style="text-align: justify;">Supondo, por exemplo, que temos de escolher entre permitir um animal viver livre na selva com uma existência curta e extremamente infeliz (doenças, estar sujeito à predação, inanição etc.) ou permitir-lhe viver em contato com humanos (mas não sendo escravizado; inclusive ganhando suprimento de suas necessidades físicas e psicológicas) com uma existência longa (morrer de velhice) e feliz. Se alguém defende que é melhor a primeira opção, não está adotando o que o animal provavelmente escolheria caso pudesse escolher e tivesse compreensão das informações relevantes; está apenas fomentando um ideal (no caso, o da liberdade corporal) que é dele (de quem decide), mas não necessariamente do paciente da decisão. Assim, as exigências que acabamos de ver tiram todas as nossas ilusões e tornam muito claro para nós se estamos tomando alguma decisão baseada no fingimento (por exemplo, diferenciar ação e omissão quando elas não são relevantes, já que as consequências são iguais). <br />
<b><br />
<b>Paralelos com exigências formais: </b></b>Adotar o ponto de vista do paciente da decisão também explica por que o princípio, para ser ético, deve prescrever a mesma decisão independentemente do agente que a toma (que também é uma exigência formal): do ponto de vista do paciente, o malefício/benefício que lhe recai sobre independe de quem o realiza/permite realizar. Outra exigência formal diz que as decisões são um dever, certas ou erradas independentemente do que quem decide gostaria que fosse. Com a adição do ponto de vista do paciente da decisão, vemos também que a decisão que lhe afeta independe de se quem decide gosta ou não dele, sente ou não compaixão por ele etc. Com a adição das exigências consequenciais, vemos que alguém pode ter bons sentimentos por outro indivíduo (amor, compaixão etc.) e ainda assim causar um mal a esse indivíduo, caso não faça a ação correta. O outro lado também é verdade: alguém pode não sentir absolutamente nada por quem será atingido pela decisão, e ainda assim beneficiá-lo, caso reconheça que é um dever fazê-lo. É claro, também pode acontecer que sentimentos (amor, compaixão etc.) proporcionem uma abertura ao indivíduo compreender melhor o ponto de vista dos pacientes de suas decisões, assim como pode acontecer que um indivíduo cumpra uma regra que julga ser um dever ético, mas não percebe que está errando justamente por não saber se colocar no lugar dos pacientes da decisão.</div><div style="text-align: justify;"><br />
</div><div style="text-align: justify;"><b>Corrigir desigualdade:</b> Por fim, podemos derivar, de todas essas exigências tomadas juntas, uma final, que é a ética se basear na equidade, ou seja, em corrigir as desigualdades. Assim, quando tomamos uma decisão, não devemos ver simplesmente o quanto ela afeta cada indivíduo atingido por ela, mas em que situação esses indivíduos estavam antes e continuarão depois da decisão. Por exemplo, se temos que distribuir, para cinco indivíduos, cinco quilos de comida, uma distribuição igual diria para dar um quilo para cada um. Contudo, se vemos que quatro desses indivíduos já possuem comida em abundância e um deles está lutando para sobreviver com muito pouca, então a equidade manda distribuir os cinco quilos para este último. Interessante notar que, mais uma vez, vemos que, do ponto de vista do paciente da decisão, tanto faz se ele vai sofrer desigualdade vinda das mãos de humanos ou de qualquer outra fonte. Por exemplo, na natureza, o que mais há é desigualdade de oportunidades: uns poucos nascem fortes e sadios; muitos nascem com terríveis doenças ou deformidades; os mais fortes e espertos quase sempre se dão melhor etc. Podemos até dizer que, de males que provêm de nossas ações temos mais responsabilidade ainda porque eles têm origem em nós, mas não podemos mais fingir que não devemos ter responsabilidade alguma sobre nossas omissões, porque fazer isso seria realmente escancarar que não estamos realmente nem um pouco preocupados com o bem do outro. Portanto, longe de ser uma veneração pelos processos naturais, a ética existe para corrigir desigualdades, sejam elas existentes devido a alguma decisão deliberada, sejam elas naturais. A existência de desigualdades no universo é, por si só, algo de valor moral negativo.</div><div style="text-align: justify;"><br />
</div><div style="text-align: justify;">Na próxima coluna veremos algumas outras metas válidas para a ética.</div><div style="text-align: justify;"><br />
</div><div style="text-align: justify;"><i><span lang="EN-US">¹SINGER, Peter. The Expanding Circle: Ethics and Sociobiology. New York: Farrar, Straus & Giroux, 1981. p. 108-11.</span></i><span lang="EN-US"><o:p></o:p></span></div><div class="MsoNormal"><br />
</div>Luciano Carlos Cunhahttp://www.blogger.com/profile/11543323145219198300noreply@blogger.com0