terça-feira, 22 de janeiro de 2013

O Consequencialismo e a Deontologia na Ética Animal

Deixo o link para download (gentilmente postado nos sites www.masalladelaespecie.wordpress.com e www.criticanarede.com) da minha dissertação de mestrado: O Consequencialismo e a Deontologia na Ética Animal: Uma Análise Crítica Comparativa das Perspectivas de Peter Singer, Steve Sapontzis, Tom Regan e Gary Francione.

Resumo da dissertação:

A presente dissertação tem como objetivo comparar criticamente duas abordagens distintas, uma centrada no consequencialismo e outra centrada na deontologia, sobre o problema do estatuto moral dos animais não humanos. Inicialmente, são apresentadas as críticas de Gary Francione e Tom Regan, que propõem uma abordagem deontológica centrada na idéia de direitos, à proposta de Peter Singer, consequencialista, centrada no utilitarismo das preferências. A proposta de Singer é então apresentada, e a plausibilidade das críticas é avaliada. Por fim, é apresentada a análise de Steve Sapontzis, que tenta ver se é possível juntar, num único sistema de raciocínio moral, as principais preocupações tanto das formas consequencialistas quanto deontológicas da ética animal.

Abraços!

Luciano Carlos Cunha.

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sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

IGUALDADE SENCIENTE - Parte 3 (final)

VERDADE, RAZÃO, JUSTIFICATIVA EM ÉTICA E OS SERES SENCIENTES

Luciano Carlos Cunha

Parte 3 - Por que rejeitar o egoísmo; por que isso implica no dever de igual consideração para os seres sencientes e algumas implicações práticas.

Comecemos por lembrar a objeção cética que aponta para a regressão de princípios que visam sustentar uma conclusão moral: “uma razão sustenta uma conclusão, mas, se formos perguntar o que sustenta essa razão, e o que sustenta a outra mais básica que a dá sustentação, uma hora chegaremos a um sentimento que não está aberto à avaliação racional”. Por esse motivo, conclui o cético, alguém que não se sente motivado a levar os outros em consideração está justificado a ser um egoísta. O que quero apontar primeiramente é que, quando se trata do nosso próprio bem, se dá a mesma coisa, em termos de regressão de razões até chegarmos em um motivo que não pode ser justificado com base em outro. Por exemplo, supondo que alguém me pergunte por que eu coloquei o despertador para tocar às seis horas, e eu responda que era porque precisava, antes de ir trabalhar, passar numa farmácia. Se me perguntassem por que eu queria ir na farmácia, eu responderia que queria comprar um remédio. Se me perguntassem por que eu queria comprar um remédio, eu responderia que era para ficar curado de uma doença. Se me perguntassem por que eu queria ficar curado de uma doença, eu responderia que não queria sofrer e queria desfrutar felicidade. Se me perguntassem por que eu não queria sofrer e por que queria desfrutar felicidade, a resposta seria que sofrer é algo ruim e desfrutar felicidade é algo bom. Nesse ponto, a justificação teria que terminar. O sofrimento ser algo ruim e a felicidade ser algo bom não são justificados com base em outra coisa; são intrinsecamente (explicarei essa noção mais detalhadamente adiante) ruim e bom, respectivamente. Note que, ao chegar nesse ponto inicial de justificação, há uma sutil mas importante modificação na forma da justificação: o apelo não se dá mais ao “por que eu quero x”, mas sim, a algo que  é ruim ou é bom, e que é por isso, (e não o contrário) que eu quero evitar ou buscar certas coisas. Quero evitar o sofrimento por que ele é ruim (isso é um julgamento de valor, não uma mera descrição de um fato); quero buscar o prazer porque ele é bom (isso é um julgamento de valor, não uma mera descrição de um fato), e não, que o sofrimento e o prazer se tornam, respectivamente, ruins e bons, porque eu quero evitá-lo e buscá-lo, respectivamente. Isso seria deixar tudo ao contrário. Por isso afirmei anteriormente que o desejo surge depois de um julgamento de valor.

Então, quando se trata de buscarmos nosso próprio bem individualmente também temos de nos basear num princípio baseado em um valor (o de que o sofrimento é intrinsecamente ruim e o prazer intrinsecamente bom) que não pode ser justificado com base em outro. Contudo, note um detalhe importante: ele não pode ser justificado com base em outro, mas isso não indica que aceitá-lo ou não seja uma questão de gosto pessoal e que escolhê-lo ou não seja uma questão não aberta à avaliação racional. Por exemplo, supondo que alguém fizesse exatamente o contrário: que buscasse tudo aquilo que lhe causa sofrimento e evitasse tudo aquilo que lhe causa felicidade (por pensar que o sofrimento é bom e a felicidade é ruim): ele deceparia seus próprios membros e atearia fogo no próprio corpo, por exemplo. Faria todo sentido dizer que alguém assim é um tolo, um irracional (e a irracionalidade aqui consiste em não perceber que é o sofrimento que é ruim e a felicidade que é boa, e não o contrário). Nesse ponto, poderia surgir uma objeção: mas, às vezes é racional escolher passar por um sofrimento, e às vezes é irracional buscar determinada satisfação. Por exemplo, supondo que eu tivesse que fazer uma operação extremamente dolorida, mas que fosse a única forma de salvar minha vida: após a dolorida recuperação, eu ainda teria muito a desfrutar pela frente. Seria racional escolher esse sofrimento. E, por exemplo, supondo que sei que, apesar do meu gosto por determinada comida, ela me causa problemas no fígado, seria irracional se eu buscasse a satisfação de comê-la (isso porque me impediria o desfrute no futuro e causaria sofrimento). Embora o que esses exemplos apontem esteja correto (no primeiro caso, é racional passar por tal sofrimento, e no segundo, é irracional buscar tal satisfação), eles não provam que o sofrimento possa ser algo bom em si e nem que a felicidade possa ser algo ruim em si. Pelo contrário, esses argumentos só fazem sentido se o sofrimento for algo ruim e a felicidade for algo bom. Note que o que se quer, nos dois exemplos, é evitar um sofrimento ainda maior e proporcionar oportunidade para a felicidade. Então, esses exemplos partem de um quadro geral de sofrimento e felicidade na vida de um indivíduo, e afirmam, corretamente, que não vale a pena provocar um sofrimento maior e impedir desfrute maior por causa de um desfrute pequeno, e que vale a pena passar um sofrimento menor com vistas a evitar o maior e a proporcionar desfrute. Tais exemplos são formas do que chamamos de raciocínio prudencial (em oposição ao raciocínio que visa apenas fomentar interesses momentâneos, sem se preocupar com o quadro geral de sofrimento/felicidade da própria pessoa ao longo do tempo).

Foi por esse motivo que caracterizei o sofrimento como intrinsecamente ruim e a felicidade como intrinsecamente boa. O que eu quis dizer é que o sofrimento não pode ser bom nele mesmo; a única maneira do sofrimento ser bom (em termos de raciocínio sobre o bem individual) é que seja um instrumento para a felicidade (ou alguma outra coisa que também tenha valor intrínseco positivo) ou para impedir um sofrimento ainda maior. A felicidade não pode ser ruim nela mesma; a única maneira dela ser ruim (em termos de raciocínio sobre o bem individual) é que seja um instrumento que impeça uma felicidade maior ou que cause sofrimento maior (ou que cause alguma outra coisa que tenha valor intrínseco negativo). Assim, em termos de raciocínio sobre o bem individual (sem levar em conta o impacto sobre outros indivíduos), o sofrimento só pode ser instrumentalmente bom, não intrinsecamente bom; e a felicidade só pode ser instrumentalmente ruim; e não, intrinsecamente ruim. Note que essas constatações apontam apenas para o valor intrínseco do sofrimento e da felicidade, mas não assumem que essas são as únicas coisas possíveis de serem boas ou ruins em si próprias. A lista fica em aberto, em termos de outras coisas possuírem valor intrínseco negativo ou positivo.

Como isso tudo mostra que o egoísmo é eticamente indefensável? Comecemos por notar que, embora o valor intrínseco negativo do sofrimento e o valor intrínseco positivo da felicidade não possam ser justificados com base em outra coisa mais básica, todos nós aceitamos que tais premissas são verdadeiras quando se trata de buscar o nosso próprio bem. Afinal de contas, não há nenhuma razão para duvidar da validade dessas premissas (na falta dessas razões contrárias, deve-se, então, considerar racional – e não apenas uma preferência aleatória não aberta à avaliação racional - buscar a felicidade e evitar sofrimento). Quando se trata de buscar o nosso próprio bem e evitar o nosso próprio mal, nenhum de nós exige que se ofereça uma justificativa para além dessa. Tais exigências só aparecem quando a questão é levar em consideração o bem dos outros. Nessa hora, a maioria de nós pede por uma justificativa para além de se apontar que o sofrer é algo ruim e que a felicidade é algo bom. Contudo, isso mostra que esse pedido é uma racionalização (ou seja, ninguém acredita sinceramente nele). Se acreditássemos, teríamos iguais dúvidas quando se trata de fomentar o nosso próprio bem, e, então, ninguém pensaria estar justificado em buscar o próprio prazer e evitar o próprio sofrimento. O que fiz, para explicar esse erro, foi apelar à regra de tratar casos relevantemente similares de maneira similar. Não faz sentido dizer que algo (no caso o sofrimento e a felicidade) não funciona como justificativa em um caso, e em outro caso, dizer que funciona. E, mesmo que alguém dissesse que não funciona nos dois casos (na busca do próprio bem e do bem dos outros), a menos que a pessoa sugerisse algum argumento que demonstrasse que o sofrimento e a felicidade não possuem valor em si (negativo e positivo, respectivamente), a pessoa em questão seria culpada de irracionalidade, como vimos anteriormente. Assim como o raciocínio prudencial parte da constatação que cada um dos instantes no quadro geral da vida de alguém não possui um status especial, o raciocínio ético parte da constatação de que cada um dos indivíduos não possui um status especial. O raciocínio prudencial depende da percepção de alguém como existindo ao longo do tempo; o raciocínio ético depende da percepção de alguém como existindo entre outros. Como vimos, a única maneira de justificar que o meu sofrimento/felicidade são razões para buscar o meu próprio bem, ao mesmo tempo que o sofrimento/felicidade dos outros não são razões para buscar o bem deles, seria apontar uma diferença moralmente relevante entre os dois tipos de casos. Essa diferença teria que mostrar que, apesar dessa característica comum (que é moralmente relevante; como vimos, não existem razões para duvidar de que o sofrimento é intrinsecamente ruim e a felicidade intrinsecamente boa), devemos, contudo, tratá-los de maneira diferente devido à outra característica moralmente relevante mais forte que anule a primeira.

Qualquer tentativa nesse sentido (de provar que somente o meu bem é que importa) teria que apelar a uma característica que possuo, para fundar a “diferença moralmente relevante”. Afinal de contas, seria circular responder que “somente o meu bem deve ser considerado porque eu sou eu”. Isso é óbvio, mas também é irrelevante. O que se quer saber é “o que há em determinado indivíduo que o torna mais especial?”. A única maneira de tentar algo nesse sentido seria apontar para uma característica que esse alguém possui, que não o fato de ele ser ele mesmo. Contudo, isso gera um problema, se o que se pretende é justificar o egoísmo. Como vimos, a principal característica da razão é sua generalidade. Quando apontamos uma característica que justifica um caso, automaticamente apontamos que a mesma característica justifica outros casos que a apresentem. Assim, por exemplo, se alguém aponta “eu sou mais especial porque todos os outros dependem de mim”, não oferece um argumento a favor do egoísmo. A regra geral a que apela é “é mais especial aquele do qual todos os outros dependem”. Ou seja, tal proponente teria que admitir que, se não fosse ele que ocupasse essa posição, mas qualquer outro, somente esse outro deveria ser considerado. A generalidade das razões gera um problema para a defesa desse tipo de egoísmo, pois toda característica que se aponte (com exceção de que “eu sou eu”, que, como vimos, é circular), cairá no mesmo tipo de impessoalidade, não fornecendo assim, razão alguma a favor do egoísmo.

Outra tentativa de justificar o egoísmo toma uma forma que chamo “universalizada” (em contraste à tentativa anterior, que chamo de egoísmo individual): ao invés de se tentar provar que um indivíduo específico é o único que tem valor (que todos deveriam considerar), tenta-se sugerir que cada um considere apenas o seu próprio bem (que cada um pense que é mais especial que os outros). Esse argumento também não funciona como justificativa. Como vimos, uma justificativa precisa ser racional. Faria sentido cada um considerar apenas si próprio somente se fosse razoável acreditar que cada um de nós é mais especial que os outros. Mas, é exatamente isso que é impossível de ser verdade: “cada um de nós individualmente” não pode ser mais especial que “cada um de nós individualmente” (se um é mais especial, é porque outros não o são). Isso mostra o seguinte: a possibilidade de se universalizar uma prescrição (no caso, “que cada um considere apenas os seus interesses”) não indica que tal prescrição seja racional. Nesse ponto, o egoísta poderia objetar, dizendo que não está a propor que cada um seja mais especial que todos os outros objetivamente (o que, como vimos, é impossível), mas, mais especial “para si”. O problema com essa tentativa é que ela é apenas uma outra forma de expressar a anterior. O que se quer dizer com “eu sou mais especial para mim”, ou “para mim, eu sou mais especial” ou “ele é mais especial para ele”, ou ainda “para ele, ele é mais especial” parecem coisas diferentes, mas, para fazerem sentido, dependem todas da validade de: “na minha opinião eu sou mais especial (objetivamente)” e “na opinião dele, ele é mais especial (objetivamente)”. Ambas as crenças não podem ser verdadeiras ao mesmo tempo (se um for mais especial, o outro não é). É por isso que afirmar que todos são mais especiais do que todos é uma irracionalidade, e o egoísmo não se justifica, mesmo na forma universalizada[6].

A terceira tentativa de justificar o egoísmo é apontar que a diferença moralmente relevante entre um caso e outro é a motivação. O egoísta afirma que, em relação ao seu próprio bem, sente-se motivado a fomentá-lo; já com relação ao bem dos outros, não se sente. É isso, no entender do egoísta, que justifica que ele considere apenas o seu próprio bem. O problema com esse argumento é que, para essa motivação ser uma diferença moralmente relevante, ela precisa ser racional. Ou seja, precisa haver uma razão (geral) que sustente que é adequado que ele se sinta motivado a fomentar apenas o seu próprio bem. Que razões poderiam ser endereçadas quando a esse ponto? Apenas as razões oferecidas anteriormente pelas defesas do egoísmo individual e do egoísmo universal. Como vimos, tais argumentos são péssimos (um é auto-refutante e o outro é culpado de irracionalidade). Então, o agente em questão não tem razões que sustentem a motivação exclusiva que tem, de fomentar apenas o seu próprio bem. Sua motivação deveria ser outra. O principal erro dessa tentativa de justificar o egoísmo consiste em confundir “o que quero fazer” com “o que devo fazer[7]”. O que se quer saber é “tenho justificativa para fazer somente o que me sinto motivado a fazer?”,  ou ainda, “tenho razões para me sentir motivado apenas dessa maneira?”. Responder que “sim, porque é somente isso que me sinto motivado a fazer” é circular.

A partir do que foi exposto acima, temos então, boas razões para rejeitar o egoísmo. Essa rejeição envolve reconhecer um dos pilares centrais da ética: a imparcialidade. A imparcialidade é a noção de que cada um dos indivíduos a quem devemos considerar moralmente possui igual valor – ou seja, o de que o bem de cada um importa em igual medida; ninguém possui um status especial por ser o indivíduo que é. Assim como o raciocínio prudencial surge do reconhecimento de que um estágio particular da vida de um indivíduo não possui status especial (ele é apenas mais um entre outros), o raciocínio ético surge do reconhecimento de que nenhum indivíduo particular possui um status especial (cada um é apenas mais um entre outros). A noção de imparcialidade não deve ser confundida com a idéia de que devemos dar tratamento igual aos atingidos pela decisão. O ideal de igual consideração, na maioria das vezes, irá requerer tratamento diferente[8]. Isso se dá porque geralmente os indivíduos se encontram em níveis diferentes de sofrimento/felicidade: alguns estão muito bem, outros estão vivendo um verdadeiro inferno. O reconhecimento de que o sofrimento é intrinsecamente ruim e a felicidade é intrinsecamente boa, juntamente com o reconhecimento de que ninguém está intitulado a um status especial conduz à conclusão de que, quanto pior alguém está, maior deve ser a prioridade de seu atendimento (em termos de elevar o seu nível de bem-estar). Note que isso não significa dizer que os indivíduos que se encontram na pior situação possuem um status especial:  se fossem outros indivíduos ocupando a pior situação, a prioridade deveria ser deles (essa é a essência da idéia de imparcialidade: que as razões morais sejam impessoais). A meta é que os bens (no caso, o bem da felicidade) sejam distribuídos de maneira eqüitativa: ou seja, dar mais a quem tem menos, e menos a quem tem mais, até que os resultados finais sejam igualitários. Contudo, a meta não é apenas essa, pois, se fosse, então uma situação seria automaticamente boa, desde que os níveis de bem-estar fossem igualitários, mesmo que todos estivessem numa situação igualmente ruim. A meta não é apenas atingir uma situação igualitária de bem-estar entre os indivíduos: é também que esse bem-estar individual seja o maior possível. Essa posição também surge do reconhecimento de que o sofrimento possui valor intrínseco negativo, e a felicidade valor intrínseco positivo. Então, faz sentido pensar que, quanto mais felicidade melhor, e quanto menos sofrimento melhor. Note que isso não é dizer que, desde que uma decisão maximize a felicidade e diminua o sofrimento, então que ela é moralmente correta. Como vimos, a maneira como uns indivíduos estão, comparativamente a outros (e também comparativamente ao que poderiam estar) é importante. Essa última consideração vêm do reconhecimento de que nenhum indivíduo têm um status especial.

Na explicação acima, parti da idéia de que, dos indivíduos a quem devemos considerar moralmente, nenhum possui status especial. Agora temos de perguntar: “a quem devemos considerar moralmente?”. Ou seja: “qual a característica moralmente relevante para se saber quem deve ser moralmente considerado?”. Que característica é necessária que apresente determinada entidade para que seja um dever moral levá-lo em consideração, respeitá-lo? 

Uma resposta bastante comum a essa pergunta é dizer: “devemos respeitar todos os seres humanos”. Freqüentemente, os que se dizem defensores da igualdade se posicionam contrariamente ao racismo e ao sexismo, elegendo como critério de consideração moral o pertencimento à espécie Homo sapiens (“somos todos humanos”, é o lema freqüentemente pronunciado por tais defensores”). Na seqüência, explicarei por que esse critério (o especismo) é igualmente ruim, enquanto critério de consideração moral, em comparação ao racismo e ao sexismo. Todos esses critérios se baseiam em características moralmente irrelevantes.

Para conseguirmos saber o que é relevante para respeitar alguém, temos de perguntar, em primeiro lugar: “por que alguém precisaria de respeito?”.  Uma maneira de chegar até à resposta é imaginar uma situação onde não faria sentido prático o dever de respeitar alguém. Do que dependeria essa situação? Por exemplo, imagine que existam seres que são invulneráveis. Por invulneráveis, eu quero dizer que é impossível prejudicá-los, seja lá de que maneira. Seja lá o que for que tentemos com nossas decisões, é impossível causar um sofrimento sequer (físico ou psicológico) aos seres do exemplo fictício. Também é impossível diminuir-lhes a felicidade que lhes aguarda: toda e qualquer decisão nossa não conseguirá alterar a quantidade de felicidade que eles têm a desfrutar pela frente. Imagine também que esses seres nunca podem ser enganados: eles nunca acreditariam numa mentira; então, não poderiam ser prejudicados desta maneira. E, de nenhuma outra; seja lá o que for que tentássemos fazer. Num caso como esse, falar que temos o dever de respeitar tais seres não teria nenhuma utilidade prática, pois, seja lá o que for que fizéssemos, não seria possível alterar o seu bem individual, nem para mais, nem para menos. Esse exemplo fictício é importante para encontrarmos aquilo que é relevante para saber se alguém deve ser considerado moralmente: alguém precisa ser respeitado porque é vulnerável (o seu bem-estar pode ser alterado para melhor ou para pior) às nossas decisões práticas (sejam essas decisões ações ou omissões, haja vista que ambos os tipos de movimento implicam em alteração do bem-estar).

Das considerações abaixo, vimos que, da parte de quem toma a decisão, existem duas maneiras básicas pelas quais é possível um indivíduo ser prejudicado: ou prejudicamos um indivíduo diminuindo ou cessando (ou, permitindo que algo ou alguém diminua) o seu nível de bem-estar (incluindo o bem-estar a ser desfrutado no futuro), ou prejudicamos não aumentando (ou, permitindo que algo ou alguém não aumente) o seu nível de bem-estar (incluindo o bem-estar a ser desfrutado no futuro). Da parte do indivíduo a ser considerado, existem duas maneiras básicas nas quais é possível de ele ser prejudicado: por inflição de sensação ruim (sofrimento físico ou psicológico) ou por privação de satisfação (impedimento do prazer e da felicidade, por exemplo[9]). O primeiro tipo de dano explica onde está a razão principal para ser um erro moral causar (por ação ou omissão) sofrimento. O segundo tipo de dano explica onde está a razão principal para ser um erro moral (por ação ou omissão) assassinar (o indivíduo é privado de todo e qualquer desfrute no futuro). 

São essas razões que tornam errado desrespeitar seres humanos. E, ao mesmo tempo, são essas razões que explicam o que há de errado com o racismo e o sexismo: a raça e o gênero de alguém são características moralmente irrelevantes para saber quem deve ser respeitado porque são características que não têm influência alguma nas possibilidades de alguém ser prejudicado por inflição ou privação. O problema, para os especistas, é que o fato de alguém pertencer a uma determinada espécie biológica (no caso, à espécie Homo sapiens) também é uma característica igualmente irrelevante com relação às mesmas possibilidades de prejuízo. O motivo pelo qual é errado torturar um bebê humano não é que ele é um ser humano. O motivo é que ele é possível prejudicá-lo por inflição de sofrimento. Os motivos que tornam errado assassinar esse bebê também não tem a ver com o fato de ele ser humano. O motivo principal é que ele será impedido de todo e qualquer desfrute no futuro (será prejudicado, ainda que não tenha consciência do prejuízo, pois estará morto). Qual a característica moralmente relevante, então, que um indivíduo tem que apresentar, para ser considerado moralmente? Já que a idéia de respeito só faz sentido onde há vulnerabilidade, e já que a vulnerabilidade depende de alguém poder ser prejudicado (por inflição de sensação ruim ou privação de sensação boa), a única característica que faz sentido exigir é que o ser em questão seja capaz de sensações (sofrer e desfrutar),  ou seja, que seja senciente. Note que essas características dão iguais razões para se concluir que é igualmente errado prejudicar (por inflição ou privação) todo e qualquer ser senciente, independentemente de espécie, e não apenas humanos. Isso mostra que eleger como critério de consideração moral o pertencimento à espécie humana é se basear num critério tão moralmente imbecil quanto a raça, gênero ou número de letras no nome de alguém: nenhuma dessas características influi na possibilidade de alguém ser prejudicado. É por isso que especismo, racismo e sexismo são moralmente injustificáveis. A senciência não é mais um critério arbitrário como os mencionados acima, pois influi diretamente na possibilidade de alguém ser prejudicado por inflição ou privação – por isso, é uma característica moralmente relevante para saber quem merece consideração moral[10]. As considerações acima mostram que temos não apenas fortes razões para considerar moralmente os seres sencientes de outras espécies, mas que temos também fortes razões para dá-los igual consideração (ou seja, não atribuir um status especial a membros da espécie humana).

Tendo entendido que o critério da espécie é tão arbitrário quanto o da raça, gênero ou número de letras no nome, alguns defensores da idéia de que os seres sencientes de outras espécies não merecem igual consideração apontam para uma objeção. Alegam que não estão a dizer que deve-se respeitar apenas os seres humanos porque estes pertencem à espécie humana (o que seria um argumento circular), mas sim, devido a uma característica moralmente relevante que apenas os humanos possuem: são dotados de razão. “Somos todos racionais”, é o slogan dessa tentativa de defender a igualdade somente entre humanos. Eu poderia apontar aqui que tal argumento não serviria nem para defender a superioridade humana, porque é falso que todos os humanos sejam dotados de razão. Afinal de contas, os bebês, os idosos senis e portadores de determinadas doenças mentais são muito menos racionais do que qualquer cão normal, por exemplo. Contudo, se eu respondesse ao argumento dessa maneira, não poderia me opor a alguém que defendesse a igualdade apenas entre seres racionais (digamos, se esse alguém resolvesse excluir da consideração os humanos destituídos de razão e os seres sencientes de outras espécies). Então, essa resposta não explica o que há de errado com o critério da posse da razão, enquanto critério para saber quem merece respeito.

O que explica o que há de errado com o esse critério é o seguinte: ele reside numa confusão entre o que é relevante para saber quem merece respeito (a possibilidade de ser prejudicado, que, como vimos, depende da senciência) com o que é relevante para saber quem tem o dever de respeitar os outros (a posse da razão). A posse da razão é um critério relevante para saber quem tem o dever de respeitar os outros porque não faz sentido responsabilizar alguém pelas escolhas que faz se esse alguém não consegue raciocinar sobre essas escolhas. É por esse motivo que não faz sentido responsabilizar crianças muito pequenas, bebês, idosos senis, portadores de determinadas doenças mentais e seres sencientes não humanos, por exemplo. Mas, com relação ao que é relevante para se saber se alguém deve ser respeitado (a possibilidade de alguém ser prejudicado), a posse da razão não é necessária. É possível alguém ser prejudicado, por inflição de sensação ruim ou privação de desfrute sem ser capaz de raciocinar. Aliás, geralmente se dá o contrário: quanto menos capaz de razão alguém é, maior sua vulnerabilidade (porque não sabe defender seus direitos sozinho, por exemplo), então, a conclusão que deveria se seguir disso é que precisa de uma proteção ainda maior, e não, que podemos fazer com eles o que bem entendermos. É por esse motivo que se oferece maior proteção aos bebês do que aos adultos, por exemplo. Só que, se reconhecemos isso, temos de reconhecer o mesmo no caso dos seres sencientes de outras espécies: o fato de serem menos racionais do que nós (que os impede de reivindicar seus direitos) é uma razão para dar-lhes maior proteção, devido à sua maior vulnerabilidade.

As considerações acima nos mostram que existem fortes razões para darmos igual consideração a qualquer ser senciente, independentemente da espécie, raça ou gênero que ele pertence. Vimos também que a maior vulnerabilidade dos seres sencientes que possuem menor capacidade racional é uma razão para lhes oferecer maior proteção. Antes disso, vimos também que a igual consideração requer que se dê prioridade aos indivíduos que estão na pior situação, comparativamente a outros. Quanto maior o número de indivíduos em um nível de bem-estar muito ruim uma situação apresenta, maior a urgência moral em acabar com essa situação[11]. Essas considerações apontam que a situação na qual passam agora os seres sencientes de outras espécies deveria ser vista como prioritária[12]. Essa conclusão está de acordo com a exigência de imparcialidade: se fossem outros indivíduos no lugar desses indivíduos, a prioridade deveria ser deles. Quem sabe o que eles passam nas granjas industriais, na produção de ovos, leite e carne, ou nos outros setores nos quais são utilizados (são mutilados, queimados vivos, não podem se mover, tem os ossos quebrados, etc.), além do fato de todos eles serem assassinados, prontamente precisa reconhecer que eles são, de todos os indivíduos sencientes, os que estão na pior situação. Quem se libertou da ilusão proporcionada pela visão idílica da vida na natureza também reconhece que a situação na qual os seres sencientes viventes na natureza passam, devido aos próprios processos naturais, não é menos pior do que a das granjas industriais (se levarmos em conta o número de indivíduo em situação de sofrimento extremo, pode ser até pior): a maioria só tem sofrimento extremo e nada de desfrute desde o momento que nasce até o momento que morre (a maioria morre de inanição, por parasitismo, ou é predado[13]). Quem ainda não conhece essas realidades precisa conhecer. Não tenho espaço aqui para descrever detalhadamente essas realidades, mas, boas descrições detalhadas podem ser encontradas em outros artigos ou vídeos. E, para quem acredita que, no segundo tipo de caso, não temos dever de abolir tais danos, por serem danos naturais, é preciso dar uma olhada mais de perto nessa idéia, para ver se ela se sustenta após alguns minutos de análise crítica. Afinal de contas, não pensamos que é errado para nós nos medicarmos se estivermos sofrendo de um câncer, igualmente natural. Abordo essa questão mais detalhadamente em outros dois artigos[14]. O reconhecimento de que existem algumas situações piores do que outras e alguns indivíduos numa situação muito pior do que a de outros mostra que a conclusão de que “quando se escolhe uma causa para lutar, todas são igualmente válidas” é moralmente errada. O que a imparcialidade requer é que se dê prioridade a quem está na pior situação, independentemente de quem estiver nessa pior situação. Não temos apenas o dever de não contribuir com essas situações; temos o dever de erradicá-las.

Fora essas implicações, a conclusão que se segue é que, mesmo que fosse verdade que os seres sencientes de outras espécies valessem menos do que os humanos, ainda assim teríamos que mudar radicalmente nossos hábitos. Por exemplo, supondo que fosse errado causar danos aos seres sencientes de outras espécies apenas quando o interesse humano fosse fútil, ainda assim teríamos que abolir, por exemplo, o seu uso como comida. Como sabemos, a produção de ovos, leite e carnes provoca extremos de sofrimento e mortes. Como vimos, sofrimento e morte são danos graves para os seres sencientes, pois o primeiro inflige sensação muito ruim e o segundo impede totalmente o desfrute. O interesse humano em questão, que compete com esses interesses básicos (não sofrer e desfrutar) é um interesse fútil: o gosto por uma comida específica. Já que podemos viver com outro tipo de comida menos danosa (comida vegana), teríamos o dever de abolir o uso de animais como comida mesmo que estes valessem bem menos do que os humanos. Mas, a verdade, como vimos com a argumentação desenvolvida durante todo o artigo, é que temos fortes razões para acreditar que os seres sencientes de outras espécies possuem igual valor, o que gera em nós o dever moral de aumentar o seu bem-estar até que eles estejam tão bem quanto possível (e, se possível, cada vez mais). Então, as implicações de tudo isso são muito mais radicais do que abolir o seu uso enquanto recursos. Isso é só o começo, o mínimo que qualquer pessoa moralmente decente faria. A igual consideração vai muito mais longe do que isso.

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Notas:

[6] Essa argumentação contra o egoísmo pode ser encontrada mais detalhada em NAGEL, Thomas. The Possibility of Altruism. New Jersey: Princeton University Press, 1970, capítulos IX - XIV. Também pode ser encontrada em MURCHO, Desidério. Como não Compreender a Moral. In: Crítica na Rede. 01/12/2009b. Disponível em: http://criticanarede.com/html/pensamentomoral.html

[7] Essa confusão é criticada em  MURCHO, Desidério. Ética e Direitos Humanos. In: Crítica na Rede. 27/11/2009a.
Disponível em: http://criticanarede.com/html/valoresrelativos.html

[8] Cf. SINGER, Peter. Ética Prática. 3 ed. Trad. Jefferson L. Camargo. São Paulo. Martins Fontes, 2002, p. 32.
 
[9] Essas duas modalidades básicas de dano são melhor desenvolvidas em REGAN, T., The Case for Animal Rights, 2nd ed, Los Angeles: University of California Press, 2004, pp. 87-103.

[10] Para uma defesa do critério da senciência, ver HORTA, Oscar. Por qué la Capacidad de Sufrir y Disfrutar es lo Importante. In: Ética Más Allá de la Espécie: La Consideración Moral de los Animales no Humanos,  2009. http://masalladelaespecie.wordpress.com/2009/11/20/la-capacidad-de-sufrir-y-disfrutar/

[11] Para uma análise da questão da prioridade, ver HORTA, Oscar. Questions of Priority and Interspecies Comparisons of Happiness. In: Ética mas Allá de la Espécie: La Consideración Moral de los Animales no Humanos. 2010. http://masalladelaespecie.files.wordpress.com/2010/05/questions_priority_interspecies.pdf.; Id. Igualitarismo, igualatión a la baja, antropocentrismo y valor de la vida. In: Revista de Filosofía da Universidad Complutense de Madrid. Vol. 35 Núm. 1 (2010), pp. 133-152, ISSN: 0034-8244.

[12] Os dados da FAO (2010) apontam que entre 55.000 e 60.000 milhões de mamíferos e aves são mortos por ano mundialmente. Cf. FAO – Food and Agriculture Organization of the United Nations (2010): “Livestock Primary”, FAO Statistical Database, http://faostat.fao.org/site/569/default.aspx#ancor [visitado o 26 de outubro de 2010]. Nesse tipo de cálculo, não é computado o número de peixes, que são a imensa maioria dos animais mortos por humanos. Segundo Mood e Brooke (p. 9), o número de peixes capturados poderia oscilar entre 0,97 e 2,74 trilhões. Cf. Mood, Alison e Brooke, Phil (2010): “Estimating the Number of Fish Caught in Global Fishing Each Year”, Fishcount.org.uk, http://www.fishcount.org.uk/published/std/fishcountstudy.pdf [visitado o 18 de outubro de 2010].

[13] Para um crítica à visão idílica da natureza, ver HORTA, Oscar. Debunking the Idyllic View of Natural Processes: Population Dynamics and Suffering in the Wild. In: Télos, vol. 17, 2010, 73–88, Allan Dawrst nos lembra que o número de animais utilizados por humanos some frente ao número de animais padecendo de danos naturais. Cf. DAWRST, Alan, “How Many Animals are There?”, Essays on Reducing Suffering, 2009a; Id, “The predominance of wild-animal suffering over happiness: An open problem”. Essays on Reducing Suffering, 2009b, http://www.utilitarian-essays.com/wild-animals.pdf.

[14] Cf. CUNHA. Luciano C., O Princípio da Beneficência e os Animais Não Humanos: Uma Discussão Sobre o Problema da Predação e Outros Danos Naturais. In: Agora: Papeles de Filosofia, Vol. 30, N. 2, 2001. ISSN 0211-6642. Cf. CUNHA, Luciano C., Sobre Danos Naturais. In: Ética mas Allá de la Espécie: La Consideración Moral de los Animales no Humanos, 2011. http://masalladelaespecie.files.wordpress.com/2011/01/luciano-carlos-cunha-sobre-danos-naturais.pdf







quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

IGUALDADE SENCIENTE - parte 2

VERDADE, RAZÃO, JUSTIFICATIVA EM ÉTICA E OS SERES SENCIENTES

 Luciano Carlos Cunha [1]

PARTE 2: Como a pretensão de objetividade é inescapável em qualquer juízo moral e o papel da razão em avaliar esses juízos.

Antes de iniciar, gostaria de esclarecer o que entendo pelos termos “ética” e “moral”, com vistas a evitar confusões de ambigüidade muito comuns. Muitas vezes, os termos ética e moral são utilizados como sinônimos; outras vezes não. No que se segue, utilizarei os dois termos como sinônimos, porque, segundo entendo, a confusão consiste não na questão sobre se esses termos são sinônimos ou não, mas o que se quer referir com cada um deles: a crenças ou à verdade. Muitas vezes, a palavra ética é utilizada para descrever as crenças de alguém sobre as decisões práticas (o que alguém acredita que não se deve e o que se deve fazer; o que é opcional fazer, etc.). Por exemplo, isso acontece quando se diz: “a ética de fulano permite fazer x”; ou seja, como significando a mesma coisa que “fulano acredita que é correto fazer x”. Contudo, às vezes a palavra “moral” também é utilizada nesse mesmo sentido: “a moral de fulano permite fazer x”; ou seja, como significando que “fulano acredita que é correto fazer x”. Chamarei esse uso de sentido descritivo (descreve aquilo que as pessoas acreditam – as crenças - sobre ética/moral) dos termos “ética” e “moral”. O outro sentido comum em que se utiliza essas palavras não é descritivo (não descreve o que as pessoas ou sociedades acreditam que se deve ou não fazer), mas avaliativo: se está a fazer um juízo de valor sobre o que se deve ou não fazer; o que é opcional, etc. Esse é o sentido primário, valorativo, dos termos ética/moral. O outro sentido é só uma descrição sobre o que as pessoas acreditam que seja a verdade em ética/moral (ou seja, o que elas acreditam que seja a resposta correta para o sentido valorativo). Um sentido refere-se à verdade; o outro refere-se ao que as pessoas acreditam que seja a verdade. Por exemplo, quando se fala, no sentido valorativo: “fazer x é imoral (ou, anti-ético)”; se está dizendo a mesma coisa que “não deve-se fazer x”; “existem boas razões para não se fazer x”. Quando se fala “x é ético (ou, moral)”, está a se dizer “deve-se fazer x”; “existem boas razões para fazer x”. Inclusive quando se fala “tudo é moralmente (ou eticamente) opcional”, se está a exprimir o que se pensa ser a verdade sobre ética/moral: que todas as decisões são igualmente válidas. Para evitar a confusão entre os sentidos de descrição de crença e de julgamento sobre a verdade dos termos ética/moral, utilizarei um “(c)” para o primeiro (crenças) e “(v)” para o segundo (verdade). Fazendo essa distinção, o aparente paradoxo de afirmações do tipo “a ética/moral de fulano não é ética/moral” desaparece, pois o que se está a dizer é que “a ética/moral(c) de fulano - ou seja, o que fulano acredita ser ético/moral(v) – não é ética/moral(v)”. Tudo o que se quis dizer com essa afirmação é que alguém está enganado ao pensar que determinada coisa é certa, errada, opcional, etc.

O que se quer descobrir no raciocínio moral(v)? É importante perceber que o raciocínio moral é um tipo de raciocínio valorativo. O que se quer descobrir é o que devemos fazer, o que não devemos fazer, e o que tanto faz se fizermos ou não. Separarei essas questões em duas categorias: (1) moralmente obrigatório: inclui o que não se deve fazer (um dever negativo); e o que deve-se fazer (um dever positivo) e; (2) moralmente opcional: tanto faz se fizermos ou não. Com relação à primeira categoria, diz-se que algo é um dever negativo se existirem melhores razões para não fazê-lo (fazê-lo é um mal e não fazê-lo é um bem) e diz-se que algo é um dever positivo se existirem razões para fazê-lo (fazê-lo é um bem e não fazê-lo é um mal). Com relação ao moralmente opcional, fazê-lo ou não fazê-lo é igualmente neutro. Note que cada uma dessas razões, se existirem, dependem do conceito de valor (note a referência a algo ser um bem e ser um mal). Atentando para essa particularidade, é possível perceber que algo ser um dever negativo, dever positivo ou moralmente opcional dependerá não somente do valor embutido em cada uma das situações, mas da comparação entre as opções de decisão disponíveis para o agente. Se o agente tem, diante de si, várias opções e todas são igualmente boas (ou todas são igualmente ruins), escolher qualquer uma delas é igualmente opcional. Se o agente tem, diante de si, várias opções e algumas delas são igualmente as melhores, comparativamente às outras, escolher alguma das melhores é igualmente opcional; escolher qualquer outra é um dever negativo. Se só há uma opção melhor do que as outras, escolhê-la é um dever positivo.

Como veremos na seqüência, são essas razões objetivas (que dependem do valor) que tornam uma decisão moralmente obrigatória e outras moralmente opcionais que os perspectivistas morais negam a existência. Antes de oferecer os argumentos centrais contra o perspectivismo moral, cabe salientar o que o raciocínio moral não é:  descritivo. O que se quer descobrir não é o que as pessoas acreditam que seja (remete crenças) moralmente obrigatório e moralmente opcional. O que se quer descobrir é se existem decisões que são (remete à verdade) moralmente obrigatórias e moralmente opcionais, e como diferenciá-las.

Devido ao domínio da moralidade ser essencialmente normativo, qualquer argumento com vistas a provar que a ética é perspectivada (relativa, subjetiva) que se baseie na confusão entre os domínios normativo e descritivo está fadado ao fracasso. E, não são poucos os argumentos que padecem dessa confusão. Muitas vezes, quando se fala “não existe verdade em ética”, o que se quer dizer, na realidade, é: que as crenças das pessoas (ou das sociedades como um todo) divergem sobre o que é certo e errado fazer. O fato de haver divergência sobre certo e errado não mostra que todas as visões morais são igualmente plausíveis, assim como as divergências sobre qualquer outro assunto não mostram que as visões em questão são igualmente plausíveis. Se alguém replicar, alegando que “em ética, a coisa é diferente”, precisa oferecer outro argumento para explicar por que com a ética é diferente; apontar que há discordância não mostra o que há de diferente com a ética, haja vista haver discordância em qualquer assunto. O erro desse argumento é fazer uma constatação descritiva (“as crenças sobre o que é certo divergem”) e pensar que essa constatação sustenta um salto lógico para uma conclusão normativa (“todas essas crenças são igualmente corretas”). Esse é o erro conhecido como falácia naturalista (saltar de uma premissa descritiva para uma conclusão de valor). Supondo que o perspectivista se revele, no fundo um cético moral, e afirme que o que quer dizer, na verdade, é que ninguém tem conhecimento total sobre o que é certo e errado, ou  que certas decisões são muito difíceis de se encontrar a resposta. Contudo, o fato de ninguém ter conhecimento total sobre o que é certo e errado não prova que não há verdade moral (aliás, tal afirmação depende da existência de verdade moral); o fato de que certas questões serem difíceis de responder não mostra que não existe uma resposta objetiva sobre elas (mostra apenas que talvez não tenhamos chegado a essa resposta ainda). Nenhuma dessas alegações serve como base para sustentar a tese contra a objetividade da ética, da mesma maneira que a presença dos mesmos problemas (discordância de posições, questões difíceis, ninguém ter todo o conhecimento sobre a área, etc.) não depõe contra a objetividade da matemática ou das ciências empíricas. Aliás: a verdade nesses domínios (e também na ética, como pretendo mostrar) independe de quaisquer crenças. Assim como haver grande discordância sobre um assunto não prova que não existe verdade sobre esse assunto, o fato de todos concordarem com uma conclusão não prova que ela é verdadeira. A verdade tem de ser buscada em outro lugar, que não no fato de haver discordância ou concordância, pois, como mencionei antes, a verdade não é estatística nem consensual (porque a verdade é independente das crenças).

Outro exemplo de argumento que visa sustentar o perspectivismo moral (relativismo ou subjetivismo) que padece da confusão entre o domínio normativo e descritivo são os conhecidos exemplos de falácia genética. A falácia genética consiste em confundir a explicação sobre o surgimento de algo (no caso, sobre o surgimento de uma crença, uma determinada conclusão, uma teoria, etc.) com sua justificação ou “des” justificação. Ou seja, é comum se tentar mostrar que uma determinada conclusão é justificada ou injustificada explicando como é que as pessoas que nela acreditam chegaram até ela. No caso específico, os relativistas morais comumente afirmam: “você só tem os valores que têm porque nasceu na sociedade em que nasceu; tivesse nascido em outra, acreditaria em coisas diferentes”. Por exemplo, diriam que eu acredito no valor da igualdade porque nasci numa sociedade que possui valores igualitários, mas que acreditaria no valor das castas se tivesse nascido numa sociedade de castas. A partir disso, defendem a conclusão de que a verdade objetiva em ética não existe. Esse argumento não funciona porque mesmo que fosse verdade o que ele afirma em termos de descrição (que eu teria outros valores se tivesse nascido em outro tipo de sociedade, com outros valores), isso não prova que todos esses valores são igualmente plausíveis. Supondo que seja verdade que, se eu tivesse nascido numa sociedade de castas, eu defenderia as castas como moralmente corretas. Essa constatação não serve para sustentar a tese de que, então, defender a igualdade ou as castas é igualmente plausível. Isso porque considerações sobre o que eu acredito ou o que eu acreditaria são apenas descrições sobre minhas crenças, e não, fundamentações sobre juízos de valor. O domínio descritivo não possui poder para tirar conclusão nenhuma sobre questões normativas. Eu me perguntaria, após ouvir esse argumento: “e agora, devo defender a igualdade, as castas ou é tudo moralmente opcional?”. Dizer que eu defenderia uma coisa se tivesse nascido numa sociedade x e outra se tivesse nascido na y não ajuda em nada a responder essa pergunta. Não oferece nenhuma razão para se pensar que a igualdade é melhor do que as castas, nem que as castas são melhores do que a igualdade, e nem mesmo que ambas são igualmente plausíveis. A resposta para essa pergunta (saber se uma opção é melhor do que a outra, o que tornaria escolher uma um dever positivo e rejeitar a outra um dever negativo; ou se ambas são igualmente boas, o que tornaria a escolha moralmente opcional) tem de vir do próprio domínio normativo, não do descritivo. Quando pensamos moralmente, não queremos descobrir o que faríamos, nem o que faz com que tenhamos os valores que temos, e sim, o que devemos fazer, que valores devemos ter (mesmo quando se responde “qualquer um que se queira”, a resposta surge de crenças sobre o domínio normativo, não do descritivo).

Existem outros argumentos em defesa do perspectivismo moral (relativismo, subjetivismo) que também são culpados de falácia genética,  mas não envolvem suposições sobre que valores alguém teria se tivesse nascido em outra sociedade. Por exemplo: (1) “o altruísmo não vale nada; você é altruísta porque se sente feliz com isso ou porque tira vantagem disso”. Mesmo que o agente só fosse altruísta porque se sente feliz com isso ou porque tira vantagem disso (ou seja, mesmo que isso explique a motivação que dá origem ao altruísmo naquela pessoa), isso não mostra que o altruísmo não vale nada (não mostra que não há justificativa para o altruísmo). Ou ainda, (2) “O surgimento da moralidade se deu por motivos mesquinhos (‘eu não bato em você, e você não me bate’); logo, só temos razões para respeitar alguém se ele tiver poder de nos ameaçar”. Mesmo que fosse verdade que o surgimento da moralidade se deu com esse tipo de motivação (explicou a origem de algo), isso não mostra que, então isso foi certo naquela época e é certo agora (não justifica esse algo).

Tendo desfeito essas confusões, precisamos olhar agora para a reivindicação envolvida no perspectivismo moral:  que não é possível um critério objetivo (razões), para dizer que um valor é melhor do que outro. Existem dois tipos principais de perspectivismo moral. Um deles é o relativismo moral. O relativismo moral afirma que não existem julgamentos de valor objetivamente válidos, mas, apenas, válidos dentro de uma sociedade. O outro é o subjetivismo moral. O subjetivismo moral afirma que não existem julgamentos de valor objetivamente válidos, mas, válidos apenas para cada pessoa individualmente.

Endereçarei agora o que considero as principais objeções a esse tipo de perspectiva. O primeiro problema com esse tipo de perspectiva é que, tanto o relativismo quanto o subjetivismo moral só fazem sentido sob um pano de fundo objetivo no domínio ético (e não apenas, como uma reivindicação objetiva sobre o domínio ético). Ou seja, o que quero dizer é que essas posições contém embutidas nelas reivindicações morais (reivindicações sobre o que se deve ou não fazer, o que é opcional, etc.) ocultas que pretendem ser objetivamente válidas. Isso acontece não por um “defeito” dessas teses (ainda que, devido ao tipo de tese que são, isso é também um defeito), mas porque é impossível não fazê-lo. Analogamente ao que foi mencionado sobre as idéias de verdade e razão (onde é impossível nos situarmos em um ponto “de fora”, onde seja possível pensar alguma coisa sem pressupor a validade das idéias de verdade e razão), defendo que é impossível falar algo sobre moralidade sem, ao mesmo tempo, fazer um juízo sobre o que é moralmente obrigatório ou moralmente opcional (ainda que o juízo, no final das contas, afirme que tudo é moralmente opcional, como discutiremos na seqüência). Isso porque, também não é possível nos situarmos em um ponto neutro, “de fora” quando falamos sobre que decisão tomar.

O que quis mencionar com a alegação acima é que as visões perspectivistas da ética (relativismo e subjetivismo) sugerem (ao mesmo tempo que negam), ainda que de maneira oculta, um critério objetivo para se decidir questões morais. Quando, por exemplo, o relativismo diz que “a ética é relativa à cada sociedade”, na verdade sub-entende o seguinte: “Quer saber o que deves fazer? Pergunte o que a sociedade em que você está acredita que deve ser feito”.  Note que isso é a sugestão de um critério objetivo para decidir (um critério que não pretende ser, ele mesmo, uma mera construção social). O relativismo moral incorpora, de maneira oculta, as noções de moralmente opcional e moralmente obrigatório. Por exemplo, de acordo com o relativismo moral, é moralmente obrigatório concordar com os valores da sociedade na qual se está. Já quando, por exemplo, o subjetivismo diz “a ética é relativa às crenças e cada um”, o que se quer dizer, na verdade, é “qualquer decisão é igualmente plausível”, ou “Queres saber o que deves fazer? Faça qualquer coisa que quiseres”, ou ainda “Queres saber o que deves fazer? Faça qualquer coisa que achas que deve ser feito”, ou, em outras palavras, que “todas as decisões são moralmente opcionais”. Os dois tipos de visões sugerem, então, critérios objetivos para se responder as questões morais: uma sugere como critério as crenças das diferentes sociedades (relativismo moral); o outro sugere como critério as crenças dos diferentes indivíduos (subjetivismo moral).

Vimos que o relativismo incorpora as noções de moralmente obrigatório e moralmente opcional (tanto é, que torna errado discordar dos valores da sociedade na qual alguém se encontra). Já o subjetivismo afirma que todas as decisões são moralmente opcionais (segundo o subjetivismo, então, não é errado discordar dos valores da sociedade... embora também, segundo essa mesma visão, não seja errado a sociedade fuzilar quem discorda dos valores dela). Temos de perguntar, com relação ao relativismo, o seguinte: “por que sugerir como critério objetivo para saber o que devemos fazer as crenças sobre o que devemos fazer da sociedade em que estamos?”. Por que se basear nisso e não em qualquer outra coisa? Basear-se nas crenças da sociedade para obter a resposta correta sobre ética só faria sentido se os que constróem os valores das sociedades tivessem todo conhecimento moral do mundo. Mas, é exatamente isso que o relativismo nega. Eleger como critério de decisão sobre o que é certo e errado as crenças da sociedade só faria sentido se a sociedade jamais se enganasse (e se existirem verdades morais às quais os que constróem os valores das sociedades, e somente eles, tivessem acesso direto – que, ironicamente, é isso que o relativismo nega que exista). Mas, faz sentido discordar das decisões práticas da sociedade, não faz? Aliás, é essa a conclusão que se seguiria logicamente, se fosse verdade que todos os valores são meras construções sociais, desprovidas de razões a seu favor.

Alguém poderia pensar que isso nos conduziria ao subjetivismo moral. Porém, com relação ao subjetivismo, o mesmo tipo de problema é pior ainda. Faz sentido fazer a mesma pergunta: “por que escolher como critério para descobrir o que devemos fazer as crenças sobre o que cada um acha que devemos fazer?”. Ora, tal critério só estaria correto se todas essas crenças fossem igualmente plausíveis. Mas, o que é pior, isso gera um problema para o subjetivismo: se absolutamente tudo (todas as nossas decisões possíveis) é moralmente opcional, então também é moralmente opcional tratar aquilo que é moralmente opcional como moralmente obrigatório ou tratá-lo como moralmente opcional. Assim, por exemplo, de acordo com o subjetivismo, escolher que cor de camiseta utilizar é moralmente opcional, mas, também colocar uma bomba em alguém ou estuprar também é. Note que, de acordo com o subjetivismo, se alguém tratar a escolha pela cor da camiseta como moralmente obrigatório (digamos, alguém resolve fuzilar todos que não usarem roupa lilás), então que isso também é moralmente opcional e a pessoa não comete nada de mal ao fazer isso. Então, se também é moralmente opcional afirmar que algumas coisas são moralmente opcionais e outras moralmente obrigatórias, que sentido tem em se dizer que tudo é moralmente opcional? O subjetivista teria de dizer que aqueles que negam que nem tudo é moralmente opcional estão igualmente certos. O subjetivista teria de dizer que aqueles que afirmam que “é falso que é tudo muito subjetivo em ética” estão, com relação às decisões morais que tomam, tão certos quanto os que aceitam o subjetivismo. Assim, na melhor das hipóteses, o subjetivismo é uma posição “nula”, que não oferece nenhuma razão a seu favor. Isso porque a idéia de algo moralmente opcional só faz sentido em comparação ao moralmente obrigatório. Dizer que fazer x é moralmente opcional automaticamente implica em dizer que qualquer agente têm obrigação moral de permitir que se faça x e de não obrigar a se fazer x. É por isso que não tem sentido prático afirmar que “tudo é moralmente opcional”.

O subjetivista poderia objetar, nesse ponto, que defende que todas as decisões morais são igualmente plausíveis justamente por não haver um critério objetivo que possa nos dizer quais são melhores que quais. É sobre esses critérios que vou passar a falar agora. Comecemos por notar que o subjetivismo elege como critério para cada um descobrir o que deve fazer as próprias crenças de cada um sobre o que deve-se fazer. Há alguma coisa muito errada nisso tudo. E o erro é que o subjetivismo não leva em conta as razões pelas quais as pessoas acreditam que devem fazer algumas coisas, que não devem fazer outras, que outras são moralmente opcionais, etc (não faz sentido que a razão seja a própria crença da pessoa, pois, dessa maneira, não haveria motivo para a pessoa possuir tal crença). O subjetivismo não leva em conta, por exemplo, a diferença básica que faz com que escolher qual cor de roupa vestir seja igualmente opcional e que seja um dever não estuprar: não existirem razões para se preferir esta ou aquela cor, mas o sofrimento e outros danos para a vítima serem uma boa razão para se pensar que estuprar é um mal. Nesse ponto, ressurgiria a objeção perspectivista, da mesma maneira que surgiu com relação aos princípios básicos da razão. Ou seja, alegaria-se que, mesmo que fôssemos oferecer razões para sustentar uma conclusão moral, teríamos de apelar a um princípio moral mais básico e menos controverso. Só que, se alguém perguntasse o que sustenta esse princípio, teríamos de justificá-lo com base em outro ainda mais básico e menos controverso, e assim por diante. Segundo a objeção perspectivista, se fizéssemos essa pergunta, no final das contas descobriríamos que o princípio básico que sustenta todas as outras conclusões é um mero sentimento de aprovação diante de algumas coisas e de desaprovação diante de outras. Esse sentimento, segundo essa perspectiva, não estaria aberto à avaliação racional. E, já que existem sentimentos básicos de fundação moral conflitantes, não há como dizer qual deles está correto (e, mesmo que houvesse concordância quanto a esse sentimento, não haveria como dizer que alguém deve ter esse sentimento, para quem não o tivesse); assim conclui o argumento perspectivista. Penso que esse argumento, que tem origem no pensamento do filósofo David Hume, é o melhor argumento em defesa do perspectivismo. Contudo,  mesmo esse argumento tem sérios problemas. O maior deles é inverter a relação das coisas: não é que as pessoas têm certos sentimentos aleatórios de aprovação ou desaprovação moral diante de algumas coisas e depois consideram essas coisas moralmente certas ou erradas, respectivamente; mas, ao invés, que temos os sentimentos morais que temos diante de determinadas coisas porque já fizemos anteriormente um julgamento moral sobre elas, com base em outras razões que são independentes dos sentimentos. Ou seja, temos os sentimentos morais que temos porque concluímos que algumas são justificáveis (possuem boas razões a seu favor) e outras não. E, o que quero apontar na seqüência, é que essas razões não dependem dos sentimentos dos agentes. Embora seja verdadeiro que, como toda justificação, a justificação moral precisa ter início em princípios que não podem ser justificados com base em outros (porque eles são os mais básicos possíveis), nem por isso deve-se pensar que esses princípios são mera particularidade de quem os professa, como um gosto pessoal por uma determinada cor, por exemplo. Devemos aceitar tais princípios como racionais simplesmente por não haver nenhuma boa razão para duvidar de sua validade, como pretendo mostrar a seguir.

Gostaria de começar mostrando como é que geralmente se raciocina sobre questões morais. Essa forma de raciocínio está implícita mesmo quando pensamos intuitivamente (de maneira não formalizada) sobre uma questão moral. Supondo que alguém defenda a seguinte conclusão moral: “Comer carne é errado”. O argumento que sustenta essa conclusão poderia ser algo como o seguinte: (1) É errado causar morte e sofrimento desnecessariamente (premissa de valor); (2) Comer carne causa morte e sofrimento desnecessariamente (premissa factual); (3) Logo, comer carne é errado. Como os raciocínios morais são aplicações de princípios morais (a premissa de valor, no caso) a casos reais, o raciocínio moral sempre dependerá, em algum grau, de constatações sobre os fatos (a premissa factual). Assim, mesmo que fosse verdade que todo princípio de valor fosse igualmente válido (e é isso que pretendo negar na seqüência), ainda assim haveriam outras duas maneiras de alguém cometer um erro moral (em termos objetivos): ou alguém faz uma análise factual ruim (ou seja, a premissa factual na qual se baseia é falsa), ou, mesmo que se faça uma boa análise factual, ainda assim alguém poderia cometer um erro de lógica na hora de derivar a conclusão. Um exemplo do primeiro tipo de erro (factual), seria o seguinte argumento: (1) É errado causar dano a seres sencientes (premissa de valor); (2) Tijolos são seres sencientes; (3) Logo, é errado quebrar tijolos. Nesse caso, a conclusão é falsa porque a segunda premissa (factual) é falsa, e não devido ao princípio de valor que parte (como defenderei mais adiante, esse princípio está correto), e nem devido ao tipo de inferência que se fez (se as duas premissas fossem verdadeiras, então a conclusão seria verdadeira). Já um exemplo do segundo tipo de erro (de lógica), seria o seguinte argumento: (1) É errado causar dano a seres vivos; (2) Animais e plantas estão vivos; (3) Logo, é correto comer animais e plantas. Nesse caso, o erro é de lógica porque, mesmo que, com certeza, as duas primeiras premissas fossem verdadeiras (tanto a de valor quanto a factual), elas não suportam a conclusão (na verdade, as premissas sugerem o contrário da conclusão, pois a conclusão lógica seria a de que, então, é errado, e não, correto, comer esses seres).

Defenderei agora que também é possível cometermos um erro na primeira premissa (premissa de valor moral). Para entender como isso é possível, é preciso entender outras duas características importantes do raciocínio moral: coerência e relevância. Falarei primeiro da coerência, embora ela seja menos importante, e ela sozinha não consiga mostrar se há erro ou não com a premissa de valor (e nem com cada decisão específica). O que me refiro por coerência, em termos de pensamento moral, é que um agente siga a exigência de tratar casos relevantemente similares de maneira similar. A idéia é que um agente aplique um princípio moral não apenas a um caso específico (afinal de contas, se ele é um princípio, não ajudaria muito se só servisse para um caso específico), mas, a vários casos que mantenham entre si, as mesmas características que o princípio indica que sejam moralmente relevantes. Assim, uma maneira de errar (objetivamente!) em ética é por tratar de maneira diferente casos que são similares em tudo o que for relevante para saber como devemos tratá-los, ou vice-versa (tratar de maneira similar casos que possuem diferenças moralmente relevantes). Minha ressalva quanto à importância da exigência de coerência, em termos de descobrir qual a decisão correta, é que, se tal exigência sozinha tivesse esse poder, então a moralidade se trataria apenas de escolher aleatoriamente um princípio qualquer e, desde que se julgasse os outros casos coerentemente de acordo com ele (de acordo com o que ele diz que é relevante), então estaria garantido que as decisões estariam todas justificadas. Mas, a coisa não é assim. Faz sentido criticar alguém por aplicar um critério, mesmo que a aplicação seja coerente. Faz sentido porque o critério mesmo pode ser imbecil (pode ser basear numa característica irrelevante para o que está em jogo, pensando ser relevante). Só faz sentido cobrar coerência a um bom princípio. A exigência de coerência não possui o poder de mostrar o que é moralmente relevante e o que não é. Então, ela sozinha não consegue avaliar um princípio de valor (embora seja importante no sentido de exigir que se aplique coerentemente um bom critério).

Por exemplo, supondo que eu sou um médico e preciso escolher qual dos meus pacientes deve receber prioridade no atendimento. Supondo que o critério que eu escolha para construir o princípio moral que vou seguir é esse: pacientes com exatamente seis letras no primeiro nome recebem atendimento prioritário; com mais de seis letras recebem atendimento depois, e com menos de seis letras são largados para morrer. Suponha que eu seguisse coerentemente esse critério: que realmente desse prioridade a todo e qualquer paciente com exatamente seis letras no nome, e realmente atendesse depois os que têm mais letras no nome, e que realmente deixasse para morrer todos os que têm menos de seis letras. Minha decisão foi moralmente correta só porque foi coerente com o princípio que adotei para guiar a decisão? Não, exatamente porque escolhi um mau critério. E, é possível explicar o motivo pelo qual esse é um critério ruim: ele se baseia numa característica (o número de letras no nome) que é irrelevante para o dilema moral em questão. “Como saber o que conta como uma característica moralmente relevante e o que não conta?”, perguntaria o perspectivista. A resposta depende da seguinte pergunta: “o que há naquela situação específica que faz com que ela seja um problema moral?”. Na questão da prioridade no atendimento, por exemplo, poderíamos listar o dano causado pela morte, pelo sofrimento, a falta de recursos para atender a todos ao mesmo tempo, a maior ou menor vulnerabilidade de uns ou de outros, etc. Com certeza, o número de letras no nome não seria uma dessas características que tornam aquela questão um dilema moral. Portanto, alguém que seguisse um princípio moral baseado numa característica assim teria escolhido o princípio errado, objetivamente errado. Note que eu até poderia acertar, por sorte, em algum dos casos, mesmo tendo escolhido um critério imbecil (por exemplo, supondo que alguém que tivesse exatamente seis letras no nome fosse, por coincidência, também alguém cuja vulnerabilidade fosse maior e que necessitasse dos medicamentos antes de qualquer um dos outros, para poder sobreviver). 

Alguém poderia, nesse ponto, retrucar que tal raciocínio é de pouca importância prática porque quase ninguém segue um princípio baseado no número das letras do nome das pessoas atingidas pela sua decisão. Contudo, como pretendo mostrar na seqüência, a grande maioria das pessoas segue princípios morais, senão ainda piores, pelo menos igualmente ridículos, baseados nas características mais moralmente irrelevantes possíveis. A conclusão do raciocínio acima é que só faz sentido ser coerente com um princípio que se baseia numa característica moralmente relevante. Coerência por coerência não prova nem que em algum dos casos se tirou a conclusão correta. A insistência do apelo à coerência, por parte de alguns filósofos, talvez tenha levado algumas pessoas a pensarem que, em ética, tudo se resume à coerência. Quando se fala, por exemplo, “se você acha que é certo matar animais porque eles não são racionais, então tem que achar certo matar bebês, porque também não são racionais”, o que se pretende é mostrar ao interlocutor que, já que a falta de racionalidade dos bebês não torna certo matá-los, a falta de racionalidade nos animais não humanos não pode tornar certo matar estes. Não se quer dizer que, se a pessoa resolver sair assassinando animais não humanos e também bebês humanos porque eles não são racionais, então que ela está moralmente correta em todos esses casos, só porque foi coerente. Pelo contrário, como pretendo mostrar, se ela fizer isso, ela erra em todos os casos. Pensar que a moralidade se resume à coerência é esquecer do principal: só faz sentido ser coerente com um bom critério (ou seja, um que se baseie numa característica relevante). Da mesma maneira, quando se pergunta “mas, aceitarias que fizessem isso contigo?”, o que se quer é levar o interlocutor a pensar que, se quando ele é a vítima ele reconhece que fazer determinada coisa é errada (independentemente de se quem o faz é coerente ou não), e não há nenhuma característica moralmente relevante que o distinga de outras vítimas, então, que ele precisa reconhecer que é errado fazer a mesma coisa com os outros. O que não se quer dizer é que, se a pessoa em questão aceitar que façam alguma atrocidade com ela, então que ela está moralmente correta ao fazer atrocidades com os outros.  A coerência é um critério secundário, que só faz sentido à luz de princípios que se baseiem em características moralmente relevantes. Mesmo assim, atentando para a coerência é possível atentar para outra forma possível de se errar moralmente: tratar de maneira diferente dois ou mais casos que são similares em tudo aquilo que for moralmente relevante (ou, tratar de maneira similar dois ou mais casos que apresentam diferenças moralmente relevantes). Só que, isso tudo só faz sentido à luz da exigência de relevância.

Nesse ponto, alguém poderia perguntar: “por que você defende que as exigências de relevância e coerência geram razões que todos deveriam aceitar, e não são um mero sentimento seu de aprovação em relação a essas exigências?”. A resposta é que é irracional duvidar da validade desses critérios, e que isso não depende de sentimento nenhum (apenas de entendimento). Por exemplo, não faria sentido dizer “esses dois casos são similares em tudo o que for relevante para saber como devemos tratá-los, mas, mesmo assim, penso que devemos tratá-lo de maneira diferente um do outro”. Muito menos faria sentido dizer o seguinte: “Para descobrir como devemos tratar um caso, devemos pegar apenas o que for irrelevante para saber como devemos tratá-lo, e descartar tudo o que for de relevante para saber como devemos tratá-lo”. É por esse motivo que rejeitar esses critérios é ser irracional. Então, é falso que não existem razões (critérios que todos deveriam aceitar, sob pena de irracionalidade, independentemente de sentimentos), quando a questão é a moralidade. Note que dizer que relevância e coerência são essenciais ao bom raciocínio moral não quer dizer que eu sei exatamente quais são as características moralmente relevantes de cada caso e o que tornam dois casos relevantemente similares. Se alguém, por exemplo, objetar a minha análise anterior, alegando que levei em conta uma característica que não deveria (ou que faltou alguma que deveria ter levado em conta), não está a rejeitar a exigência de relevância: pelo contrário, está a dizer que me baseei em algo irrelevante (ou, que havia algo de relevante que não levei em conta). Tais críticas só fazem sentido se a exigência de relevância fizer. Portanto, não podem ser críticas contra a exigência de relevância.

Alguém poderia afirmar, mesmo aceitando a validade as exigências de relevância e coerência, que elas não nos dizem muita coisa sobre a moralidade, pois não oferecem nenhuma resposta “pronta” para nenhuma questão moral específica. É verdade que elas não oferecerão respostas prontas, pois são apenas o pilar inicial do raciocínio moral (o trabalho duro vêm em identificar o que há de relevante em cada situação), mas, é falso que elas não nos dizem muita coisa sobre a moralidade (pois, assim como se parte dos princípios básicos da matemática para desenvolver cálculos mais complexos, o mesmo acontece com a ética). Falarei agora de um segundo passo do raciocínio moral, que segue das exigências de relevância e coerência. Falei anteriormente da generalidade das razões. Quando se fala em razões no âmbito moral, essa generalidade tem formas específicas. As duas formas centrais dizem respeito à generalidade quanto aos agentes (os que tomam as decisões morais), e quanto aos pacientes (os que recebem o efeito da decisão). Note que essas duas categorias dizem respeito a condições, e não a indivíduos específicos: um mesmo indivíduo pode estar na condição de agente e de paciente, em diferentes momentos, e até ao mesmo tempo (como, por exemplo, quando é atingido por sua própria decisão). Quanto aos agentes, a generalidade das razões irá nos mostrar que, se eu tenho motivos para reconhecer que determinada decisão é moralmente obrigatória (ou, que é moralmente opcional), esses motivos não dependem de ser eu quem está pensando sobre elas (dependem, ao invés, de características moralmente relevantes da situação). Isso mostra que, se for moralmente obrigatório (ou moralmente opcional) eu fazer (ou deixar de fazer) determinada coisa, o é não apenas quando for eu que esteja tomando a decisão, mas qualquer agente. É isso que se quer dizer com generalidade: não se está a falar de justificativas para indivíduos específicos. Daí ser um erro o pensamento muito comum, de que a moralidade é uma coisa pessoal. A única maneira de justificar que um determinado agente não precisa cumprir um determinado dever moral, é dizer que característica moralmente relevante há no seu caso que o torna uma exceção (que faz dele um caso relevantemente diferente). Mas, note que essa justificativa também precisa ser geral: se a característica x for uma boa razão para dispensar A de cumprir determinado dever, é igualmente uma boa razão para dispensar qualquer outro agente que apresente a característica x (e não apenas A). Se, por sua vez, alguém alega que o agente B, apesar de apresentar a característica x, contudo, deveria cumprir o dever em questão, porque apresenta a característica y, então isso implica que (se o raciocínio estiver correto, ou seja, se a característica y realmente tiver o poder de anular x), não apenas B, mas qualquer outro agente que apresente as características x e y está dispensado de cumprir tal dever. A principal característica de uma razão é sua generalidade. Toda vez que se aponta uma exceção a uma regra, têm-se de apoiar em outra regra, também geral, que explique a exceção. Um erro muito comum é se pensar que o fato de um agente não acreditar que possui determinado dever o dispensa do cumprimento desse dever. Pensar assim é um erro porque qualquer razão que explique a existência de um dever não depende das crenças dos agentes para existir (e sim, de características da situação): como vimos, a verdade não depende da existência de crenças.

Já quanto aos pacientes da decisão, a generalidade das razões possui uma aplicação análoga. Se, por exemplo, é a característica x que torna errado matar o paciente A, então é errado matar todo e qualquer paciente que apresentar a característica x. Novamente, se apesar do paciente B apresentar a característica x, não for errado matá-lo porque ele apresenta também a característica y, então isso implica que não é errado matar todo e qualquer paciente que apresentar as características x e y, e assim por diante. Contudo, observe um ponto importante: nada nesse processo garante que escolheremos de certeza as características moralmente relevantes. Para garantir que a escolha esteja correta, não há outro remédio a não ser verificar sempre e sempre os mesmos raciocínios. Nesse ponto, os céticos morais (da maneira como uso o termo, me refiro àquelas pessoas que admitem que há verdade em ética, mas desconfiam do poder da razão em descobrir tais verdades), têm razão em apontar que o raciocínio ético não oferecerá demonstrações fechadas (imunes a críticas e novas revisões). Contudo, entre o extremo de se ter um método de raciocínio impecável e o outro de se descartar completamente a razão em um âmbito da vida, é melhor adotar um método de raciocínio qualquer, ainda que não seja perfeito. O raciocínio ético, mesmo da maneira que está desenvolvido até agora, permite sempre aprimoramento em seu próprio método. O raciocínio ético, embora não dê respostas fechadas, coloca o ônus da prova sobre o perspectivismo e ceticismo moral, em provar que tudo o que sai desse raciocínio é mera ilusão. E, quanto a não dar respostas imunes à novas críticas e revisões, o raciocínio ético não é exceção a outros tipos de raciocínio; não é, por isso, menos objetivo.

Essa moldura inicial do raciocínio ético pode parecer, à primeira vista, como tendo pouco poder de nos ajudar nos casos práticos. Mas, tal percepção inicial é ilusória. Na verdade, tal moldura é a única ferramenta disponível atualmente que pode nos ajudar a descobrir qual a decisão correta nos casos práticos (descobrir a verdade em ética). Por exemplo, ela já consegue mostrar por que o egoísmo é injustificável, e, tendo mostrado isso, podemos deduzir muitas outras implicações. Por “egoísmo” me refiro à teoria moral (ou seja, uma que visa dizer que decisões são justificáveis) e a prática que é conseqüência dela, embasada no seguinte pensamento: a possibilidade de diminuição ou aumento do meu bem-estar (necessidades, interesses, preferências, sofrimento, prazer, etc.) me oferecem uma razão para agir, fomentando o bem-estar, ao mesmo tempo em que o bem-estar de outros indivíduos (suas necessidades, interesses, preferências, sofrimento, prazer, etc.) não me oferecem (a menos que isso seja vantajoso para mim). Na seqüência, explicarei como a moldura inicial que expus do raciocínio ético consegue mostrar que o egoísmo é injustificável.

terça-feira, 15 de janeiro de 2013

IGUALDADE SENCIENTE - parte 1

VERDADE, RAZÃO, JUSTIFICATIVA EM ÉTICA E OS SERES SENCIENTES

Luciano Carlos Cunha [1]

PARTE 1: Algumas distinções importantes para uma raciocínio fazer sentido em qualquer área do pensamento


Um dos maiores impedimentos ao bom raciocínio é a ambigüidade com o uso dos termos. É comum a utilização de uma mesma palavra para se referir a duas ou mais idéias diferentes sem perceber, ou seja, acreditando-se estar a falar da mesma idéia. O contrário também é freqüente: por se utilizar duas palavras diferentes, não se percebe que, muitas vezes, está a se falar da mesma idéia. É possível que essas duas confusões apareçam em conjunto também. 

Muito se fala que “a verdade é uma mera construção social” e que, “em ética, é tudo muito relativo”. Na base dessas alegações muitas vezes (ainda que nem sempre) se encontra algum problema de ambigüidade. O que dá a aparência de plausibilidade nessas teses, muitas vezes, é a ambigüidade com o que se quer dizer com os termos “verdade” e “ética”. Eliminadas as ambigüidades, essas teses se revelam muito mais implausíveis do que inicialmente pareciam. Para evitarmos o problema de ambigüidade, e para entendermos a ambigüidade muitas vezes presente nessas alegações, começarei definindo o que quero dizer com os termos “verdade”, “crença”, “conhecimento”, “justificação” e “razão”. Somente na segunda metade do artigo é que trataremos da ética, mais especificamente.

Uma das características principais da verdade é que ela não é estatística nem consensual. Suponha, por exemplo, que houve um assassinato, e o indivíduo A matou o indivíduo B. Existem dois suspeitos: A e C. Quando se pergunta “qual é a verdade sobre quem matou B?”, a verdade é que foi A e não C. A verdade sobre esse acontecimento não mudaria nem mesmo se a maioria das pessoas pensasse que foi C, e nem mesmo se todo mundo pensasse que foi C. Se a maioria (ou mesmo, todos) pensasse que foi C, poderia até parecer verdade que foi C quem matou B, mas a verdade, é que foi A. É só devido a verdade não ser estatística nem consensual que é possível da maioria (ou, inclusive, todos nós) estarmos enganados a respeito de determinada coisa. E, muito importante: a verdade é independente de qualquer crença (ou seja, é independente daquilo que acreditamos ser verdadeiro). Certamente há uma verdade sobre que planeta surgiu primeiro, e haveria tal verdade mesmo que não existissem crenças com relação à resposta verdadeira para essa pergunta (ou seja, mesmo que ninguém nunca tivesse feito essa pergunta, e mesmo que nunca tivessem existido seres capazes de ter crenças).

Como espero ter ficado claro do que expus acima, estou a utilizar a palavra “crença” num sentido geral, para se referir a qualquer coisa que pensamos ser verdadeira, sobre qualquer assunto, quer tenhamos justificativa para acreditar assim ou não (não estou a me referir somente a crenças no sentido religioso da palavra). Muito do que se faz quando se diz “essa é a sua verdade”, “cada pessoa tem uma verdade”, é confundir a idéia de verdade com a idéia de crença. O que se quer dizer com essas afirmações, na verdade, é: “essa é a sua crença” (ou seja, é isso que você acredita que seja verdadeiro) e “cada pessoa tem uma crença diferente” (no sentido de dizer que as pessoas tem crenças divergentes sobre qual a verdade em determinado assunto). O problema é que geralmente essas afirmações são feitas como pretendendo montar um argumento com o objetivo de dizer que a posição do interlocutor não é tão plausível. E é exatamente isso que esse argumento não consegue fazer: constatar que existem crenças divergentes sobre um determinado assunto não mostra que todas essas crenças são igualmente verdadeiras (aliás, se elas discordam entre si, é impossível que sejam todas verdadeiras). Usar as palavras “verdade” e “crença” como se fossem sinônimos tem o efeito nefasto de tornar confuso qualquer raciocínio. Uma crença é aquilo que alguém acredita ser verdadeiro.

Crença não é a mesma coisa que verdade. Uma crença ou é verdadeira ou é falsa. Por exemplo, com relação ao exemplo anterior, se eu dissesse “foi A quem matou B”, isso é uma crença (uma crença verdadeira, visto que, no exemplo, foi mesmo A quem matou B). Se, por outro lado, eu dissesse “foi C quem matou B”, isso também é uma crença (mas, uma crença falsa). Daí podemos tirar uma conclusão importante: o fato de existir uma crença não indica que seja verdadeira (ou falsa). Daí a inutilidade para um debate alguém afirmar “essa é a sua verdade” (no sentido de “essa é sua crença”) ou “cada pessoa tem uma verdade” (no sentido de “cada pessoa tem uma crença diferente”). Geralmente, quando se faz essas afirmações em um debate, o que se quer é dizer que a posição do interlocutor não é plausível (ou, que todas as posições são igualmente plausíveis; o que é impossível se elas forem posições contrárias). Só que, como vimos, se o fato de existir uma crença não indica que ela seja verdadeira, tampouco indica que seja falsa. Indicar que algo é uma crença não contribui em nada para o debate. A resposta para se saber se é uma crença verdadeira ou falsa precisa ser procurada em outro lugar. É só quando entendemos a distinção entre verdade e crença que é possível perceber que somos falíveis (isto é, é possível de estarmos enganados em ter as crenças que temos). Se verdade e crença fossem a mesma coisa, ou se uma dependesse da outra, ninguém se enganaria nunca.




Tendo distinguido verdade e crença, é necessário distinguir esses dois conceitos do conceito de conhecimento. Para existir conhecimento, não é suficiente que uma crença seja verdadeira. Para entender por que, considere esse exemplo: eu gostaria de saber se 3+21 é 24 ou 23. Supondo que alguém responda: “24” (que é a resposta correta, ou seja, é a verdade sobre essa pergunta). Não podemos deduzir, do fato da crença da pessoa estar correta, que ela tem conhecimento sobre a resposta correta. Isso porque ela pode ter simplesmente “chutado” a resposta, e, portanto, não saber o que torna essa crença verdadeira (e, nem saber se a crença é verdadeira ou não). Assim, na idéia de conhecimento está envolvida a idéia de justificação. Justificação remete a explicar por que uma crença é verdadeira  (é a busca por algo que permita testar se a crença é verdadeira ou não).


Existem duas maneiras básicas de se cometer um erro de justificação. A primeira é escolher um método ruim de justificação. No exemplo anterior, vimos que chutar a resposta é, obviamente, um método ruim (é um método que não tem poder nenhum de explicar o que faz com que uma resposta seja correta). Outros métodos igualmente ruins seriam: “3+21 é 24 porque meu irmão me disse”; “porque a maioria acha que é”; “porque joguei os dados (ou, os búzios, ou as cartas) e deu 24”; “porque todos os especialistas no assunto concordam que é 24”. Os métodos do apelo à autoridade do irmão ou da maioria são ruins porque é possível que o seu irmão esteja enganado, bem como a maioria esteja. O método dos dados, búzios ou cartas é igual ao do “chute”: se acertar, é por pura sorte; não têm o poder de explicar nada. E, nem mesmo é um bom método o apelo ao fato das autoridades no assunto não discordarem da resposta porque, além de também ser possível das autoridades se enganarem, se elas acreditam em alguma coisa, é devido a alguma razão (e não, o inverso, que o fato delas acreditarem em algo transforma isso numa razão). Tais pessoas são vistas como autoridades no assunto porque sabem muito do método adequado para justificar crenças no assunto em questão. É uma demonstração a partir desse método que alguém quer, quando pede para uma justificativa em determinado assunto.

A segunda maneira básica de cometer um erro de justificação é adotar o método adequado de justificação, mas cometer um erro em algum dos passos do processo de justificação. No nosso exemplo anterior, a única resposta plausível, em termos de justificação, tem de vir do próprio raciocínio matemático (alguém fazer o cálculo, passo a passo, por exemplo). Nenhum outro método (histórico, biológico, político, psicológico, ético, físico, etc.) tem o poder de mostrar que uma crença matemática é justificada ou injustificada (em outra parte do artigo farei uma afirmação similar com relação à justificação em ética ter de vir do próprio raciocínio ético). Por exemplo, alguém poderia oferecer uma explicação sobre os motivos psicológicos que levam alguém a acreditar que 21+3 é 24, apontando que tal pessoa têm uma admiração muito grande pelo seu irmão, e que acredita em tudo o que ele diz. Mesmo que essas explicações sejam verdadeiras em termos de explicar como alguém sustenta as crenças que sustenta, não têm o poder de mostrar que a crença “21+3=24” é verdadeira ou que é falsa. Tal resposta só pode vir do próprio raciocínio matemático. Mas, mesmo quando adotamos o método correto de justificação, ainda assim nosso raciocínio não está seguramente isento de erros. Podemos, por distração ou outro motivo qualquer, cometer um erro no processo de justificação, e, devido à isso, chegar à conclusão errada. Note que o perigo aqui é exatamente o inverso de escolher um método ruim de justificação: escolhendo um método ruim, alguém pode chegar por sorte numa conclusão correta (a conclusão é sustentada pelos motivos errados); escolhendo o método adequado, se cometermos algum deslize no processo desse método, corremos o risco de partir das razões corretas e chegarmos na conclusão errada. Contudo, mesmo assim, é preferível a escolha pelo método adequado: a probabilidade de chegarmos na conclusão correta é infinitamente maior do que se contarmos com a sorte, além de se ter a vantagem de se conseguir explicar o que torna aquela crença verdadeira. Outro fator importante mostra a inutilidade de se escolher o método inadequado de justificação, mesmo que a resposta esteja, por sorte, correta: alguém que escolhe um método assim não tem como saber se a resposta está correta. Saber que a resposta obtida pelo método ruim, por sorte, estava correta, só pode ser constatado a partir do método adequado. É por esse motivo que um método ruim de justificação, mesmo que, por sorte chegue na resposta correta algumas vezes, nunca possibilita conhecimento. A escolha do método adequado de justificação tem ainda outra vantagem: permite que outras pessoas investiguem o passo-a-passo do nosso raciocínio, e encontre o ponto em que erramos, permitindo, assim, a correção do raciocínio.

Do que foi exposto acima, podemos concluir que um bom método de justificação precisa conter nele a possibilidade de que qualquer um que o compreenda possa verificar o processo de justificação e conferir se ele está correto. Assim, um bom método de justificação precisa apelar a padrões comuns para qualquer um que consiga compreender as noções em questão. É nesse ponto que chegamos à idéia de razão. A principal característica da razão é a generalidade. Por “generalidade”, o que se quer dizer é que, se algo provê uma razão para acreditar que uma conclusão é verdadeira, essas razões não podem ter como objetivo servir de justificativa apenas para mim ou para minha comunidade, por exemplo[2]. Quando se oferece uma razão para acreditar em algo, o objetivo é que tal argumento sirva como justificativa para qualquer um que faça os passos do processo de justificação no meu lugar. Nesse ponto, é muito importante fazermos uma distinção, para que não aconteça uma confusão comum: entre demonstrar e convencer. O que se quer dizer com “sirva como justificativa para qualquer um” não é que todo mundo aceitaria a conclusão, mas que todo mundo deveria aceitar (mesmo os que não a aceitassem não conseguiriam explicar o que há de errado com ela). A diferença toda reside em apontar o que há de errado com o raciocínio ou não. Se alguém, por exemplo, afirma “esse argumento não me convenceu” não refuta o argumento, a menos que ofereça razões explicando o que há de errado com o argumento. Essas razões, por sua vez, precisam também ser gerais: elas precisam ser inteligíveis para qualquer um (e não apenas para ele ou para a comunidade dele). Se elas, por sua vez, parecem não funcionar para explicar o erro com o raciocínio que não convenceu, também quem pensa que elas não funcionam precisa explicar o que há de errado com elas, e assim por diante. Novamente, essa explicação precisa ser geral. Assim, nem o fato de a maioria (ou até mesmo todo mundo) ter se convencido por um argumento mostra que ele é bom (porque essas pessoas podem não ter percebido os erros no argumento), e nem o fato de ninguém ter se convencido por um argumento mostra que ele é ruim (porque as pessoas em questão podem não estar querendo dar ouvidos à razão). Convencer ou não convencer não diz nada sobre se um raciocínio é sólido ou não. A resposta para isso só pode vir dos próprios métodos de justificativa racionais. É claro, esperamos que um bom raciocínio também convença as pessoas de algo, mas ele deve convencer porque é bom, e não, que se torna bom porque convence.

O que foi mencionado no parágrafo anterior pode parecer circular para algumas pessoas. “O próprio processo de raciocínio justifica a  crença de que a razão conduz à verdade?”, perguntariam. Antes de entrar nesse tópico, gostaria de apontar que algumas noções (como a de verdade e a de razão) são inescapáveis, no sentido de que é impossível nos situarmos em um ponto neutro onde possamos pensar alguma coisa sem pressupor essas noções. Peguemos um exemplo com a idéia de verdade. Muitas vezes, quando se afirma “não existe verdade”, o que se quer dizer com o termo “verdade” é outra coisa. O que se quer dizer, geralmente, é que existem crenças divergentes e que é difícil saber quais delas são corretas (quais são verdadeiras); ou ainda, que em determinados assuntos não há como saber quem está certo, e assim por diante. Note que tudo isso se refere à impossibilidade de conhecimento (impossibilidade de se justificar crenças), em determinado assunto, e não à verdade. Pelo menos, entender essa alegação desse modo é a única maneira de não tornar auto-refutante a afirmação “não existe verdade” (vamos chamá-la de proposição A). Pois, se tal afirmação refere-se mesmo à verdade, ela se auto-anula. Se não existe verdade, como essa afirmação pretende ser verdadeira? Se essa afirmação for verdadeira (se não existir verdade), então ela é falsa (porque então, existe uma afirmação verdadeira). Se, por outro lado, afirma-se que nem mesmo essa afirmação é verdadeira (ela confirma sua própria tese), então o que se está a afirmar é que: “é verdadeiro que a proposição A é também não verdadeira (ou, que é ‘muito subjetiva’)” (vamos chamar essa segunda afirmação de proposição B). Nesse caso, teria-se de dizer que alguém que acredita que a afirmação “não existe verdade” é verdadeira em termos objetivos está enganado (ou seja, possui uma crença objetivamente falsa), o que também é auto-refutante. Além de que, se é afirmado que “nem mesmo a afirmação ‘não existe verdade’ é verdadeira”, então não se oferece nenhuma razão para se acreditar nessa afirmação. Se, novamente, o perspectivista diz que até mesmo a proposição B é subjetiva, então, dá um outro passo atrás e faz outra afirmação objetiva: “é verdadeiro que a proposição B também é ‘muito subjetiva’, e quem pensa o contrário está objetivamente enganado” (vamos chamar essa terceira afirmação de proposição C), e assim, infinitamente, se tentar novamente perspectivar essa afirmação. Isso mostra que, para expressarmos uma proposição, é necessário nos apoiarmos em um ponto de vista objetivo, e isso inclui também toda tentativa de perspectivar algo. Toda vez que se tenta perspectivar algo, se dá um passo atrás em busca de um ponto de apoio objetivo para que a perspectivação faça sentido. É por isso que o perspectivismo total é auto-refutante. Note que, seja lá qual a forma que se exponha o perspectivismo total (como verdade ou como também subjetivo), ele é sempre auto-refutante, porque pressupõe a idéia de verdade, ao mesmo tempo que pretende negá-la. Ele a pressupõe tanto se pretende ser uma afirmação verdadeira quanto se pretende ser não-verdadeira (nesse caso, teria-se de dizer que alguém que acredita que ela é verdadeira está objetivamente errado).

O mesmo acontece em alegações do tipo “a verdade é uma mera construção social” ou “a verdade nada mais é do que aquilo que os que detém o poder querem que seja”. Geralmente, essa máxima é tão facilmente aceita porque se está a pensar em outra coisa, que não a verdade, com o uso do termo “verdade”. O que se quer referir, na maioria das vezes, não é nada com relação à verdade em si, mas a aquilo que é passado como verdade. Se a pessoa que aceita tal máxima assume que é isso mesmo que quer dizer (que se está utilizando a palavra “verdade” num sentido muito peculiar, para significar as crenças dos que detém o poder), então sua afirmação não nega, nem um pouco, a existência de verdades objetivas. Aliás, essa afirmação pretende ser verdadeira em termos objetivos. Ou seja, pretende afirmar que a frase “aquilo que é passado como verdadeiro nada mais é do que as crenças dos poderosos” é verdadeira. Se o perspectivista com relação à verdade (aquele que diz que a verdade é uma mera construção), por sua vez, objeta afirmando que não queria se referir ao que é passado como verdadeiro, mas exatamente à verdade em si, então torna o seu argumento auto-refutante. Isso porque tal crítica só faz sentido se houver valor de verdade sobre essa questão (ou seja, que as afirmações feitas sobre essa questão sejam, ou verdadeiras, ou falsas). Tal crítica se baseia na afirmação de que a verdade é uma mera construção cultural, quando pretende ser verdadeira em termos objetivos, e não, meramente uma construção cultural que só é verdadeira dentro de determinada comunidade (não confundir com “só é vista como verdadeira dentro de determinada comunidade”, como será explicado no parágrafo a seguir). Por isso, é auto-refutante.

Nesse ponto, é possível que surja outra confusão. O perspectivista poderia afirmar que está mesmo a dizer que, inclusive o seu próprio argumento só é verdadeiro dentro de uma determinada comunidade, e que não pretende que seu argumento tenha validade para qualquer outro indivíduo. Ao fazer essa objeção, o perspectivista confunde os domínios descritivo e normativo do pensamento. Segundo entendo essa objeção, o que o perspectivista quer dizer é que nada garante que outros indivíduos de outras comunidades aceitarão o seu argumento, e que nada garante que outros indivíduos considerarão o argumento como válido. Note que todas essas observações são descrições sobre o que as pessoas fariam (domínio descritivo). Mas, não é esse sentido que está envolvido quando se critica a negação total da verdade como auto-refutante. Quando se diz que o perspectivista, com a pretensão de negar toda a verdade, ao mesmo tempo pretende que essa afirmação seja verdadeira em termos objetivos, não se quer dizer que o perspectivista acha ingenuamente que todos aceitarão o argumento (domínio descritivo); mas, ao invés, que precisa acreditar, para que seu argumento faça sentido, que todos deveriam (que têm boas razões para) aceitar o argumento (um pensamento que pertence ao domínio normativo).

Outra confusão possível seria o perspectivista alegar que o que está a dizer é que a noção de verdade é uma construção cultural. Ou seja, com isso, querer dizer que a idéia de que existem coisas verdadeiras e coisas falsas (e não, a verdade em si) só pode acontecer dentro de uma cultura. Mesmo se isso for verdade, não monta um argumento para se concluir que, então, a verdade é uma mera construção cultural. Quando se retrata a verdade como mera construção cultural, o que geralmente se pretende é desacreditar o argumento do interlocutor, afirmando que ninguém tem motivos para acreditar nele. Ora, mesmo se for verdade que a idéia de que existem coisas verdadeiras e coisas falsas é produto da cultura, isso não diz nada quanto ao status dessa idéia (não prova que ela é uma idéia falsa; aliás, se provasse, também seria auto-refutante, pois tal prova dependeria da existência de verdade).  Assim, quem afirma que a verdade é uma mera construção cultural não quer que a afirmação “a verdade é uma mera construção cultural” seja uma mera construção cultural; quer que seja verdadeira, ponto. Se o perspectivista negar esse ponto, e afirmar que essa afirmação também é uma mera construção cultural, que ninguém tem razões para valorizar, então não precisamos dar ouvidos a ela. E, mesmo que essa saída fosse tentada, não se escaparia da pretensão de que aquilo que se afirma seja verdadeiro em termos objetivos: o perspectivista está, agora, a afirmar que sua frase também é uma mera construção social (uma afirmação que pretende ser objetivamente verdadeira, ou seja, quem pensar que ela não é também uma mera construção social estaria objetivamente enganado). Essa nova afirmação de segundo nível, sobre o que havia afirmado anteriormente, pretende ser verdadeira em termos objetivos, o que faz com que se auto-anule. A conclusão é que toda vez que se tenta perspectivar (relativizar, subjetivizar) algo, tem-se que apoiar num ponto de apoio exterior, que pretende ser verdadeiro em termos objetivos. Daí ser auto-refutante qualquer tentativa de negar a verdade em geral.

O exemplo acima visa mostrar que a noção de verdade é inescapável. Não há como fazer nenhum raciocínio sem ela. Com isso não se quer dizer que a pessoa em questão não está aberta para a possibilidade de estar errada. A pessoa pretende que aquilo que falou seja verdadeiro, mas pode reconhecer que, como ela é falível, talvez tenha cometido um erro no processo de justificação. Uma coisa é dizer “há uma verdade sobre essa questão”, outra é dizer “eu, com certeza, sei qual é a verdade”. É por isso que não faz sentido acusar alguém que afirma que existe verdade em determinado assunto,  por esse motivo, de não estar aberta para a possibilidade de ter se enganado. A própria possibilidade de alguém estar enganado depende de existir uma verdade sobre tal assunto. São os que negam a existência de verdade que tem que admitir que, se fosse assim, então, ninguém se engana nunca, e ninguém precisa estar aberto a revisar suas crenças (nem mesmo os que discordam da negação da verdade, o que torna o argumento de que não existe verdade auto-refutante).

Com o exemplo a seguir, pretendo mostrar que, assim como a idéia de verdade é inescapável em qualquer afirmação ou negação, também não temos como fugir da razão. Mencionei acima que a escolha da razão como método de justificação poderia parecer circular. Supondo que alguém ofereça um argumento mais detalhado do que esse, para afirmar que a razão não é confiável (digamos que a pessoa esteja defendendo, ao invés, que confiemos em nossas intuições ou no que as autoridades dizem – o que chamarei de irracionalidade): “se você fundamenta a razão numa intuição, comete contradição; se você fundamenta a razão na própria razão, cai num círculo vicioso”. Existem dois problemas graves com esse argumento. O primeiro, é que, se alguém fundamenta a tentativa de dizer que a razão  não é confiável na razão (ou seja, se oferece um argumento para dizer que qualquer apelo à razão não é válido, como foi feito acima), comete contradição; já, ao invés, se fundamenta tal tentativa na intuição (ou em qualquer outra coisa que não seja a razão), cai num círculo vicioso (usa a intuição para justificar a intuição, por exemplo). O segundo problema, é que faz sentido acusar de contradição o apelo a razão para justificar a irracionalidade, assim como faz sentido acusar de circularidade o apelo à própria irracionalidade para justificar a irracionalidade (mesmo que tais acusações sejam circulares). Agora, não faz sentido acusar de contradição o fundamentar a razão na intuição e de circularidade o fundamentar a razão na razão, pois não contradição e não circularidade são dois princípios básicos da razão, e só faz sentido apelar a eles se a razão também fizer. Não faz sentido dizer que essas regras nunca são válidas, a não ser quando o perspectivista quer montar sua objeção contra elas. Por esse motivo, qualquer argumento com vistas a rejeitar por completo a confiança na razão é auto-refutante[3].

O exemplo acima mostra que algumas tentativas comuns de eliminar a confiança na razão estão fadadas ao fracasso. Por exemplo, é comum o argumento de que “a razão é apenas uma ferramenta que nos foi útil em termos evolutivos; não faz sentido pensar que seus princípios básicos revelam a verdade”; ou ainda, que “a razão é um mero produto cultural, e nunca pode revelar verdades universais”. O problema com tais argumentos é que, se a razão nunca for confiável, então não podemos confiar nem nesses argumentos, e nem nas teorias das quais eles partem para serem construídos (por exemplo, das descobertas da biologia e da sociologia). Para esses argumentos fazerem o mínimo de sentido, a razão precisa ser confiável (precisa não apenas ser algo do qual não se pode escapar, mas também algo com poder de revelar a verdade!). Se a razão nunca for confiável, nenhum argumento o é, nem o que afirma isso. Por isso, qualquer tentativa de negar a razão por completo é sempre auto-refutante. Qualquer tentativa de provar que a razão nunca é confiável precisa estar amparada em um argumento, para fazer sentido. Só que argumentos só fazem sentido se a razão fizer (argumentos são produto da razão). É por isso que a razão é algo do qual não se pode escapar. Não há um ponto “de fora” onde seja possível nos situarmos para tentar provar qualquer coisa, que não tenha que estar amparado em um argumento. Mas, além de ser inescapável, a razão possui o poder de nos direcionar rumo à verdade; pois, se não for assim, nenhum argumento, nenhuma dúvida faz sentido, nem mesmo os argumentos utilizados para negar a validade da razão e as dúvidas quanto ao poder da razão em nos conduzir rumo à verdade. Muito importante: estamos a falar aqui de dúvidas com relação à razão como um todo (todo e qualquer raciocínio), e não dúvidas com relação à validade de um raciocínio específico.

A acusação da circularidade de se fundamentar a razão na razão remete ao seguinte: quando queremos justificar uma conclusão, apelamos a outros princípios mais gerais e menos controverso, para dar base à conclusão. Se perguntarmos pelo que sustenta o princípio geral que sustentou a primeira conclusão, temos de apelar a outro ainda mais básico e geral, e ainda menos controverso, e assim por diante. O que acontece é que não é possível fazer isso de maneira infinita, pois, se fosse assim, nunca chegaríamos a nenhuma conclusão. Alguns princípios de raciocínio precisam ser dados como verdadeiros, mesmo que não se possa prová-los com base em outros mais básicos (porque eles são os mais básicos possíveis, até onde se sabe). Isso não quer dizer que aceitar esses princípios seja como jogar os dados para provar que os dados são guias confiáveis. A diferença toda reside em que é impossível pensar qualquer coisa que faça sentido sem a aceitação de que esses princípios são verdadeiros (por exemplo, o princípio da não contradição e outros princípios básicos da lógica). Vimos que esses princípios são aceitos como verdadeiros mesmo nos argumentos que pretendem negar a validade da razão como um todo (o que os torna auto-refutantes). Além disso, não há um bom motivo para duvidarmos de sua validade (haja vista que qualquer crítica sobre eles precisa, para fazer o mínimo de sentido, pressupô-los como válidos). Além disso, a circularidade da justificação desses princípios básicos não é dogmática. Como vimos, a razão é auto-corretiva e qualquer um que entenda determinada questão tem acesso aos processos de justificação e à possibilidade de fazer a correção de um raciocínio que se descobre estar errado. No apelo a autoridade, revelação ou intuições, não há nada disso; apenas dogmas. A razão é auto-corretiva porque sempre é possível criticar e avaliar todo e qualquer princípio, mas sempre com base em outros. É possível criticar e aprimorar cada um deles, mas um de cada vez, sempre se apoiando em outro menos controverso (a filosofia tem feito isso desde a antigüidade). O que não é possível é criticar todos com base em nenhum[4]. É por isso que negações totais da razão (diferentemente de críticas a raciocínio específicos ou até princípios de raciocínio específicos) são auto-refutantes.

Com as distinções feitas anteriormente, entre verdade e conhecimento, podemos reparar em duas posições diferentes, que muitas vezes são confundidas, com relação a esses conceitos: perspectivismo e ceticismo. Nesse ponto, estou a falar do que chamo de perspectivismo e ceticismo totais (e não, sobre assuntos específicos, como a ética, por exemplo). O perspectivismo total nega a existência de verdade em geral. Duas formas de perspectivismo são bem conhecidas: relativismo e subjetivismo. O relativismo geral diz que tudo o que há são diferentes crenças de diferentes sociedades, mas que não existe verdade objetiva. O subjetivismo geral faz a mesma afirmação, só que não com relação a sociedades, e sim, com relação às crenças dos diferentes indivíduos. Como vimos, tais posições são auto-refutantes, porque pretendem ser verdadeiras (e verdadeiras de maneira objetiva, independentemente do que a sociedade ou os indivíduos acham). Um relativista ou subjetivista gerais, por exemplo, acha que está enganado (objetivamente enganado, e não apenas, enganado para o perspectivista) aquele que pensa que existe verdade objetiva.

Já o ceticismo geral reconhece a existência da verdade. Contudo, nega a possibilidade de conhecimento. O ceticismo geral é um ceticismo diante da razão. O cético geral não acredita que possamos chegar a algum conhecimento através da razão, justamente por sermos falíveis. Portanto, nunca poderemos ter certeza absoluta de que nossas conclusões são verdadeiras (certeza absoluta de não termos cometido um erro na justificação, por exemplo). Note que o ceticismo, diferentemente do perspectivismo, assume a existência da verdade. Portanto, o ceticismo geral não é auto-refutante por assumir a existência da verdade (já que ele não visa negar a existência da verdade). Contudo, ele é auto-refutante se assumir que “com certeza, não podemos confiar na razão”, já que o ceticismo total nega que seja possível certeza sobre qualquer coisa. Então, na melhor das hipóteses, o ceticismo total oferece uma razão para duvidar dele: se temos de sempre ter dúvida, devido à nossa falibilidade, então temos de ter dúvida sobre o ceticismo total e sobre nossa falibilidade também. Talvez seja possível termos certeza absoluta de alguma coisa.

Outra distinção importante é entre: (1) perspectivismo e ceticismo totais e  (2) perspectivismo e ceticismo em domínios específicos (como na ética, por exemplo). As formas de ceticismo e perspectivismo específicos não são automaticamente auto-refutantes. Contudo, isso não indica também que estejam necessariamente corretas. A resposta para isso precisa ser descoberta raciocinando-se sobre cada área em questão. O perspectivismo específico assume que existe verdade em geral, mas nega que exista verdade objetiva com relação a uma determinada área do pensamento (enquanto que assume que existe em outras). Essa forma de perspectivismo não é automaticamente auto-refutante: faz uma afirmação que pretende ser verdadeira, mas não nega a verdade em geral (nega apenas em um domínio específico do pensamento). Já o que estou a chamar de ceticismo específico, apesar de reconhecer que há verdade objetiva (tanto em geral quanto na área específica na qual é cético com relação à possibilidade de conhecer a verdade), reconhece que é possível ter conhecimento em algumas áreas, mas não em outras. Essas formas de perspectivismo e ceticismo não são auto-refutantes porque pretendem ser verdadeiras, mas não negam que exista verdade. Se alguém fala “tudo é muito relativo”, faz sentido perguntar “isso também?”, o que sugere que a afirmação é auto-refutante. Mas, se alguém fala “em ética, é tudo muito relativo”, isso não é automaticamente auto-refutante, já que o que a pessoa quer dizer não é que não existe verdade, mas sim, que “a verdade é que, em ética, é tudo muito relativo”. Contudo, como mencionei, o fato de um argumento não ser auto-refutante não indica que a crença que ele visa sustentar é verdadeira. Pode ser que o argumento seja ruim por outros motivos, e pode ser que a crença em questão seja falsa, apesar de não ser auto-refutante.

No restante do artigo, argumentarei contra o perspectivismo e ceticismo especificamente com relação à ética. As duas posições se diferenciam no seguinte: o perspectivismo ético (seja na forma do relativismo, seja na forma do subjetivismo) nega que haja verdade objetiva em ética (já que negam a existência de verdade objetiva em ética, negam também a possibilidade de um raciocínio em ética, com vistas a descobrir essas verdades objetivas); já o que estou a chamar de ceticismo ético diz respeito à posição que acredita haver verdade objetiva em ética, mas que defende que somos demasiadamente falíveis para conseguir descobri-las (lança dúvidas sobre a capacidade da própria razão e da nossa habilidade com a razão, em descobrir verdades morais).

Para entendermos o perspectivismo ético, é interessante olharmos para um exemplo. Como mencionei antes, negações da verdade em domínios específicos são diferentes de negações da verdade em geral. É possível que alguém negue que exista verdade objetiva em um domínio e aceite que exista em outro. Por exemplo, é possível que alguém acredite que exista verdade objetiva com relação aos fatos físicos, mas não com relação às perguntas “qual a decisão correta?” e “qual a cor mais bonita?”. Peguemos por ora os dois exemplos menos controversos (o dos fatos físicos e o da beleza das cores). A maioria de nós aceita que existem verdades objetivas sobre os fatos físicos. Por exemplo, certamente há uma verdade sobre quem foi Jack o estripador, mesmo que nenhum de nós saiba quem foi. Concordamos que há uma verdade sobre a idade do planeta Terra, sobre o motivo do desaparecimento dos dinossauros, e se sobre Luciano Cunha assaltou ou não geladeira ontem a noite. Em contrapartida, a maioria de nós concorda que não existe verdade objetiva com relação à beleza das cores. Se encontrarmos duas pessoas discutindo sobre qual a cor mais bonita, lilás ou verde, pensaremos que essas pessoas estão iludidas; estão pensando que há valor de verdade sobre uma questão cuja única verdade é que não existem razões para acreditar que uma cor é melhor do que outra; tudo se resume, nesse caso, a gosto pessoal. Tendo entendido essa diferença, podemos entender o perspectivismo com relação à ética: no entender dos que defendem o perspectivismo com relação à ética, esta seria como o gosto por cores, e não como reportar fatos. Diferentemente de acessar fatos físicos (onde é possível investigar se o que se fala é verdadeiro ou falso), tudo o que podemos fazer em ética, no entender dos perspectivistas, é reportar algo sobre nós (nossos gostos pessoais ou exprimir sentimentos, por exemplo). Não há, no entender dos perspectivistas, verdade objetiva sobre as questões éticas, e todo mundo está igualmente certo (não temos razões – o que pressupõe generalidade, como vimos - para preferir essa ou aquela posição).

Um dos argumentos utilizados para sustentar a tese do perspectivismo moral é o factualismo. O factualismo basicamente diz o seguinte: toda afirmação que possui valor de verdade (isto é, que pode ser verdadeira ou falsa, em termos objetivos) precisa de fatos físicos correspondentes; já um domínio de pensamento onde não existam fatos físicos a que apelar para verificar as alegações é meramente subjetivo (expressão de gosto pessoal, por exemplo). Assim, por exemplo, quando digo “Há um cachorro debaixo da minha cama”, essa afirmação possui valor de verdade porque há um fato físico correspondente a essa afirmação, que se pode verificar com os cinco sentidos para avaliar se o que falei foi verdadeiro ou falso. Já quando digo “estuprar é errado”, o perspectivista dirá que minha afirmação não é verdadeira nem falsa, porque não há um fato físico correspondente a “estuprar é errado”. O problema com o factualismo é que ele também é auto-refutante. Note que o factualismo diz que toda afirmação que possui valor de verdade precisa de um fato físico correspondente que a torne verdadeira. Temos de perguntar: há um fato físico correspondente à afirmação “toda afirmação que é verdadeira precisa de um fato físico correspondente que a torne verdadeira”? Certamente não. Essa tese (o factualismo) é uma tese filosófica, não empírica. Então, se ela fosse verdadeira (se tudo que é verdade precisasse de fatos físicos correspondentes), seria falsa (porque não há um fato físico correspondente ao factualismo). Se, por outro lado, o factualista afirmar que, nesse caso, não precisa de um fato físico para o factualismo ser verdadeiro, então o factualismo é falso (pois então é falso que sempre se precisa de fatos correspondentes para tornar algo verdadeiro[5]).

O argumento a favor do factualismo é auto-refutante. Contudo, isso não prova que a conclusão que ele pretende sustentar (a de que não existe verdade objetiva em ética) é falsa. Isso porque é possível existirem outros argumentos melhores a favor do perspectivismo moral. É possível que uma conclusão esteja correta, e o argumento que visa sustentá-la seja ruim. É possível que, por outros motivos, não haja verdade em ética, mesmo que o factualismo seja falso. Quando pretendemos provar que uma posição está errada (como eu pretendo, com relação ao perspectivismo com relação à ética), não apenas temos de mostrar que os argumentos oferecidos em seu favor são ruins; temos também de oferecer um argumento explicando por que ela está errada. É isso que pretendo fazer a seguir (no próxima parte).

Notas:

[1] Mestre em Ética e Filosofia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). O autor agradece à Marina S. O. Serralheiro pelas críticas e revisões.

[2] Cf. NAGEL, Thomas. A Última Palavra. Trad. Carlos Felipe Moisés. São Paulo: UNESP, 2001, p. 13.

[3]MURCHO, Desidério. Zen e a Arte da Manutenção da Filosofia. In: Crítica na Rede. 14/07/2009. Disponível em: http://criticanarede.com/zen.html

[4]Cf. MURCHO, Ibid.

[5]A argumentação contra o factualismo pode ser encontrada em MURCHO, Desidério. Ética e Direitos Humanos. In: Crítica na Rede. 27/11/2009a. Disponível em: http://criticanarede.com/html/valoresrelativos.html